A PSICANÁLISE DE FREUD
OS DOIS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA
PSICANÁLISE: INCONSCIENTE E
SEXUALIDADE
Desde
as primeiras páginas, Freud sublinha os princípios de que nunca se desviou.
Esses princípios, que se resumem a dois, segundo ele, “chocaram toda a gente”:
um, o do inconsciente, veio embater num preconceito intelectual, o outro, o da
sexualidade, num preconceito que ele considera “estético-moral”. Que significa
isto? Primeiro, quando falamos de princípios de base, deveríamos antes
chamar-lhes descobertas. Freud descobriu novos territórios: o inconsciente, a
sexualidade. Ou então aquilo que assim designamos e que julgávamos conhecer não
tem para ele o mesmo significado que anteriormente lhe era atribuído. Além
disso, estes dois campos destruíram a imagem tradicional do homem, e daí a
aversão, o afastamento.
O
homem foi sempre analisado na tradição filosófica desde Platão como “animal
racional”. Reconhecem-lhe um fundo de animalidade, de paixões obscuras, mas
esse fundo nada tem de inquietante, pois o homem controla-as pela razão e pela
vontade. Ora, a existência de um pensamento ou de uma vontade inconscientes faz
com que o homem deixe de ser senhor de si próprio. O homem já não é senhor do
seu eu. Não é de admirar que lhe repugne admitir que os seus pensamentos e os
seus desejos lhe são sugeridos, inspirados inconscientemente, por uma parte de
si mesmo que ele ignora. Além disso, essa parte de si mesmo que o determina nas
suas motivações profundas, representa um domínio bem mais vasto que o eu
consciente: a parte que emerge representa talvez, como no caso dos icebergs,
apenas um décimo da parte imersa. Finalmente, para cúmulo da frustração, essa
parte escondida é para ele tão impenetrável como o psiquismo de um outro. Com
Freud, o orgulho intelectual do homem recebe um duro golpe.
Por
outro lado, afirmar que o essencial da energia que anima a nossa conduta provém
das tendências sexuais, ou seja, daquilo que Freud chama libido, significa
privar-nos da nossa liberdade, da nossa capacidade de escolha, isto é, de toda
a moralidade. Se forças sexuais subterrâneas inspiram, sem que o saibamos, o
que julgamos fazer por amizade, por caridade, por desinteresse, não seremos
palhaços, joguetes, apenas dotados da consciência ilusória de ser livres? Para
ultrapassar a mera reação afetiva, é necessário saber se o significado que
Freud atribui a estes dois termos —inconsciente e sexualidade — não será
inteiramente diferente daquele que habitualmente lhes era atribuído.
O inconsciente é o
essencial da vida psíquica
A
partir de observações sobre certas doenças psíquicas, Freud é levado a
abandonar a ideia, no fundo banal, segundo a qual existiria uma maior parte de
inconsciente do que de consciente nos fenômenos psíquicos. Não basta dizer que
o inconsciente é importante. É necessário dizer que “o inconsciente é o próprio
psiquismo”. Nem todo o pensamento é inconsciente, mas, de certa forma, todo o
pensamento reside primeiro no inconsciente. Freud vai demonstrar, não a
existência do inconsciente, mas a proveniência e a dependência de todo o
psiquismo em geral em relação ao inconsciente. Segundo uma imagem do próprio
Freud, o inconsciente inclui o consciente, tal como um largo círculo compreende
um círculo mais pequeno, no sentido de que o prefigura e determina[1].
Mas,
de que modo o inconsciente é conhecível? Na medida em que tudo aquilo que
conhecemos pertence ao consciente, só conhecemos o inconsciente refletido
naquilo que é acessível à consciência. De entre todos os fenômenos psíquicos,
alguns produzem-se de um modo mais visível que outros, fora do controle e do
domínio da consciência. Freud dirá que a “interpretação dos sonhos é a via real
que leva ao conhecimento do inconsciente”. Finalmente, os atos “automáticos”,
os gestos ou palavras que deixamos escapar involuntariamente são os testemunhos
reveladores de intenções que nos escapam. O principal contributo concreto da
psicanálise é, pois, alargar o domínio daquilo que tem um sentido: estes fenômenos,
durante muito tempo considerados aberrantes e absurdos, como os atos falhados,
os sonhos e as neuroses, pertencem a partir de agora ao mundo humano, ao mundo
do sentido. Exprimem intenções, desejos. São atos psíquicos tão completos como
os atos conscientes.
Mas,
como se constitui o inconsciente? Segundo uma afirmação puramente descritiva,
isto é, que se limita a constatar um fato, o inconsciente é o conjunto dos fenômenos
psíquicos provisória ou definitivamente inacessíveis à consciência. Por
exemplo, não tenho atualmente presentes as minhas recordações de infância ou as
de há dois anos, pelo menos não as tenho continuamente presentes, mas posso
chamá-las à consciência através de um esforço de memória ou até mesmo por
acaso, se vejo, por exemplo, uma fotografia que me faz pensar nessa época da
minha vida. Ao lado das minhas recordações, disponho de uma série de hábitos,
de reflexos, etc.: Freud chama pré-consciente a este inconsciente temporário,
mais ou menos facilmente disponível. Enquanto o pré-consciente designa os
conteúdos psíquicos momentaneamente latentes, o termo inconsciente é reservado
a representações (isto é, ideias, imagens, ou vestígios na memória) que estão
permanentemente fora do alcance da consciência. Estas representações estão
estreitamente ligadas às pulsões fundamentais, isto é, às principais tendências
ou “impulsos”, que são de dois tipos: as pulsões sexuais e as pulsões de
conservação do eu[2].
As pulsões não são nem psíquicas nem corporais, mas situam-se no limite dos
dois domínios: traduzem, por assim dizer, para o psíquico as exigências
biológicas. Mais adiante precisaremos as características do pensamento dominado
pelo desejo e sempre em busca do prazer, que não se submete nem à cronologia
nem à lógica. Contentemo-nos com assinalar uma característica importante: os
conteúdos inconscientes são levados, pelo seu próprio dinamismo, a tornarem-se
conscientes; todo o inconsciente tende a passar para a consciência.
Se
esta tendência das representações inconscientes a manifestar-se pudesse
exprimir-se livremente, não haveria inconsciente verdadeiro e definitivo. Mas,
a experiência mostra que uma certa força se opõe à passagem de todo o
inconsciente para o consciente. Essa força que mantém uma certa parte do
psiquismo fora da consciência chama-se recalcamento. Do ponto de vista não “descritivo”,
mas “dinâmico”, o inconsciente é o recalcado. Com efeito, os elementos
recalcados exercem uma pressão contínua na direção do consciente. O
recalcamento constitui a contrapressão em sentido contrário. Isto pressupõe, da
parte do indivíduo, um dispêndio constante de energia para manter o equilíbrio.
Para
concretizar o mecanismo do recalcamento, Freud pressupõe uma instância de
controle, a censura, — a qual, nas suas conferências, designa também por ideal
do eu (mais tarde, o supereu). A censura aceita ou recusa deixar passar para as
esferas superiores esta ou aquela representação vinda do inconsciente. A
censura é comparada a um guarda que inspeciona todas as tendências e, se alguma
lhe desagrada, fá-la voltar pelo mesmo caminho, mesmo que ela tenha já entrado
no pré-consciente. A censura que exerce o recalcamento não se situa, portanto,
ao nível do eu consciente, mas a um nível inconsciente do eu. Ela é o “mecanismo
de defesa do eu” contra a intrusão de tendências anárquicas, perigosas,
demasiado exigentes, vindas do inconsciente.
Através
do quadro que se segue, podemos imaginar os diferentes “lugares” do aparelho psíquico
e as relações principais que entre si estabelecem; é o que Freud chama a “tópica”
do psiquismo (do grego topos, lugar).
Freud
reconhece que a censura é uma simples imagem: constatamos que há no psiquismo
manifesto (consciente) partes sistematicamente cortadas. Podemos comparar estes
bocados recalcados às passagens de um texto (de um jornal, por exemplo) que
tivessem sido “inutilizadas” (passadas a tinta negra por qualquer autoridade
policial) a fim de tornar ininteligível, e, por exemplo, impedir os cidadãos de
um país de tomar conhecimento de certas notícias desagradáveis para o governo
desse país.[3]
Portanto, o autor do recalcamento é o próprio inconsciente (Freud só mais tarde
desenvolverá a sua teoria de um eu inconsciente, ou supereu), e as verdades que
ele esconde são essas representações ou esses desejos que ameaçam a integridade
do eu.
Vejamos
um exemplo: durante o período do complexo de Édipo (período de crise nas
relações da criança de cinco anos com os pais) a criança tem fantasmas (assim como
quem sonha acordado). A criança sonha que possui a mãe só para si, que a leva
de avião para muito longe, que casa com ela, que tem filhos dela. Ao mesmo
tempo, sente-se culpado em relação ao pai, quer devido aos seus sentimentos
para com a mãe, quer devido às suas práticas sexuais (masturbação) e por isso
tem um outro fantasma, o de ser castrado pelo pai como punição. Ora, esses
fantasmas, quer tenham ou não subido um momento à consciência, são fortemente
recalcados durante a evolução posterior. Porquê? Porque o eu, nas suas relações
com os outros, ficaria ameaçado e comprometido pela intromissão no consciente
de tais desejos tão inconfessáveis quanto irrealizáveis.
Assim,
o personagem de Hamlet na tragédia de Shakespeare é, segundo Freud, um notável
exemplo de um ser recalcado, no qual o recalcamento é mal resolvido. O seu eu é
fraco, vive numa perpétua hesitação entre o sonho e a realidade. Não consegue
agir, isto é, vingar-se daquele que matou seu pai. Porquê? Porque sabe, no
fundo do seu inconsciente, que esse outro é ele próprio, ele que desejava a
morte do pai e a união com a mãe.
Mas,
mesmo quando o recalcamento é mais bem resolvido do que em Hamlet, nunca é perfeito.
As representações recalcadas tendem sempre a subir à consciência e é para o eu
um trabalho de Sísifo barrar-lhes constantemente o caminho. A luta para manter
o recalcado no inconsciente é tão difícil para o neurótico que lhe absorve a
maior parte da energia e lhe paralisa a atividade exterior. Contudo, os desejos
recalcados encontram, apesar de tudo, meios paralelos para atingir uma
satisfação: obtêm satisfações substitutivas, indiretas e simbólicas, à revelia
da consciência. Esta exteriorização substitutiva, estes prazeres ou ilusões de
prazer de substituição constituem aquilo a que Freud chama “retorno do
recalcado”. É ele que se traduz por atos falhos, sonhos e sintomas neuróticos.
Toda a psicanálise mais não é do que o estudo dessas substituições: trata-se de
demonstrar qual a relação que existe entre uma manifestação aparentemente
absurda e um desejo inconsciente. A psicanálise poderia definir-se como a
procura e a desmistificação das formas ilusórias da satisfação.
O papel decisivo da sexualidade
O
prazer que o inconsciente procura é sempre um prazer sexual? Mas, o que é um
prazer sexual? Qual é a definição freudiana da sexualidade? Não é possível
avaliar o papel novo que Freud atribui à sexualidade se não compreendermos que
ele lhe alarga consideravelmente o campo e dá uma interpretação do fenômeno
sexual inteiramente diferente da interpretação que antes lhe davam e que ainda
hoje é dada. “Aquilo que se entende por sexualidade fora da psicanálise, diz
Freud, é uma sexualidade absolutamente restrita”. Com efeito, limitamos
normalmente o aspecto sexual a todos os comportamentos que tendem para o ato
sexual, para a cópula; isto significa que ele é identificado com a função de
reprodução ou de procriação. O objetivo sexual normal seria definido para um
indivíduo como sendo os órgãos genitais do sexo oposto ao seu. Mas, como
explicar então diversos modos “desviados” de satisfação sexual como a
masturbação, a homossexualidade ou ainda as várias perversões, para as quais
outros órgãos não genitais são fonte de prazer sexual, ou até mesmo qualquer
parte do corpo? Mas uma definição deste gênero não nos permite sequer
compreender um ato simples que tem o seu valor próprio, como o beijo. É, pois,
necessário modificar a noção de sexualidade, como a noção de psiquismo, no
sentido de um alargamento.
Freud
vai demonstrar que a vida sexual do homem não surge bruscamente, completa, após
a puberdade, mas começa logo na primeira infância, com o bebê. Por outro lado,
ela não se limita aos órgãos sexuais, mas implica todo o corpo humano. De um
modo implícito ou explícito, todas as épocas da vida e todas as partes do corpo
são capazes de desempenhar um papel sexual. Assim, veremos que as zonas
erógenas, isto é, capazes de excitar o desejo sexual, não estão limitadas às
regiões genitais; outras zonas podem também ser investidas de uma função
erógena, consoante a evolução individual, como, por exemplo, os pés, os seios,
etc. Os impulsos sexuais, ou melhor, a energia que está na base desses impulsos
e a que Freud chama libido, são susceptíveis de inúmeras transformações e
adaptações. A libido é essencialmente plástica e móvel. O seu recalcamento é
normalmente a causa principal das perturbações psíquicas. A sua sublimação,
isto é, o desvio do objetivo sexual para objetivos ideais, explica a maior
parte das produções culturais, sociais e artísticas da humanidade.
Esta
doutrina freudiana foi pejorativamente qualificada de “pansexualismo”: ver a
sexualidade em tudo. É fácil compreender que uma tal acusação só seria
justificada se as pulsões sexuais fossem as únicas (são muito importantes, mas,
afinal, nem tudo se reduz à sexualidade) e se a sexualidade fosse um mecanismo
rígido que conduzisse o homem para certos fins já fixados à partida. Ora, na medida
em que a sexualidade não é a procriação, esta mais não é do que um poder
indeterminado que deve estabelecer para si um fim e uma forma. A sexualidade
não é mais do que a possibilidade que pode levar a várias realidades: relações
amorosas, mas também criações extremamente variadas, como um laço social, uma
obra literária, etc.
Mas,
um dos temas da psicanálise que mais escandalizou foi incontestavelmente a
descoberta de que as crianças têm uma vida sexual. E o que Freud afirmou sobre
isso foi também escandaloso: definia a sexualidade infantil como “perversa”. O
que significa isto? A perversão sexual consiste em recusar o fim normal da
sexualidade, a união dos órgãos genitais de sexos opostos, podendo levar à
procriação. Ora, a criança encontra um prazer sexual fora do ato sexual, que
ainda desconhece. A sua sexualidade está em formação, em evolução, e não está
ainda fixada. É por isso que experimenta sucessivamente vários tipos de
sexualidade: antes de se concentrar nos órgãos genitais, o prazer liga-se primeiro
a tudo o que pode agarrar ou tocar com a boca. Depois, sentirá um grande prazer
em exercer as funções de excreção. Segundo uma expressão que iria chocar muito
os seus contemporâneos, Freud, longe de atribuir à infância a pureza e a
inocência, revela a sua “perversidade polimorfa” (isto é, que toma várias
formas). Na criança, perversidade significa ignorância das barreiras morais,
das aversões físicas que lhe serão inculcadas através da educação, como a
barreira do incesto com os membros da família, como a aversão pelos excrementos,
etc. Para Freud, a perversão é, neste sentido, a forma original da sexualidade.
Estas tendências perversas, e em particular todo o autoerotismo (ou seja, o
prazer sexual solitário), devem sofrer um recalcamento para que a sexualidade
se torne normal. O recalcamento, o “esquecimento” destes traços da infância e
de certos acontecimentos que mais marcaram a criança na sua relação com os pais
pode parecer estranho. Todavia, é significativo que a criança deva esquecer,
por exemplo, a ameaça, real ou imaginária, da castração pelo pai, e esquecer
também as primeiras descobertas do prazer que pode obter com certas partes do
seu corpo. Este esquecimento é constitutivo do inconsciente. Estas primeiras
experiências vão condicionar todos os comportamentos posteriores, tanto normais
como anormais.
Assim,
não só a sexualidade mas também a infância têm, para Freud, um papel
determinante na nossa vida psíquica. As primeiras impressões da infância, o
modo como a criança foi tratada, amada, os seus primeiros conflitos com os
pais, as suas primeiras angústias perante a solidão, a perda eventual do afeto,
todos estes acontecimentos permanecem indeléveis e estão destinados a dar
posteriormente um certo caráter particular à nossa experiência futura, a
metê-la num molde, por assim dizer. Porque o que é próprio do inconsciente é
não esquecer nada, conservar tudo. O inconsciente define-se como o recalcado e
o infantil. Mas, será também o sexual?
Sim,
responde Freud. Sobretudo se considerarmos que a sexualidade não é uma função
entre outras, mas a única função que diz respeito a todo o organismo (todos os
órgãos do corpo podem, para além do seu papel fisiológico, desempenhar, por
vezes simbolicamente, um papel sexual), a única função que ultrapassa o indivíduo.
O inconsciente tende de um modo geral e indiferentemente para a procura e
obtenção do prazer e, forçosamente, do prazer mais intenso que o homem pode
obter. Toda a atividade do inconsciente, isto é, do psiquismo, tende para o
prazer e foge do desprazer. O inconsciente rege-se pelo princípio do prazer,
afirma Freud. Ele não conhece nenhum outro. Mas a vida em sociedade, o
trabalho, a própria unidade da nossa personalidade não seriam possíveis se esse
princípio dominasse. Viveríamos apenas no presente, procurando simultaneamente
a satisfação de todos os desejos, o que é impossível, e num egoísmo
feroz. O inconsciente deve, pois, ser continuamente recalcado mas também
utilizado, canalizado, uma vez que representa a fonte de toda a energia
psíquica que possuímos, em proveito de um outro princípio, o princípio da
realidade. A realidade significa o contrário do inconsciente: a escolha, a
paciência, a permanência e a sucessão no tempo, a realização das obras e o
estabelecimento de relações humanas estáveis.
HAAR, Michel. Introdução
à psicanálise – Freud. Lisboa: Edições 70, 2008. p. 13 a 22.
[1]
“O abandono da superestimação concedida à faculdade da consciência torna-se
pressuposto indispensável para qualquer compreensão correta do desenvolvimento
do psíquico. Conforme expressão de Lipps, o inconsciente deve ser tomado como
base universal da vida psíquica. O inconsciente é o círculo maior que abrange
em si o círculo menor da consciência; tudo o que é consciente tem um estágio
prévio inconsciente, enquanto o inconsciente pode permanecer nesse estágio e
ainda assim reclamar o valor pleno de uma produção psíquica. O inconsciente é o
psíquico propriamente real, tão desconhecido para nós segundo sua natureza
interna quanto o real do mundo externo; ele nos é dado pelos dados da
consciência de maneira igualmente tão incompleta quanto o mundo externo pelas
informações de nossos órgãos sensoriais.” FREUD, Sigmund. A interpretação
dos sonhos. Porto Alegre: L&PM, 2007. p. 639 e 640.
[2]
Mais tarde na obra de Freud estas duas pulsões transformaram-se em “pulsões de
vida” e “pulsões de morte”.
[3]
“Os delírios (psicóticos) são a obra de uma censura que não se dá mais ao
trabalho de ocultar suas atividades, uma censura que, em vez de cooperar para
uma reelaboração que não seja mais chocante, risca sem consideração tudo aquilo
a que faz objeções, tornando incoerente o que resta. Essa censura procede de
modo inteiramente análogo à censura russa de jornais na fronteira: apenas
jornais estrangeiros repletos de tarjas pretas chegam às mãos dos leitores que
cabe proteger.” FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Porto Alegre:
L&PM, 2007. p. 557.
A
psicanálise está fundada em dois pilares: a descoberta do inconsciente e o
papel atribuído à sexualidade. É na virada do século XIX para o século XX que
podemos identificar, na obra de Freud, a ênfase nestes dois postulados, através
dos quais ele se afasta decisivamente do método catártico e da hipnose,
rompendo com o médico vienense Josef Breuer, com quem escrevera, em 1895, Estudos
sobre a histeria, obra inaugural da história da psicanálise.
Breuer
permaneceu ligado aos princípios da fisiologia de seu tempo. Em contrapartida,
Freud passou a considerar, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade
e em Fragmento da análise de um caso de histeria, as neuroses como
perturbações da função sexual. E isso sem exceção. Em História do movimento
psicanalítico, Freud se lembrará ainda com estupefação que o próprio dr.
Charcot já sabia disso, quando de modo displicente dizia: “É sempre a coisa
genital, sempre... sempre... sempre...” Isto foi dito numa recepção em sua
própria casa, em Paris, informalmente. Ao ouvi-lo, Freud se pergunta: “Mas se
ele sabe disso, por que nunca diz?” Por que Charcot não dizia isso
publicamente? Porque uma coisa é externar uma opinião sob a forma de comentário
passageiro, e outra bem diferente é levá-la a sério e persistir nela até
dar-lhe um lugar entre as verdades aceitas. Trata-se da diferença entre um
flerte fortuito e um casamento com todos os seus deveres e dificuldades.
Um
exemplo dessa tenacidade de Freud nisso que pode ser considerado um dos pilares
da psicanálise (a importância prática do fator sexual na causação das neuroses)
é a sua ida a uma reunião da Sociedade de Psiquiatria e Neurologia de Viena,
presidida naquela ocasião pelo psiquiatra austríaco Krafft-Ebing. Seu intuito
era o de comunicar suas descobertas e, sem dúvida, obter algum reconhecimento
de seus colegas. O silêncio em torno de Freud e as insinuações que lhe foram
dirigidas fizeram-no, entretanto, compreender que a partir de então tinha
passado a fazer parte daqueles que perturbam o sono do mundo. Já que “sua
coragem moral não era exatamente o que se pode chamar de pequena”, já que
estava certo da exatidão de suas observações, Freud resolveu então “aceitar o
destino que às vezes acompanha essas descobertas”.
Também
no que concerne à descoberta do inconsciente, Freud se afastou da hipnose. Seu
método enxergava no sonho a via régia, o melhor caminho para o conhecimento dos
pensamentos inconscientes, para o conhecimento teórico do inconsciente e, mais
ainda, para levar os leitores a admitirem a existência do inconsciente. Também
nesse segundo pilar de sustentação da psicanálise - a importância das
manifestações do inconsciente - Freud sai do campo da patologia. Todo o mundo
sonha, todo o mundo se equivoca, todo o mundo esquece, todo o mundo esquece que
esqueceu, todo o mundo tem desejos inconscientes (recalcados) que retornam seja
como for. Melhor ainda: todo desejo é inconsciente. E isso vale também para
aquelas pessoas que até então vinham sendo consideradas pela ciência e pela
religião sãs de corpo e salvas de alma.
Freud
não foi o primeiro a dizer que a vida psíquica não se identifica com a
consciência. Isso já aparece em Aristóteles, e no século XIX é uma ideia
corrente, embora ainda não hegemônica, da filosofia, da literatura, das artes
em geral. Freud, entretanto, irá realizar uma dupla ruptura nesse ponto.
Primeiro porque, contrariamente ao pensamento ainda dominante no século XIX,
para ele a consciência não é a sede da razão. Para ele, há desejos que permanecem,
a despeito de tudo, e que, recalcados, retornam à consciência sob a forma de
sintoma. Portanto, a consciência está sempre sendo de algum modo abalada por
uma verdade que não quer calar (sintoma), por esse algo de estranho que
insiste, resiste, não desiste. Em Novas conferências introdutórias sobre a
psicanálise, Freud afirma que o sintoma provém do recalque, representa o
recalque, de algum modo, diante da consciência. O recalque é sempre, para a
consciência, uma terra estrangeira, uma terra estrangeira interna, do mesmo
modo que a realidade é uma terra estrangeira externa.
A
segunda ruptura de Freud em relação ao século XIX está no fato de que não só a
consciência não é mais a sede da razão (como a filosofia e a teologia tantas
vezes o disseram), como também o próprio inconsciente não tem mais o sentido
que o romantismo lhe pôde vez por outra atribuir. A noção romântica admitia o
inconsciente como terra que podia ser conhecida por uma intuição, uma
genialidade criadora (daí falar-se à época de “estética do gênio”), uma
racionalidade especialíssima que só os grandes homens tinham. Para Freud,
diferentemente, o inconsciente tem leis próprias. Lendo Freud, Jacques Lacan
dirá: o inconsciente se estrutura como uma linguagem. É quando Freud vai em direção
a uma nova noção de representação que ele dá um basta em toda a tradição
metafísica, romântica, idealista, teológica que o precedeu.
Ele
mesmo apresenta essa ideia no ensaio de 1917 Uma dificuldade no caminho da
psicanálise. Ao mostrar a primazia que a psicanálise dá ao desejo
inconsciente, ao desejo de que não se quer saber, ao desejo que é recusado pela
consciência, Freud intenta esclarecer também que as dificuldades pelas quais
todos de algum modo passam para compreender a psicanálise não são de natureza
intelectual, “que não se trata de uma dificuldade intelectual, de algo que a
torne difícil de ser entendida ... mas de uma dificuldade afetiva - alguma
coisa que aliena os sentimentos daqueles que entram em contato com a
psicanálise, de tal forma que os deixa menos inclinados a acreditar nela ou a
interessar-se por ela. Conforme se poderá observar, os dois tipos de
dificuldade, afinal, equivalem-se. Onde falta simpatia, a compreensão não virá
facilmente.”
Nesse
trabalho Freud mostra o quanto é mais conveniente ao homem crer que o
pensamento lhe dá a precondição supostamente necessária à sua existência, e
que, através do pensamento e do bom senso, pode conhecer o mundo e a si mesmo.
A esta ideia Freud chama de “narcisismo universal dos homens”, e destaca então
na história do pensamento científico três severos golpes que tal “ilusão
narcísica” teria sofrido.
O
primeiro estaria associado à obra de Copérnico, à perda da ilusão em relação à
posição privilegiada da Terra dentro do Universo.
O
segundo golpe está ligado ao nome de Charles Darwin, aos seus colaboradores e
precursores, que puseram fim à presunção por parte do homem de ser
completamente diferente dos animais. (...) Freud (...) nos mostra que Darwin
destrói a esperança do homem de distinguir-se dos animais por uma suposição
narcísica de ter algo - o bom senso, a razão pura, o saber natural -, e que
este algo o colocaria totalmente fora das leis biológicas. A verdade é que “as
conquistas que [o homem] realizou não conseguiram apagar as evidências, tanto
na estrutura física quanto nas aptidões mentais”, de que permanece algo no
homem que o aproxima estreitamente de algumas espécies. Freud dava pouca
importância à teoria darwinista da seleção natural, mas valorizava o modo pelo
qual Darwin eliminou (...) um princípio superior de perfeição a reger a vida. A
despeito de tudo, para Freud, Darwin permaneceu sempre sendo “o grande Darwin”.
O
terceiro golpe sofrido pelo narcisismo do homem foi de natureza psicológica.
Este talvez seja, segundo Freud, “o que mais fere”. Humilhado em suas relações
externas, o homem sente-se superior em algum lugar do núcleo do seu eu, atento
aos seus impulsos e ações, verificando se são harmônicos. Acontece que há
situações em que as coisas não acontecem de modo tão harmônico. Vejamos o que
nos diz Freud:
“Os
pensamentos emergem de súbito, sem que se saiba de onde vêm, nem se possa fazer
algo para afastá-los. ... Ou então os impulsos surgem, parecendo como que os de
um estranho, de modo que o eu os rejeita; mas, ainda assim, os teme e toma
precauções contra eles. O eu diz para consigo: ‘Isso é uma doença, uma invasão
estrangeira.’ Aumenta sua vigilância,
mas não consegue compreender por que se sente tão estranhamente paralisado. É
bem verdade que a psiquiatria nega que tais coisas signifiquem intrusão, na
mente, de maus espíritos vindos de fora; para além disso, no entanto, só
consegue dizer com indiferença: “Degenerescência, inclinação hereditária,
inferioridade constitucional!”
DAVID, Sérgio Nazar. Freud e a religião. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 21 a 27.
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A METÁFORA DO INCONSCIENTE COMO UM ICEBERG
" - O que é, exatamente, o inconsciente?
- Ele se parece com um iceberg. Sabe, aquela montanha de gelo que vemos acima do mar, perto do Polo Norte: um bloco congelado à deriva, pontudo, encorpado, facetado ou corroído. Imagine por um instante esse belo objeto inerte, com uma parte mergulhada na profundeza do oceano, enquanto a outra fica cima da superfície da água. As duas partes são diferentes: aquela invisível é mais importante do que a visível, e também mais perigosa, porque permanece encoberta. Todos os navegadores sabem disso. Eles temem muito mais o que está escondido do que o que está visível. É isto o inconsciente: a parte submersa da montanha branca, composta de vários níveis, com trincheiras, passarelas e labirintos."
ROUDINESCO, Elisabeth. O inconsciente explicado ao meu neto. São Paulo: Editora Unesp, 2019. p. 11 e 12.
A
PSICANÁLISE DE FREUD
Psicanálise
– Disciplina fundada por Freud a partir de sua prática
terapêutica, na qual ele própria distinguia três níveis:
1
– Uma técnica de investigação do psiquismo inconsciente
Uma
técnica de investigação dos vários
fenômenos (palavras, gestos, sonhos...) em que (...) se revela a estrutura do psiquismo inconsciente, (...) a
determinação pelo inconsciente do sujeito.
2
– Um método de cura de doenças psicológicas
Um
método psicoterapêutico baseado
nessa investigação, que visa uma cura definida pelo retorno à consciência do
que estava recalcado no inconsciente é então sinônimo de cura psicanalítica.
3
– Uma ciência da mente
Um
conjunto de teorias psicológicas e
psicopatológicas que reúne os principais dados teóricos trazidos pelos
métodos de investigação e de terapia. Admite-se em geral que essas
contribuições teóricas – que abalaram fortemente a psicologia clássica –
concernem à existência do (...) inconsciente e (...) à particular importância que atribuía à sexualidade.
(...)
A
psicanálise se refere à filosofia na medida em que pode se interessar, com a
última, pelos diversos aspectos da existência humana e propõe-se a explicá-los
– trate-se de religião, da arte, da afetividade ou da moral. Porém,
observaremos que a psicanálise não pode ser confundida com uma filosofia.
DUROZOI, Gérard e
ROUSSEL, André. Dicionário de filosofia.
Verbete psicanálise. Campinas:
Papirus, 1993. p. 387.
Em
Psicanálise e teoria da libido, Freud
declara que “psicanálise é o nome:
1) de
um procedimento para a investigação dos processos mentais mais ou menos
inacessíveis de outra forma;
2) de
um método fundado nessa investigação para o tratamento de desordens neuróticas;
3) de
uma série de concepções psicológicas adquiridas por esse meio e que crescem
juntas para formar progressivamente uma nova disciplina científica.”
Por
conseguinte, psicanálise é, antes de tudo, uma investigação dos processos
inconscientes. Correlativamente,
constitui um tipo de terapêutica
centrada nas neuroses. Finalmente, constitui um tipo de saber reivindicando o
estatuto de uma teoria científica da psique, uma “psicologia das profundezas”
ou uma “doutrina do inconsciente psíquico” indispensável a todas as ciências
que tratam da gênese da civilização humana e de suas grandes instituições, tais
como a arte, a religião e a ordem social.
JAPIASSÚ, Hilton e
MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de
filosofia. Verbete psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1996. p. 324.
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