Módulo 9

 

          PSICANÁLISE, SONHO E CINEMA

 


O encontro entre psicanálise e cinema foi em um certo sentido a culminância de um longo namoro, visto que ambos surgiram aproximadamente na mesma época (Freud empregou o termo “psicanálise” pela primeira vez em 1896, um ano apenas depois das primeiras projeções dos filmes de Lumière no Grand Café[1]). (...) Os teóricos psicanalíticos estavam particularmente interessados na dimensão psíquica da extraordinária “impressão de realidade” do meio cinematográfico. Buscavam explicar o imenso poder do cinema sobre os sentimentos humanos. A capacidade de persuasão do dispositivo cinematográfico foi analisada como sendo o resultado de um conjunto de fatores – a situação cinematográfica (imobilidade, escuridão) e os mecanismos enunciativos da imagem (câmera, projeções óticas) (...) - todos os quais induzem o sujeito a projetar-se na representação. (,..)

A “situação cinematográfica” apresenta muitos traços em comum com a situação do sonho, em especial a passividade, o conforto e o isolamento da realidade. (...) O cinema existe em um “modo onírico”, no sentido de que cria um presente virtual associado a (...) uma impressão de realidade. (...) A impressão da realidade oferecida pelo cinema deriva de uma situação cinematográfica que estimula sentimentos de (...) regressão a processos primários[2] condicionada pelas circunstâncias similares (...) à ilusão da realidade do sonho. O filme ficcional convencional ocasiona um enfraquecimento do estado de vigília que leva a um estado próximo ao do sono e do sonho. Esse enfraquecimento do estado de vigília acarreta um distanciamento para com as preocupações com o mundo exterior e um aumento da receptividade à satisfação fantasiada dos desejos.

No cinema, diversamente do sonho, não tomamos literalmente nossas fantasias por percepções, visto que, nesse caso, trata-se de um objeto perceptivo real – o filme em si. O sonho é um processo psíquico puramente interno, ao passo que o cinema envolve a percepção real, potencialmente em comum com os demais espectadores, de imagens reais registradas em película. (...) Ainda assim, os paralelos entre as condições da fruição cinematográfica e a dos sonhos ajudam a explicar o grau quase alucinatório dessa impressão da realidade que os filmes são capazes de atingir.

A visão de Hollywood como uma fábrica de sonhos sugeria que a indústria dominante era promotora de uma fantasia escapista (...) e (...) enfatizou as dimensões negativas, exploratórias do sonho cinematográfico[3]. Mas, embora a teoria estivesse correta em denunciar as alienações provocadas pelo cinema dominante, também é importante reconhecer o desejo que traz os espectadores à sala do cinema. A eterna comparação entre cinema e sonho aponta não apenas para o potencial alienatório do cinema, como também para o seu impulso utópico fundamental[4]. Os sonhos não são meramente regressivos; são vitais para o bem-estar humano. Tal como enfatizaram os surrealistas, são um santuário para o desejo, um indício da possível transcendência das dicotomias, a fonte de tipos de conhecimento negados pela racionalidade cerebral. (...)

Por que os espectadores vão ao cinema sem serem forçados? Que prazeres buscam? (...) As fontes do prazer cinematográfico: a identificação (primeiramente com a câmera e em seguida com as personagens)[5]; o voyeurismo (a observação dos outros de uma posição resguardada)[6](...) e o narcisismo (as sensações auto-exaltadoras de ser um sujeito que tudo percebe)[7].

 STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. São Paulo: Papirus, 2000. p. 182, 185, 186, 189, 190, 191.


[1] Em 1985, os irmãos Lumière criaram o cinema e divulgaram a nova invenção para o público.

[2] Os “processos primários” são, na psicanálise, processos mentais primitivos típicos do inconsciente; os processos primários foram as únicas formas de vida mental na nossa infância e nos primórdios arcaicos da humanidade. Segundo a psicanálise, o inconsciente – ao contrário da mente consciente – se manifesta primordialmente por meio de imagens; pensar com imagens no sonho e na arte seria um exemplo de regressão a um processo primário inconsciente no ser humano.

[3] Neste sentido, o sonho cinematográfico imita uma característica marcante do sonho humano: ambos impedem ao sujeito sonhador uma real compreensão dos problemas e do sofrimento real, criando uma pseudo-realidade de felicidade e de desejos pretensamente satisfeitos.

[4] Os sonhos não são somente ilusões,irrealidades, mas também indicam possibilidades de transformação da vida concreta para além dos horizontes determinados pelo pensamento consciente.

[5]O espectador adota o olhar da câmera (que na verdade é do diretor, do roteirista etc.) como se fosse o seu próprio olhar; e passa olhar os personagens principais, os heróis e protagonistas, como se fossem ele mesmo. A identificação, para a psicanálise, é um fenômeno fundamental para a constituição de todas as personalidades humanas, pois uma parte significativa da maneira de ser de cada indivíduo nasce da identificação com pais, parentes, amigos, líderes etc. Na identificação, o indivíduo cria para si mesmo a fantasia de que ele é a outra pessoa que ele gostaria de ser; assim, passa a imitá-la e a assimilar seus comportamentos, sentimentos, maneiras de pensar etc.

[6] O voyeurismo, para a psicanálise, é uma forma de prazer indiretamente sexual obtido somente com a observação das outras pessoas, ou das imagens de outras pessoas. Embora, para a psicanálise, o voyeurismo seja universal, isto é, seja um elemento natural e constitutivo da sexualidade humana, alguns trocam a possibilidade de envolvimentos reais pela prática voyeurista. Neste nível, o voyeurismo torna-se, para a psicanálise, um sentimentopatológico. A força de atração do cinema sobre o inconsciente utiliza-se do voyeurismo natural presente na sexualidade de todos os seres humanos.

[7]Narcisismo, em psicanálise, é um estado de amor por si próprio. Ao se identificar com a câmera, cada espectador de cinema se sente como o centro do espetáculo cinematográfico. Ao se identificar com o herói, cada espectador se sente invencível, possuidor de atributos e forças extraordinárias. Em ambos os casos, trata-se de uma experiência narcisista.

 


 Georges Méliès e cinema como sonho - parte 1. 


 

Georges Méliès e o cinema como sonho - parte 2
 

 

SALAS DE CINEMA PELO MUNDO, CONCEBIDAS ESPECIALMENTE PARA O "SONHO" CINEMATOGRÁFICO:

 

Sala da Rede Pathé na cidade de Spreitenbach, norte da Suíça

 

Cinesala em São Paulo

 

Electric Cinema em Londres 


Informações úteis para o comentário escrito:

<b> conteúdo </b> – transforma o conteúdo em negrito;

<i> conteúdo </i> – transforma o conteúdo em itálico.

Nenhum comentário:

Postar um comentário