Módulo 11

 SEXUALIDADE X GENITALIDADE EM FREUD

 

 

         Os estudos de Freud sobre o sexo levaram-no a fazer uma série de afirmações que escandalizaram a sociedade de sua época. Hoje já encaramos com mais naturalidade essas ideias. Da mesma forma que os homens dos séculos passados não poderiam ser capazes de fazer as descobertas científicas que hoje nos são tão familiares, como o rádio, a televisão ou a bomba atômica, da mesma forma os contemporâneos de Freud não podiam aceitar ideias novas sobre a importância do sexo na vida humana. As ideias novas são sempre combatidas quando surgem, principalmente quando vêm se chocar contra velhos preconceitos ou velhos privilégios arraigados há muito tempo.

         Talvez o leitor não se escandalize com as teorias de Freud sobre o sexo que a seguir vamos examinar. O mais provável é que já as conheça em suas linhas gerais, pois já há muito tempo vêm sendo divulgadas, de uma forma ou de outra em nossa sociedade. O espanto e a indignação que elas causaram na época em que foram apresentadas pela primeira vez já não se repete com a mesma intensidade atualmente. (...)

         O que é o instinto sexual? Para Freud ele é uma força que nos excita e que atua continuamente; essa força nos dá um tipo especial de prazer todas as vezes que a satisfazemos de uma maneira acertada. O instinto existe e atua visando a realização de um determinado objetivo. Assim podemos dizer que a finalidade para qual existe o instinto sexual é a conservação e a perpetuação[1] da espécie humana. Esse objetivo pode ser facilmente alcançado pelo fato de que a satisfação do instinto provoca em nós uma sensação de prazer. Se não sentíssemos prazer ao satisfazer nossos instintos, certamente eles desapareceriam.

         Freud retira daí uma conclusão importante para sua teoria. Segundo seu modo de ver não devemos confundir os fatos sexuais com os fatos genitais. Uma coisa é o sexual, outra coisa, o genital. Para que o instinto sexual realize seu objetivo, ou seja, para que se verifique a reprodução da espécie humana é necessário que aconteça uma série de coisas. Uma delas é o coito, ou seja, o ato genital propriamente dito. Quando um casal está tendo relações sexuais, o instinto sexual está realizando seu objetivo, que é a reprodução da espécie. Mas as relações genitais são apenas uma parte da vida sexual: as sensações sexuais não limitam apenas às sensações genitais.

         De fato, para que um casal chegue a praticar o coito é preciso que antes seja estimulado por uma série de sensações sexuais preliminares, que vão produzindo um estado de excitação que acaba no coito. É muito grande o número dessas sensações sexuais anteriores ao prazer sexual propriamente dito. Antes de entrarmos numa relação genital, experimentamos uma enorme quantidade de processos psíquicos como, por exemplo, esperanças e temores, desejos e atrações, encantamentos e ternuras, ansiedade e agressividade etc. Todos esses processos psíquicos são sexuais e não genitais. Todos eles são necessários à realização do objetivo do instinto sexual, todos eles fazem parte da atividade sexual e, no entanto, não são genitais. Assim sendo, conclui Freud, os processos genitais constituem apenas uma pequena parte de nossa vida sexual. Nossa vida sexual é muito maior do que a nossa vida genital. A vida sexual é constituída pelas emoções sexuais mais os fenômenos genitais. A diferença entre ambos está em que as sensações sexuais têm por função desencadear os fenômenos genitais graças aos quais se faz a reprodução da espécie humana. As emoções sexuais são, portanto, processos psíquicos que, normalmente, conduzem aos fenômenos genitais.

         Mas não é só nesse sentido que o sexo se distingue das funções genitais. Além de se manifestar nas sensações sexuais, o sexo pode se manifestar também em outros órgãos além dos órgãos genitais. Essa segunda distinção também é muito importante para compreendermos o verdadeiro significado da teoria de Freud. Tomemos o exemplo da boca. Quando utilizamos nossa boca para comer ou beber, experimentamos uma série de sensações de prazer a que chamamos de sensações gustativas. (...) Outras vezes a utilizamos com o intuito de obter (outros) prazeres, como no caso do beijo, por exemplo. Assim, (...) a boca é considerada uma zona erógena, pois ela tem uma dupla função: uma função gustativa e uma função (mais diretamente) sexual.

         Depois dessas explicações, estamos agora em condições de compreender o que Freud entende quando usa a palavra sexo. Como vimos, ele tem uma ideia muito ampla a respeito do sexo. Para ele o sexo não se reduz às atividades dos nossos órgãos genitais: isto é apenas uma das partes do sexo. Além dessa, fazem parte do sexo uma grande quantidade de processos psíquicos, as chamadas sensações sexuais. E além das sensações sexuais existe a grande quantidade de zonas erógenas que são, praticamente, todas as partes do nosso corpo. Em vista disso, devemos tomar a precaução de não pensarmos apenas no aparelho genital quando analisarmos a teoria do sexo de Freud.[2]

         Freud afirmava que as crianças, desde a mais tenra idade, exercem atividades sexuais. É fácil imaginar a revolta e a indignação dos contemporâneos de Freud ao ouvirem semelhante afirmação. Durante séculos e séculos a humanidade supôs que as crianças eram anjos inocentes e, de repente, aparece Freud para dizer que as crianças também têm sexo. Naturalmente as discussões que se travaram a respeito foram muito deturpadas pelos preconceitos e pela incompreensão da verdadeira tese de Freud. Se, desde o princípio, fosse conhecida por todos a distinção que fizemos acima entre o sexo e os fenômenos genitais, provavelmente o choque causado pela afirmação de Freud teria sido muito menor.

         De fato, ao dizer que as crianças experimentam desde o seu nascimento, uma série de processos psíquicos de natureza sexual, Freud não estava querendo dizer que as crianças praticam atos genitais da mesma forma como o fazem os adultos. Tanto é assim que ele chama nossa atenção para as fases de desenvolvimento do instinto sexual. O sexo tal como se manifesta nos adultos é o resultado de um longo processo de evolução que começa desde o nascimento. Como poderíamos quando adultos praticar atividades sexuais se o instinto sexual não existisse em nós desde que nascemos?  O instinto sexual vai se desenvolvendo em nós pouco a pouco, vai passando por uma série de fases em sua evolução até atingir o estado normal da maturidade que caracteriza a idade adulta. (...)

         Antes de Freud, a maioria das pessoas considerava que a puberdade era a época da vida em que aparecia pela primeira vez o instinto sexual. Supunha-se que, com a chegada da puberdade, a criança passava a ter vida sexual, perdendo sua antiga inocência infantil. Já vimos que Freud não concorda de modo algum com essa concepção.

         Para Freud a puberdade não é o momento em que nasce o instinto sexual. Ao contrário, é justamente o momento em que o instinto sexual adquire sua forma definitiva, o momento em que ele se torna maduro e adulto. As várias partes que constituem a sexualidade infantil vão se juntando uma às outras, vão se unindo para formar um todo único. Todas as zonas erógenas que anteriormente viviam de forma independente uma das outras passam  a se ligar entre si e ficam todas subordinadas ao comando da zona genital. Com a puberdade, surge o império da zona genital sobre as demais, pois é ela que passa a ser a mais importante de todas, uma vez que dela depende a função principal do instinto sexual, que é a reprodução da espécie. A puberdade significa assim, para Freud, a época em que a zona genital consegue se tornar capaz de realizar suas atividades, tornando assim possível a realização completa do ato sexual. (...) Os prazeres sexuais mais intensos que se é capaz de experimentar situam-se agora na zona genital.

ESTEVAM, Carlos. Freud: vida & obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 69, 70, 71, 72, 73, 80, 81.



[1] Com seu conceito de Eros, Freud mostra que nem sempre a conservação e perpetuação da espécie envolve diretamente a reprodução biológica, com a origem de novos seres humanos, embora este seja um elemento importante e central do instinto. Eros ou a sexualidade é um conceito mais amplo do que o de genitalidade, pois ultrapassa o estritamente biológico, implicando também o psíquico, a experiência dos afetos, dos múltiplos prazeres e desejos, dos vínculos sociais e das criações culturais.

[2] Ao recriar, inspirado em Platão, a noção de Eros, Freud passou a entender que os processos psíquicos sexuais também incluem as diversas modalidades de amor "sublimado", como o amor fraternal, isto é, a amizade, o amor que está sempre presente nas interações sociais, pois o amor está sempre viabilizando todo e qualquer vínculo de sociabilidade. Além disso, Freud concorda com Platão que o amor também pode ser voltado para ideias, ideais, criações artísticas etc., isto é, para dimensões "sublimadas" da cultura.

 

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