Módulo 39

 NEUROSE E PSICOSE




NEUROSE

 

Termo proposto em 1769 pelo médico escocês William Cullen (1710-1790) para definir as doenças nervosas que acarretavam distúrbios da personalidade. Foi popularizado na França por Philippe Pinel (1745-1826) em 1785. Retomado como conceito por Sigmund Freud a partir de 1893, o termo é empregado para designar uma doença nervosa cujos sintomas simbolizam um conflito psíquico recalcado, de origem infantil.

Com o desenvolvimento da psicanálise, o conceito evoluiu, até finalmente encontrar lugar no interior de uma estrutura tripartite, ao lado da psicose e da perversão. (...)

O termo neurose foi inventado por William Cullen, durante a segunda metade do século XVIII, e atesta a renovação do olhar clínico que pusera em voga a abertura de cadáveres e, portanto, a observação “direta” e post mortem dos órgãos que tinham sofrido de diversas patologias. Daí a ideia de criar uma palavra genérica para designar o conjunto dos problemas da sensibilidade e da motricidade que não apresentavam febre nem relação com qualquer órgão.

Assim nasceu a definição moderna da neurose, que permitiu construir uma nosografia pela negativa, incluindo em seu campo o domínio das doenças para as quais a nova medicina anatomopatológica não encontrava nenhuma explicação orgânica. Philippe Pinel logo retomou o termo e, um século depois, Jean Martin Charcot o popularizou, fazendo da histeria uma doença funcional e, portanto, uma neurose[1] (...).

Após seu encontro com Charcot, Freud também começou a definir a histeria como uma neurose (...). Ele desvinculou definitivamente a histeria da presunção uterina[2], associando-lhe uma etiologia sexual e um enraizamento no inconsciente. A partir daí e após a publicação dos Estudos sobre a histeria, em 1895, a histeria no sentido freudiano tornou-se o protótipo, para o discurso psicanalítico, da neurose como tal. Esta passou desde então a ser definida como uma doença nervosa na qual, antes de mais nada, um trauma intervinha. Daí a ideia, defendida por Freud, de que os pacientes afetados pela neurose histérica, em geral mulheres, teriam sofrido sevícias sexuais reais em sua infância. Mais tarde, depois do abandono dessa chamada teoria da sedução, em 1897, a neurose tornou-se uma afecção ligada a um conflito psíquico inconsciente, de origem infantil e dotado de uma causa sexual. Ela resulta de um mecanismo de defesa contra a angústia e de uma formação de compromisso entre essa defesa e a possível realização de um desejo.

Paralelamente, a partir de 1894, Freud adotou o termo psiconeurose, que depois abandonaria, para ampliar a definição da neurose. De um lado, classificou fenômenos de defesa (ou psiconeuroses de defesa) decorrentes de uma situação edipiana (fobia, obsessões, histeria), e de outro, problemáticas narcísicas (ou psiconeuroses narcísicas), decorrentes de uma situação pré-edipiana. As primeiras seriam catalogadas como neuroses e as últimas se classificariam na categoria das psicoses, com as novas definições, no início do século XX, da paranoia e da esquizofrenia.

Ao lado da histeria e no quadro das psiconeuroses de defesa, Freud instaurou, já em 1894, uma definição da neurose obsessiva: “Foi-me preciso começar meu trabalho por uma inovação nosográfica. Ao lado da histeria, encontrei razões para situar a neurose das obsessões (Zwangsneurose) como uma afecção autônoma e independente, embora a maioria dos autores classifique as obsessões entre as síndromes que constituem a degenerescência mental” (...). Quatro anos depois, em 1898, Freud empregou o termo neurose atual para designar (...) neuroses em que o conflito provinha da atualidade do sujeito, e não de sua história infantil, e nas quais o sintoma não se manifestava de maneira simbolizada[3].

Entre 1914 e 1924, Freud conservou a definição clássica que dera à neurose nos primórdios de suas descobertas e de suas experiências clínicas. Todavia, após os grandes debates com Carl Gustav Jung e Eugen Bleuler sobre a dissociação, o autoerotismo e o narcisismo, e depois, com a entrada em cena da segunda tópica, organizada em torno da trilogia composta pelo eu, isso e supereu, Freud deu uma organização estrutural ao par formado pela neurose e pela psicose, às quais acrescentou a perversão. (...)

Freud passou a definir a oposição entre neurose e psicose como o resultado de duas atitudes provenientes de uma clivagem do eu. Na neurose, há um conflito entre o eu e o isso e a coabitação de uma atitude que contraria a exigência pulsional com outra que leva em conta a realidade, ao passo que, na psicose, há uma perturbação entre o eu e o mundo externo, que se traduz na produção de uma realidade delirante e alucinatória (a loucura).

Freud completou esse edifício estrutural introduzindo nele um terceiro elemento: a perversão. Após ter feito da neurose, em 1905, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, o “negativo da perversão”, ele caracterizou esta última como uma manifestação bruta e não recalcada da sexualidade infantil (perversa polimorfa). Nessa perspectiva, os três termos acabariam sendo reunidos: a neurose como resultado de um conflito com recalque, a psicose como reconstrução de uma realidade alucinatória, e a perversão como renegação da castração, com uma fixação na sexualidade infantil.

A partir da década de 1950, esse modelo do freudismo clássico foi questionado, em especial nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, com o aparecimento (...) da noção de borderline.

ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Verbete: Neurose. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 534, 535 e 536.

 

PSICOSE

 

Termo introduzido em 1845 pelo psiquiatra austríaco Ernst von Feuchtersleben (1806-1849) para substituir o vocábulo loucura e definir os doentes da alma numa perspectiva psiquiátrica. (...) O termo psicose designou inicialmente o conjunto das chamadas doenças mentais, fossem elas orgânicas (como a paralisia geral) ou mais especificamente mentais, restringindo-se depois às três grandes formas modernas da loucura: esquizofrenia, paranoia e psicose maníacodepressiva. (...)

Retomado por Sigmund Freud como um conceito a partir de 1894, o termo foi primeiramente empregado para designar a reconstrução inconsciente, por parte do sujeito, de uma realidade delirante ou alucinatória. Em seguida, inscreveu se no interior de uma estrutura tripartite, na qual se diferencia da neurose, por um lado, e da perversão, por outro.

Se o conceito de neurose é parte integrante do vocabulário da psicanálise, o da psicose aparece, a princípio, como um anexo proveniente do saber psiquiátrico e adequado a uma medicina manicomial, pautada numa concepção do sujeito que se organiza em torno da ideia de alienação e perda da razão.

Nascida de uma escuta “particular” do sofrimento humano, inventada por um homem (Freud) que não era psiquiatra e que não gostava nem dos psicóticos, como ele mesmo diria a Istvan Hollos[4], nem da loucura carcerária, a psicanálise desenvolveu-se no terreno de uma medicina de consultório, na qual o diálogo secreto entre o terapeuta e o paciente primava sobre a preocupação nosográfica. Sob esse aspecto, a neurose histérica das mulheres da burguesia vienense tratadas por Freud e Josef Breuer em nada se assemelhava à loucura histérica, muito próxima da psicose, posta em cena por Jean Martin Charcot na Salpêtrière[5]. Todavia, do ponto de vista doutrinal, as duas formas de doenças nervosas foram catalogadas sob o rótulo de neurose.

Freud dedicava toda a sua atenção à neurose, considerada curável, em detrimento da psicose, que ele julgava quase sempre incurável. As três grandes análises que ele efetivamente conduziu foram publicadas como casos de neurose - neurose histérica em Dora (Ida Bauer), neurose obsessiva no Homem dos Ratos (Ernst Lanzer) e neurose infantil no Homem dos Lobos (Serguei Constantinovitch Pankejeff) -, enquanto seu único estudo redigido sobre um caso de psicose foi o comentário de um livro, Memórias de um doente dos nervos, escrito por um homem tomado de paranoia, Daniel Paul Schreber. (...)

É na correspondência de Freud com Jung que melhor se apreende a maneira como foi elaborada a doutrina freudiana da psicose, entre 1909 e 1911. Opondo-se a Eugen Bleuler, Freud escolheu a terminologia de Kraepelin, adotando a ideia de uma dissociação da consciência (à qual denominaria clivagem do eu), mas privilegiando o conceito de paranoia, em oposição à noção de esquizofrenia. A partir daí, ele fez da paranoia uma espécie de modelo estrutural da psicose em geral, assim como fizera da histeria o protótipo da neurose no sentido psicanalítico. Em 1911, no momento em que Bleuler publicava sua grande obra, Dementia praecox, Freud lançou suas Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (Dementia paranoides). Pois bem, nesse estudo, ele enunciou uma teoria quase completa do mecanismo do conhecimento paranoico, que lhe serviu para definir a psicose como um distúrbio entre o eu e o mundo externo. Em seguida, no contexto de sua segunda tópica e havendo elaborado uma nova teoria do narcisismo, Freud inscreveu a psicose numa estrutura tripartite, opondo-a à neurose, de um lado, e à perversão, de outro. Ela foi então definida como a reconstrução de uma realidade alucinatória na qual o sujeito fica unicamente voltado para si mesmo, numa situação sexual autoerótica: toma literalmente o próprio corpo (ou parte deste) como objeto de amor (sem alteridade possível). Ao lado da psicose, a neurose surge como o resultado de um conflito intrapsíquico, enquanto a perversão se apresenta como uma renegação da castração. (...)

Freud (...) diferenciou criteriosamente a psicose das outras duas entidades (perversão e neurose), mas, ao mesmo tempo, apagou o abismo criado pela psiquiatria entre a norma e a patologia. Sandor Ferenczi caracterizaria de maneira notável a eliminação dessa distinção, num texto de 1926 dedicado à contribuição da psicanálise para o movimento de higiene mental: “Foi a análise da atividade psíquica no sonho”, disse ele, “que fez desaparecer por completo o abismo entre doença mental e saúde mental, até então considerado intransponível. O mais normal dos homens torna-se psicótico durante a noite: tem alucinações, e sua personalidade, tanto no plano lógico quanto no ético e no estético, sofre uma transformação fundamental, assumindo, de modo geral, um caráter mais primitivo.”

Durante cinquenta anos, os herdeiros de Freud fariam questão de revisar a totalidade de sua doutrina, ora insistindo, como Lacan, no lugar da paternidade na gênese da psicose, ora, ao contrário, como Melanie Klein, situando a origem dela numa relação arcaica com a mãe.

ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Verbete: Psicose. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 621 e 622.



[1] Charcot sabia que a dissecação do sistema nervoso das histéricas não apresentava nenhuma diferença em relação às pessoas normais. A investigação anatomopatológica, portanto, não apontava nenhuma relação empiricamente constatável entre a histeria e um órgão qualquer: nenhuma alteração do útero, nem do cérebro, nem de qualquer outra estrutura corporal relacionada ao sistema nervoso. Mesmo assim, caracterizou a histeria como um problema neurológico, mas não no sentido de que trazia alguma transformação ou degeneração para os tecidos do sistema nervoso, ou para quaisquer outros tecidos do corpo, mas no sentido de uma neurose que alterava seus processos funcionais, isto é, o funcionamento neurológico do corpo como um todo.

[2] Presunção uterina: por milênios, a medicina associou a histeria a um problema do útero, o que está na própria origem etimológica da palavra: do grego, útero, hystera, ὑστέρα.

[3] A neurose atual, para Freud, não deve ser explicada por meio de conflitos arcaicos, mas surge da ausência ou da inadequação da vida sexual no presente.

[4] Istvan Hollos (1872-1957) foi um psicanalista húngaro, colega e interlocutor de Sandor Ferenczi. Hollos sempre se interessou, como terapeuta e pesquisador, pela questão da psicose. Esta orientação provocou uma carta famosa de Freud, na qual discorria sobre o tema, afirmando sua incapacidade de aplicar a psicanálise à terapia dos processos psicóticos. Tal carta, que se tornou célebre, continha a seguinte passagem: “Finalmente confessei a mim mesmo que não gostava desses doentes e que eles me irritavam por serem tão diferentes de mim e de tudo o que há de humano. É uma curiosa espécie de intolerância, que evidentemente me torna inapto para a psiquiatria [...]. Nesse aspecto, eu me comporto como faziam os médicos que nos precederam com os histéricos. Seria um resultado da escolha do intelecto, sempre mais claramente afirmada, a expressão de uma hostilidade para com o Isso?” ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Verbete: Hollos, Istvan. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 349 e 350.

[5] Hospital francês construído no séc. XVII, no qual trabalhou o neurologista Jean-Martin Charcot durante o século XIX, investigando a enigmática e desafiadora questão científica, para a época, da histeria.



NEUROSE E PSICOSE

 

         As relações das neuroses com as psicoses, assim como as do domínio neurótico e do domínio psicótico, só podem ser estudadas em psicanálise com uma elucidação desses dois termos, seguida de um comentário sobre os vínculos recíprocos que eles nutrem nas pesquisas de Sigmund Freud (...), e, por fim, uma clarificação atual.

         No tocante ao termo “neurose”, a ideia de que se deve isolar em medicina uma categoria nosográfica[1] e etiopatogênica[2] própria das doenças ligadas a ataques funcionais, sem qualquer lesão manifesta, afetando os nervos[3], (...) apareceu na Idade Clássica com as obras de Thomas Willis[4] (1622-1675) e de Thomas Sydenham[5] (1634-1689); eles incluíram nessa categoria, por exemplo, a histeria, à qual negam toda origem uterina, e a hipocondria, para a qual rejeitam essa causa hepática que seu nome sugeria desde a Antiguidade. Quanto ao próprio nome de neurose, foi criado por William Cullen[6] (1710-1790), em inglês neurosis – em 1777 (...).

         O termo “psicose” é mais tardio. Criado em 1845 por Ernst von Feuchtersleben[7] (1806-1849), ele designa de uma maneira muito geral as doenças do espírito Geisteskrankheiten, opondo-as às neuroses, doenças atribuídas então a uma perturbação funcional dos nervos periféricos. Assim, a palavra tornou-se sinônimo de alienação mental, sem mais detalhes. Quando, entre o último quartel do século XIX e a primeira metade do século XX, a psiquiatria destacou a pluralidade irredutível das doenças mentais, a palavra passou a designar tudo que, nesse domínio, difere seguramente das neuroses, dos estados demenciais e dos estados de retardamento mental, ou seja, o essencial dos pacientes hospitalizados: psicoses agudas (confusão mental, acessos delirantes, mania e melancolia) e psicoses crônicas (esquizofrenia, parafrenias, paranoia), continuando posto o problema de saber se se trata de uma simples enumeração ou de um grupo de distúrbios portadores de um processo mórbido comum, sem falar das questões de etiologia[8] (...).

         No desenvolvimento da psicanálise, as relações do domínio psicótico com o domínio neurótico começaram por ser concebidas como relações de exclusão, um abismo separando o primeiro domínio do segundo, à maneira daquele corte que, em zoologia, isola os vertebrados dos invertebrados; depois, as concepções complicaram-se pouco a pouco, aproximando por um lado um registro do outro, mas perguntando-se, por outro, se não se deveria reservar um certo lugar para o registro das perversões, para não falar das dificuldades suscitadas mais tarde, quando foi preciso encontrar algum lugar para os estados-limites, tendo sido eles próprios descobertos graças a sujeitos de aparência neurótica, aceitos como tal em análise e nela descompensando  de maneira psicótica, como lembram as pesquisas de Otto Kernberg.

         Nos trabalhos iniciais de Freud, a distinção radical é, por assim dizer, consubstancial com as descobertas fundadoras: as neuroses correspondem a conflitos interiores do sujeito, mas cujo significado inicial lhe escapa, remetendo para conflitos da primeira infância, recalcados, mas acessíveis em geral a uma relação transferencial, e justificável, portanto, de um tratamento psicanalítico, ao passo que as psicoses estão relacionadas com os conflitos entre o sujeito e o mundo, muito pouco acessíveis ou inacessíveis a uma relação transferencial e contraindicado, por conseguinte, o tratamento psicanalítico, mesmo que os depoimentos de doentes psicóticos revelem de forma direta e imediata aspectos do inconsciente que nos neuróticos só aparecem após numerosas sessões. (...)

         Ulteriormente, a relativa simplicidade dessas distinções e sua propensão para se afirmarem como radicais se atenuaram, fazendo com que esse campo perdesse parte do seu vigor, ao ser questionada a oposição absoluta entre ordem neurótica e ordem psicótica. (...) A evolução da concepção psicanalítica das perversões que conduziam a um primado da fixação na sexualidade infantil, onde elas se apresentavam como o inverso da neurose, até aos importantes papéis desempenhados pelo desmentido da realidade e a clivagem do Eu, processos vizinhos dos utilizados no registro psicótico, ocorriam de tal modo que a bela organização que prevalecia outrora se desmembrava.

MIJOLLA, Alain (Org.) Dicionário Internacional da Psicanálise. Vol. M-Z. Rio de Janeiro: Imago, 2005. Verbete: Psicótico/neurótico. p. 1495, 1496 e 1497.



[1] Nosografia: descrição e classificação das doenças.

[2] Etiopatogenia: estudo das causas e do desenvolvimento das doenças.

[3] Doença neurológica funcional: assim Jean-Martin Charcot classificou a histeria, considerando a ausência de qualquer lesão manifesta em um período de predomínio da medicina anatomopatológica.

[4] Thomas Willis foi um médico inglês.

[5] Thomas Sydenham foi um médico inglês.

[6] William Cullen foi um médico escocês.

[7] Ernst von Feuchtersleben foi um poeta, médico e filósofo austríaco.

[8] Etiologia: estudo das causas das doenças.



CASOS-LIMITE / ESTADOS-LIMITE/ BORDERLINE /

CASOS LIMÍTROFES/ ORGANIZAÇÃO FRONTEIRIÇA

 

“Caso-limite”: expressão utilizada a maioria das vezes para designar afecções psicopatológicas situadas no limite entre neurose e psicose, particularmente esquizofrenias latentes que apresentam uma sintomatologia de feição neurótica.

A expressão “caso-limite” não possui uma significação nosográfica rigorosa. As suas variações refletem as próprias incertezas do campo a que se aplica. De acordo com as suas concepções pessoais, os autores puderam englobar aqui as personalidades psicopáticas, perversas, delinquentes e os casos graves de neurose de caráter. Parece que, no uso mais corrente, a expressão tende a ser reservada para as esquizofrenias que se apresentam com uma sintomatologia neurótica.

A chamada categoria dos casos-limite tomou-se evidente em grande parte graças ao desenvolvimento da psicanálise. A investigação psicanalítica conseguiu, de fato, revelar uma estrutura psicótica nos casos de distúrbios neuróticos submetidos a tratamento. Do ponto de vista teórico, considera-se geralmente que, nesses casos, os sintomas neuróticos desempenham uma função defensiva contra a irrupção da psicose.

LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. Verbete: Caso-limite. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 60.

 

         A noção do borderline faz parte do vocabulário clínico norte-americano e anglo-saxão próprio da corrente da Self-Psychology e, sob certos aspectos, do pós-kleinismo da década de 1960. Perpassa igualmente o neofreudismo e o culturalismo e acabou se integrando à terminologia psicanalítica francesa, sob o nome de états-limites (no plural). O termo borderline (fronteira) designa distúrbios da personalidade e da identidade que se encontram na fronteira entre a neurose e a psicose. Fala-se também em casos fronteiriços [ou limítrofes], personalidades fronteiriças ou patologias fronteiriças.

Otto Fenichel foi um dos primeiros, em 1945, a sublinhar a existência desse tipo de patologia: “Existem personalidades neuróticas que, sem desenvolver uma psicose completa, possuem inclinações psicóticas, ou manifestam uma propensão a se servir de mecanismos esquizofrênicos em caso de frustração.” Essa noção foi consideravelmente desenvolvida, mais tarde, nos trabalhos de Heinz Kohut e Otto Kernberg, que propôs o termo “organização fronteiriça” para demonstrar com clareza que o estado borderline era estável e duradouro.

Foi o psicanalista norte-americano Harold Searles, especialista em esquizofrenia, quem produziu, nesse mesmo período, os trabalhos mais pertinentes a respeito dessa questão, a partir de uma longa prática na Chesnut Lodge Clinic, uma das mecas do tratamento psicanalítico das psicoses, onde trabalhou Frieda Fromm-Reichmann depois de sua emigração da Alemanha. Marcado pelo ensino de Harry Stack Sullivan, Searles desarticulou a definição clássica da loucura à maneira dos artífices da antipsiquiatria, mostrando que, nos pacientes borderline, o eu funciona de maneira autística. Em seu célebre livro de 1965, O esforço de enlouquecer o outro, ele criticou a ortodoxia freudiana sublinhando como a prática ortodoxa da transferência pode desembocar numa estratégia de terror, que consiste em tornar o paciente dependente do analista. Contrastou com isso uma prática da análise inspirada no tratamento dos estados borderline e fundamentada na ideia de reconhecimento mútuo entre o terapeuta e o paciente.

ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Verbete: Borderline. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 83.


RESUMO DO TEXTO NEUROSE E PSICOSE (1924) DE FREUD

 

Neste breve artigo, Freud integra as recentes noções de ego, id e superego à sua concepção da neurose e da psicose. O que diferencia estas duas últimas e constitui seu efeito patógeno, segundo ele, provém de que na neurose "o ego mantém sua fidelidade em face do mundo exterior e procura amordaçar o id", enquanto na psicose "o ego se deixa dominar pelo id ao mesmo tempo em que se separa da realidade". Vamos examinar isto mais detalhadamente.

(...) Freud pondera que o ego entra em conflito com o id porque recusa uma moção pulsional indesejável, da qual se protege reprimindo-a no inconsciente; porém, o reprimido se revolta e reaparece sob a forma de um sintoma substituto que o representa. O sintoma é, portanto, fruto de um compromisso.

Quanto ao que se passa na psicose, Freud considera, ao contrário, que é a relação entre o ego e a percepção do mundo exterior que é perturbada. Por exemplo, na psicose alucinatória aguda, não apenas a realidade externa não é mais percebida, como também o mundo interno, que provém de percepções anteriores conservadas na memória. Diante disso, "o ego cria autocraticamente para si um novo mundo, exterior e interior ao mesmo tempo; há dois fatos que não deixam nenhuma dúvida: esse novo mundo é construído seguindo os desejos do id, e o motivo dessa ruptura com o mundo exterior é que a realidade se opôs ao desejo de uma forma grave, vista como intolerável".

Para Freud, a causa desencadeante de uma neurose ou de uma psicose é sempre a frustração: "a não realização de um desses desejos infantis eternamente indomados", frustração que costuma vir de fora, mesmo que se trate do superego que, em última análise, representa as exigências da realidade exterior.

A partir desses esclarecimentos, Freud delimita uma nova entidade psicopatológica ligada ao conflito entre o ego e o superego, "as neuropsicoses narcísicas" (...). Se as neuroses e as psicoses nascem de conflitos entre o ego e as diversas instâncias que o dominam - superego e id - podemos nos perguntar com que meios o ego consegue escapar disso sem adoecer. Evidentemente, o resultado depende de um fator econômico, isto é, das energias presentes. Mas Freud vai mais longe e postula que é possível para o ego evitar a ruptura "deformando a si próprio, aceitando abrir mão de sua unidade e eventualmente até mesmo se rompendo ou se fragmentando". Ele acrescenta que, assim, "as loucuras dos homens" seriam tratadas da mesma maneira que suas perversões sexuais. Qual é, portanto, o mecanismo, análogo à repressão, pelo qual o ego se separa do mundo exterior? "Ele deveria consistir, como na repressão, de uma retirada pelo ego do investimento que ele havia situado fora". É nesses termos que Freud anuncia a introdução próxima das noções de "recusa da realidade" e de "clivagem do ego", que esclarecerá em Fetichismo, em 1927.

 

RESUMO DO TEXTO A PERDA DA REALIDADE NA NEUROSE E PSICOSE (1924) DE FREUD

 

No artigo anterior, Freud dizia que a diferença entre a psicose e a neurose consistia em que na psicose o ego se recusava a perceber a realidade exterior e que na neurose ele a aceitava. No presente artigo, ele relativiza o que havia afirmado e considera agora que existe uma perturbação da percepção do mundo real nas duas afecções, mas que essa perturbação é de natureza diferente. Ele tenta explicar aqui em que consiste essa diferença.

Ele começa por distinguir dois momentos nos modos de entrada na neurose e na psicose. Na neurose, existe efetivamente uma perda da realidade no primeiro momento, seguida da formação de um compromisso, o sintoma. Mas, nesse primeiro momento, é o fragmento de realidade evitado que produz a repressão. Ele dá como exemplo o caso de uma moça, apaixonada por seu cunhado, que ficou transtornada com a ideia que lhe ocorreu diante do leito de morte de sua irmã: "Agora ele está livre e pode se casar com você". A cena logo é esquecida, e aparecem as dores histéricas. Freud assinala que o fato de reprimir o amor pelo cunhado teve como consequência que a moça evitasse o confronto com a realidade, isto é, pensar que agora seu cunhado estaria livre: "Mas o que é instrutivo aqui é justamente constatar a via pela qual a neurose tenta regular o conflito. Ela desvaloriza a modificação real reprimindo a reivindicação pulsional em questão, a saber, o amor pelo cunhado. A reação psicótica teria sido negar o fato da morte de sua irmã".

Freud examina em seguida o que se passa na psicose e introduz a noção de "negação da realidade" como característica da recusa de perceber a realidade exterior na psicose. Segundo ele, a entrada na psicose também ocorre em dois momentos: o primeiro separa o ego da realidade por meio da negação, o segundo cria uma nova realidade - um delírio ou uma alucinação - a fim de "reparar os desgastes" e compensar a perda da realidade. Em outras palavras, na neurose um fragmento significativo da realidade é evitado em forma de fuga, enquanto na psicose esse fragmento negado é reconstruído: "A neurose não nega a realidade, só não quer saber nada sobre ela; a psicose a nega e procura substituí-la". Quanto ao comportamento dito normal, ele adota aspectos das duas reações: como na neurose ele não nega a realidade, mas, como na psicose, tenta reconstruí-la e modificá-la.

A neurose e a psicose apresentam uma outra característica comum, isto é, a reação de angústia que acompanha os sintomas. Essa angústia provém do "retorno do reprimido" para a primeira e do retorno daquilo que foi negado para a segunda. Embora o retorno do reprimido seja uma noção freudiana clássica, é a primeira vez que Freud relata um retorno análogo referindo-se ao que foi objeto de uma negação na psicose: "Provavelmente, na psicose, o fragmento de realidade repelido está sempre forçando a abertura para a vida psíquica, como faz na neurose a pulsão reprimida, e é por isso que o efeito é o mesmo nos dois casos". O efeito de que se trata é o aparecimento da angústia.

Finalmente, diz Freud, a distinção não é tão nítida entre neurose e psicose no que diz respeito à criação de uma nova realidade, como na psicose, pois a neurose é destinada igualmente a substituir a realidade insustentável. A diferença está em que, na psicose, a doença cria uma nova realidade através do delírio ou da alucinação, enquanto que na neurose o doente tenta restabelecer uma nova realidade através do mundo fantasioso. Esse mundo fantasioso constitui um "magazine"[1] onde o paciente neurótico, assim como o paciente psicótico, obtém suas fantasias. Contudo, no caso do paciente neurótico, seu ego não está totalmente separado da realidade, como está o ego do psicótico. Sem dúvida, o psicótico também recorre a um tal magazine, explica Freud, mas o neurótico utiliza esse novo mundo fantasioso como a criança brinca, e lhe empresta um sentido "simbólico". Em outras palavras, o neurótico consegue estabelecer uma diferença entre realidade e fantasia, ao contrário do psicótico que delira ou alucina.

QUINODOZ, Jean-Michel. Ler Freud: guia de leitura da obra de S. Freud. Porto Alegre: Artmed, 2007. p. 266 a 268.



[1] Magazine: estabelecimento comercial com exposição de variados produtos à venda; ou revista de publicação periódica que expõe ao público, com ilustrações, assuntos variados.



FORCLUSÃO OU FORACLUSÃO

 

Forclusão: termo introduzido por Jacques Lacan. Mecanismo específico que estaria na origem do fato psicótico; consistiria numa rejeição primordial de um “significante” fundamental (por exemplo: o falo enquanto significante do complexo de castração) para fora do universo simbólico do sujeito. A forclusão distinguir-se-ia do recalque em dois sentidos:

 1) Os significantes forcluídos não são integrados no inconsciente do sujeito;

 2) Não retornam “do interior”, mas no seio do real, especialmente no fenômeno alucinatório.

         J. Lacan invoca a utilização que Freud faz por vezes do termo Verwerfung em relação com a psicose, e propõe como equivalente francês o termo forclusion.

A filiação freudiana invocada neste ponto por J. Lacan exige duas séries de observações acerca da terminologia e da concepção freudiana da defesa psicótica.

I - Uma pesquisa terminológica no conjunto dos textos freudianos permite chegar às seguintes conclusões:

1) O termo Verwerfung (ou o verbo verwerfen) é usado por Freud em acepções bastante variadas, que podemos reduzir esquematicamente a três:

 a) No sentido bastante frouxo de uma recusa que se pode operar, por exemplo, na forma do recalque;

 b) No sentido de uma rejeição sob a forma do juízo consciente de condenação. Encontramos antes nesta acepção a palavra composta Urteilsverwerfung, que o próprio Freud indica ser sinônima de Verurteilung (juízo de condenação);

 c) O sentido salientado por J. Lacan encontra-se melhor confirmado em outros textos. Assim, em As psiconeuroses de defesa (Die Abwehr-Neuropsychosen, 1894), Freud escreve a propósito da psicose: “Existe uma espécie de defesa muito mais enérgica e muito mais eficaz que consiste no fato de que o ego rejeita (verwirft) a representação insuportável e ao mesmo tempo o seu afeto, e se conduz como se a representação nunca tivesse chegado ao ego.”

O texto em que Lacan preferiu apoiar-se para promover a noção de forclusion é o de O homem dos lobos, em que as palavras verwerfen e Verwerfung surgem por diversas vezes. A passagem mais demonstrativa é sem dúvida aquela em que Freud evoca a coexistência no sujeito de diversas atitudes para com a castração: “... a terceira corrente, a mais antiga e a mais profunda, que tinha rejeitado pura e simplesmente (verworfenhatte) a castração e na qual não havia ainda julgamento sobre a realidade desta, essa corrente era certamente ainda reativável. Referi em outro texto uma alucinação que este paciente tinha tido com a idade de cinco anos...”.

 2) Encontramos em Freud outros termos, além de Verwerfung, num sentido que parece autorizar, segundo o contexto, uma aproximação com o conceito de forclusão:

 Ablehnen (afastar, declinar);

Aufheben (suprimir, abolir);

Verleugnen (renegar, recusar).

Em conclusão, podemos verificar, limitando-nos ao ponto de vista terminológico, que nem sempre o uso do termo Verwerfung abrange a ideia expressa por forclusão e que, inversamente, outras formas freudianas designam o que Lacan procura evidenciar.

II - Além desta simples pesquisa terminológica, poderíamos mostrar que a introdução por Lacan do termo forclusão se situa no prolongamento de uma exigência constante em Freud: a de definir um mecanismo de defesa específico da psicose. Aqui as opções terminológicas de Freud podem ser por vezes enganadoras, particularmente quando fala de “recalque” a propósito da psicose. O próprio Freud mostrou esta ambiguidade: “... pode- se duvidar de que o processo chamado recalque tenha nas psicoses algo de comum com o recalque nas neuroses de transferência”.

1) Poderíamos encontrar ao longo de toda a obra de Freud essa linha de pensamento acerca da psicose. Nos primeiros textos freudianos ela é demonstrada particularmente pela discussão do mecanismo da projeção, esta concebida no psicótico como uma verdadeira rejeição que ocorre de imediato para o exterior, e não como um retorno secundário do recalcado inconsciente. Ulteriormente, quando Freud tender a reinterpretar a projeção como um simples momento secundário do recalque neurótico, ver-se-á obrigado a admitir que a projeção - tomada neste sentido - já não é o fator propulsor essencial da psicose: “Não era exato dizer que a sensação reprimida (unterdrückt) no interior era projetada para o exterior; reconhecemos antes que o que foi abolido (das Aufgehobene) no interior volta do exterior.”

As expressões “desinvestimento da realidade” e “perda da realidade” devem ser igualmente compreendidas como designando este mecanismo primário de separação e de rejeição para o exterior da “percepção” insuportável.

Freud irá centrar, nos seus últimos trabalhos, sua reflexão em torno da noção de Verleugnung ou “recusa da realidade”. Embora o estude principalmente no caso de fetichismo, indica explicitamente que esse mecanismo cria um parentesco entre esta perversão e a psicose. A recusa oposta pela criança, pelo fetichista, pelo psicótico, a esta “realidade” que seria a ausência de pênis na mulher é concebida como uma recusa em admitir a própria “percepção” e a fortiori em tirar a sua consequência, quer dizer, a “teoria sexual infantil” da castração. Freud contrapõe em 1938 dois modos de defesa: “repelir uma exigência pulsional do mundo interior” e “recusar um fragmento do mundo exterior real”. Em 1894 ele já descrevia a defesa psicótica em termos quase idênticos: “O ego arranca-se à representação insuportável, mas esta está indissoluvelmente ligada a um fragmento da realidade e, realizando esta ação, o ego desligou-se também total ou parcialmente da realidade.”

2) Como conceber, em última análise, esta espécie de “recalque” no mundo exterior, simétrico do recalque neurótico? A maior parte das vezes é em termos econômicos que Freud o descreve: desinvestimento do que foi percebido, retirada narcísica da libido, talvez acompanhada de uma retirada do “interesse” não libidinal. Em outras ocasiões, Freud parece chegar àquilo a que se poderia chamar uma retirada de significação, uma recusa em atribuir um sentido ao que foi percebido. Aliás, estas duas concepções não se excluem no espírito de Freud: a retirada de investimento (Besetzung) é também uma retirada de significação (Bedeutung).

III — A noção de forclusão vem prolongar esta linha de pensamento freudiana, no quadro da teoria do “simbólico” de J. Lacan. Este autor apoia-se particularmente em textos de O homem dos lobos, em que Freud mostra como os elementos percebidos quando da cena primitiva só receberão “a posteriori” o seu sentido e a sua interpretação. No momento da primeira experiência traumática - com um ano e meio - o sujeito era incapaz de elaborar, sob a forma de uma teoria da castração, esse dado bruto que seria a ausência de pênis na mãe. “Rejeita (verwarf) [a castração] e permanece no ponto de vista do coito pelo ânus [...]. Nisto, não foi propriamente emitido qualquer julgamento sobre a existência da castração, mas tudo se passou como se ela não tivesse existido.”

Nos diversos textos de Freud existe uma ambiguidade indubitável quanto ao que é rejeitado (verworfen) ou recusado (verleugnet) quando a criança não aceita a castração. Será a própria castração?  Neste caso, seria uma verdadeira teoria interpretativa dos fatos que seria rejeitada e não uma simples percepção. Tratar-se-á da “falta de pênis” na mulher? Mas então é difícil falar de uma “percepção” que seria recusada, porque uma ausência só é um fato perceptivo na medida em que é relacionada com uma presença possível.

A interpretação de Lacan permitiria encontrar uma solução para as dificuldades que acabamos de evidenciar. Apoiando-se no texto de Freud sobre A negação (Die Verneinung, 1925), ele define a forclusão na sua relação com um “processo primário” que compreende duas operações complementares: “a Einbeziehung ins Ich, a introdução no sujeito, e a Awsstossung aus dem Ich, a expulsão para fora do sujeito”. A primeira destas operações é aquilo a que Lacan chama também “simbolização”, ou Bejahung (posição, afirmação) “primária”. A segunda “... constitui o real na medida em que ele é o domínio que subsiste fora da simbolização”. A forclusão consiste então em não simbolizar o que deveria sê-lo (a castração): é uma “abolição simbólica”. Daí a fórmula que Lacan (traduzindo para a sua linguagem a passagem de Freud que acima lembramos: “... não era exato dizer...”) apresenta da alucinação: “... o que foi forcluído do simbólico reaparece no real”.

J. Lacan desenvolveu posteriormente a noção de forclusão, no quadro de concepções linguísticas, no seu artigo D ’une question préliminaire à tout traitement possible de la psychose (De uma questão preliminar a qualquer tratamento possível da psicose).

LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2016. Verbete: Forclusão. p. 194 a 197.

 

         O termo (...) forclusão se origina no vocabulário jurídico. Significa o encerramento de uma ação judicial na qual uma das partes não respeita os prazos legais para cumprir certas formalidades. A parte em questão fica excluída do direito de discutir no âmbito de um litígio, em virtude de não ter respeitado tais prazos; declara-se “a foro exclusio”; daí o termo repúdio, ou, mais exatamente, forclusão, que Lacan introduz na psicanálise. (...)

         Freud quer diferenciar o mecanismo que opera na neurose daquele que o faz na psicose: para a primeira, propõe a repressão, e, para a segunda, a rejeição [Verwerfung]. Por um lado, o reprimido retorna sob a forma das diversas produções do inconsciente, e o sujeito, embora essas sejam diferentes de seu eu consciente, aceita-as como próprias, provenientes do seu “interior”. Por outro lado, quando o mecanismo é a rejeição, aquilo que foi suprimido retorna do exterior, e o sujeito não o reconhece como próprio. O exterior se torna um espaço forâneo (exterior, estranho, estrangeiro) e inquietante, persecutório e inabitável, e diante disso Freud não se contenta com pensar em uma simples ‘projeção”. Lacan chama esse mecanismo de forclusão.

NOS, Silvia. Tudo que você precisa saber sobre psicanálise. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018. p. 166 e 167.

 

Foraclusão: conceito forjado por Jacques Lacan para designar um mecanismo específico da psicose, através do qual se produz a rejeição de um significante fundamental para fora do universo simbólico do sujeito. Quando essa rejeição se produz, o significante é foracluído. Não é integrado no inconsciente, como no recalque, e retorna sob forma alucinatória no real do sujeito. No Brasil também se usam “forclusão”, “repúdio”, “rejeição” e “preclusão”.

O termo foraclusão foi introduzido pela primeira vez por Jacques Lacan, em 4 de julho de 1956, na última sessão de seu seminário dedicado às psicoses e à leitura do comentário de Sigmund Freud sobre a paranoia do jurista Daniel Paul Schreber.

Para compreender a gênese desse conceito, há que relacioná-lo com a utilização que Hippolyte Bernheim fez, em 1895, da noção de alucinação negativa: esta designa a ausência de percepção de um objeto presente no campo do sujeito após a hipnose. Freud retomou o termo, porém não mais o empregou a partir de 1917, na medida em que, em 1914, propôs uma nova classificação das neuroses, psicoses e perversões no âmbito de sua teoria da castração. Deu então o nome de Verneinung ao mecanismo verbal pelo qual o recalcado é reconhecido de maneira negativa pelo sujeito, sem no entanto ser aceito: “Não é meu pai.” Em 1934, o termo foi traduzido em francês por négation [negação]. Quanto à renegação (Verleugnung), Freud a caracterizava como a recusa, por parte do sujeito, a reconhecer a realidade de uma percepção negativa - por exemplo, a ausência de pênis na mulher. (...) Faltava engendrar um termo específico para designar o mecanismo de rejeição próprio da psicose: essa palavra, com efeito, não figurava no vocabulário freudiano, ainda que Freud procurasse elaborar seu conceito. (...)

Em 3 de fevereiro de 1954, Lacan começou a atualizar a questão do foraclusivo (...) por ocasião de um debate com o filósofo hegeliano Jean Hyppolite (1907-1968). (...) Lacan inspirou-se no trabalho de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), Phénoménologie de la perception, e sobretudo nas páginas desse livro dedicadas à alucinação como “fenômeno de desintegração do real”, componente da intencionalidade do sujeito.

Na análise do caso do Homem dos Lobos, publicada em 1918, Freud explicou que a gênese do reconhecimento e do desconhecimento da castração em seu paciente passava por uma atitude de rejeição (ou Verwerfung) que consistia em só ver a sexualidade pelo prisma de uma teoria infantil: o comércio sexual pelo ânus. Para ilustrar sua colocação, ele evocou uma alucinação que seu paciente Serguei Constantinovitch Pankejeff tivera na infância. Este “vira” seu dedo mínimo cortado por seu canivete, apercebendo-se em seguida da inexistência do ferimento. A propósito da “rejeição de uma realidade apresentada como inexistente”, Freud sublinhou que isso não era um recalcamento, porque “eine Verdrängung ist etwas an deres als eine Verwerfung” (um recalque é algo diferente de uma rejeição).

Comentando esse texto em seu diálogo de 1954 com Hyppolite, Lacan forneceu como correspondente francês de Verwerfung a palavra retranchement [supressão, eliminação]. Dois anos depois, retomou a distinção freudiana entre neurose e psicose (...). Por fim, depois de comentar longamente a paranoia de Schreber e inventar o conceito de Nome-do-Pai, Lacan propôs traduzir Verwerfung por foraclusão. Entendia por isso o mecanismo específico da psicose, definido a partir da paranoia, que consiste na rejeição primordial de um significante fundamental para fora do universo simbólico do sujeito. Lacan distinguia esse mecanismo do recalque, sublinhando que, no primeiro caso, o significante foracluído ou os significantes que o representam não pertencem ao inconsciente do sujeito, mas retornam (no real) por ocasião de uma alucinação ou um delírio que invadem a fala ou a percepção do sujeito.

ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Verbete: Foraclusão. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 246.


CLIVAGEM DO EU E RECUSA DA REALIDADE

 

Sabe-se que Bleuler[1] utilizou o termo Spaltung (clivagem) para designar o sintoma fundamental, segundo ele, do grupo de afecções a que chamou esquizofrenia. Para este autor, Spaltung faz mais do que exprimir um dado da observação: implica uma certa hipótese sobre o funcionamento mental. Sob esse aspecto, a analogia apresentada pelo tipo de explicação proposta por Bleuler para traduzir a Spaltung esquizofrênica (...) não pode deixar de impressionar. (...)

A noção de clivagem do ego é definida por Freud principalmente nos artigos Fetichismo (Fetischismus, 1927), A divisão do ego no processo de defesa (Die Ichspaltung im Abivehrvorgang, 1938) e em Esboço de psicanálise (Abriss der Psychoanalyse, 1938), no quadro de uma reflexão sobre as psicoses e o fetichismo. Segundo Freud, estas afecções põem em causa principalmente as relações entre o ego e a “realidade”. E a partir delas que Freud define de maneira cada vez mais afirmativa a existência de um mecanismo específico, a recusa (Verleugnung), cujo protótipo é a recusa da castração.

Ora, a recusa por si só não traduz o que a clínica observa nas psicoses e no fetichismo. Com efeito, nota Freud, “o problema da psicose seria simples e claro se o ego pudesse desligar-se totalmente da realidade, mas isso acontece raramente, talvez nunca”. Em toda psicose, mesmo na mais profunda, pode-se constatar a existência de duas atitudes psíquicas: “... uma que leva em conta a realidade, a atitude normal, a outra que, sob a influência das pulsões, desliga o ego da realidade”. É esta segunda atitude que se traduz na produção de uma nova realidade delirante. No fetichismo, a coexistência de duas atitudes contraditórias no seio do ego é constatada por Freud em relação à “realidade” da castração: “Por um lado [os fetichistas] recusam o fato da sua percepção que lhes mostrou a falta de pênis no órgão genital feminino”; esta recusa traduz-se na criação do fetiche, substituto do pênis da mulher; mas “... por outro lado, reconhecem a falta de pênis na mulher, da qual tiram as consequências corretas. Estas duas atitudes persistem lado a lado ao longo de toda a vida sem se influenciarem mutuamente. É a isso que se pode chamar uma clivagem do ego”. Esta clivagem, como se vê, não é propriamente uma defesa do ego, mas uma maneira de fazer coexistir dois processos de defesa, um voltado para a realidade (recusa), outro para a pulsão, este podendo redundar, aliás, na formação de sintomas neuróticos (sintoma fóbico, por exemplo). Freud, ao introduzir a expressão “clivagem do ego”, chegou a indagar se aquilo que estava assim introduzindo era “... há muito conhecido e evidente ou totalmente novo e surpreendente”. Com efeito, a existência no seio de um mesmo sujeito de “... duas atitudes psíquicas diferentes, opostas e independentes uma da outra” está na própria base da teoria psicanalítica da pessoa. Mas, ao descrever uma clivagem do ego (intrassistêmica) e não uma clivagem entre instâncias (entre o ego e o id), Freud quer pôr em evidência um processo novo em relação ao modelo do recalque e do retorno do recalcado. Com efeito, uma das particularidades deste processo é não levar à formação de um compromisso entre as duas atitudes em presença, mas mantê-las simultaneamente sem que entre elas se estabeleça relação dialética. Não deixa de ser interessante notar que foi no campo da psicose (justamente aquele em que Bleuler, numa concepção teórica diferente, fala também de Spaltung) que Freud sentiu a necessidade de forjar uma determinada concepção da clivagem do ego.

LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2016. Verbete: Clivagem do Ego. p. 66 e 67.

 

Clivagem do eu: termo introduzido por Sigmund Freud em 1927 para designar um fenômeno próprio do fetichismo, da psicose e também da perversão em geral, e que se traduz pela coexistência, no cerne do eu, de duas atitudes contraditórias, uma que consiste em recusar a realidade (renegação), outra, em aceitá-la.

As ideias de Spaltung (clivagem), dissociação e discordância foram inicialmente desenvolvidas, no fim do século XIX, por todas as doutrinas que estudavam o automatismo mental, a hipnose e as personalidades múltiplas. De Pierre Janet a Josef Breuer, todos os clínicos da consciência dupla (inclusive o jovem Freud) viam nesse fenômeno - o da coexistência de dois campos ou duas personalidades que se ignoravam mutuamente - uma ruptura da unidade psíquica, que acarretava um distúrbio do pensamento e da atividade associativa e conduzia o sujeito à alienação mental e, portanto, à psicose. Foi nesse contexto que Eugen Bleuler fez da Spaltung o distúrbio principal e primário da esquizofrenia (do grego skhizein: fender), isto é, da forma de loucura caracterizada por um rompimento de qualquer contato entre o doente e o mundo externo. Um ano depois, o psiquiatra francês Philippe Chaslin (1857-1923) chamou de discordância um fenômeno idêntico, ao qual deu o nome de loucura discordante.

Partindo dessa terminologia e da descrição, no campo da histeria, de fenômenos idênticos, Freud foi como que conduzido a introduzir a dissociação (Spaltung) no eu (Ich). Assim, no contexto de sua segunda tópica e de uma reflexão sobre a renegação e o fetichismo, ele cunhou o termo clivagem do eu (Ichspaltung). Através disso, remeteu a discordância ao cerne do eu, enquanto a psiquiatria dinâmica a situava entre duas instâncias e a caracterizava como um estado de incoerência, mais do que como um fenômeno estrutural.

Melanie Klein retomou a noção freudiana e deslocou a clivagem para o objeto, assim elaborando sua teoria dos objetos bons e maus, enquanto Jacques Lacan, marcado pela tradição psiquiátrica francesa, empregou o termo discordância, inicialmente em 1932, para definir uma diferença (da loucura) em relação a uma norma. Vinte anos depois, criou uma coleção de palavras para designar as diferentes modalidades de clivagem, não apenas do eu, mas também do sujeito. No contexto de sua teoria do significante, com efeito, mostrou que o sujeito humano é duplamente dividido - uma primeira instância separa o eu imaginário do sujeito do inconsciente, e uma segunda instância se inscreve no próprio interior do sujeito do inconsciente, para representar sua divisão original. A essa segunda divisão ele chamou refenda [refente], a partir do inglês fading (to fade, perder a luminosidade [esmaecer, desvanecer-se]), para dar a ideia do esvaecimento (do sujeito e de seu desejo), próxima do que Ernest Jones chamava de afânise.

Assim como Melanie Klein, Lacan estendeu a noção de clivagem à própria estrutura do indivíduo em sua relação com o outro, ao passo que Freud, embora tenha aberto caminho para esse tipo de generalização, utilizou-a essencialmente na clínica da psicose e da perversão.

ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Verbete: Clivagem (do eu). Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 121.



[1] Paul Eugen Bleuler (1857 – 1939) foi um psiquiatra suíço que criou os conceitos de “esquizofrenia”, “ambivalência” e “autismo”. Manteve relações diretas com Jung, e suas concepções psiquiátricas terminaram influenciando a psicanálise.


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