NEUROSE E PSICOSE
NEUROSE
Termo proposto em 1769 pelo médico escocês
William Cullen (1710-1790) para definir as doenças nervosas que acarretavam
distúrbios da personalidade. Foi popularizado na França por Philippe Pinel
(1745-1826) em 1785. Retomado como conceito por Sigmund Freud a partir de 1893,
o termo é empregado para designar uma doença nervosa cujos sintomas simbolizam
um conflito psíquico recalcado, de origem infantil.
Com o desenvolvimento da psicanálise, o
conceito evoluiu, até finalmente encontrar lugar no interior de uma estrutura
tripartite, ao lado da psicose e da perversão. (...)
O termo neurose foi inventado por William
Cullen, durante a segunda metade do século XVIII, e atesta a renovação do olhar
clínico que pusera em voga a abertura de cadáveres e, portanto, a observação
“direta” e post mortem dos órgãos que tinham sofrido de diversas
patologias. Daí a ideia de criar uma palavra genérica para designar o conjunto
dos problemas da sensibilidade e da motricidade que não apresentavam febre nem
relação com qualquer órgão.
Assim nasceu a definição moderna da
neurose, que permitiu construir uma nosografia pela negativa, incluindo em seu
campo o domínio das doenças para as quais a nova medicina anatomopatológica não
encontrava nenhuma explicação orgânica. Philippe Pinel logo retomou o termo e,
um século depois, Jean Martin Charcot o popularizou, fazendo da histeria uma
doença funcional e, portanto, uma neurose[1] (...).
Após seu encontro com Charcot, Freud
também começou a definir a histeria como uma neurose (...). Ele desvinculou
definitivamente a histeria da presunção uterina[2], associando-lhe uma
etiologia sexual e um enraizamento no inconsciente. A partir daí e após a
publicação dos Estudos sobre a histeria, em 1895, a histeria no sentido
freudiano tornou-se o protótipo, para o discurso psicanalítico, da neurose como
tal. Esta passou desde então a ser definida como uma doença nervosa na qual,
antes de mais nada, um trauma intervinha. Daí a ideia, defendida por Freud, de
que os pacientes afetados pela neurose histérica, em geral mulheres, teriam
sofrido sevícias sexuais reais em sua infância. Mais tarde, depois do abandono
dessa chamada teoria da sedução, em 1897, a neurose tornou-se uma
afecção ligada a um conflito psíquico inconsciente, de origem infantil e dotado
de uma causa sexual. Ela resulta de um mecanismo de defesa contra a angústia e
de uma formação de compromisso entre essa defesa e a possível realização de um
desejo.
Paralelamente, a partir de 1894, Freud
adotou o termo psiconeurose, que depois abandonaria, para ampliar a definição
da neurose. De um lado, classificou fenômenos de defesa (ou psiconeuroses de
defesa) decorrentes de uma situação edipiana (fobia, obsessões, histeria), e de
outro, problemáticas narcísicas (ou psiconeuroses narcísicas), decorrentes de
uma situação pré-edipiana. As primeiras seriam catalogadas como neuroses e as
últimas se classificariam na categoria das psicoses, com as novas definições, no
início do século XX, da paranoia e da esquizofrenia.
Ao lado da histeria e no quadro das
psiconeuroses de defesa, Freud instaurou, já em 1894, uma definição da neurose
obsessiva: “Foi-me preciso começar meu trabalho por uma inovação nosográfica.
Ao lado da histeria, encontrei razões para situar a neurose das obsessões (Zwangsneurose)
como uma afecção autônoma e independente, embora a maioria dos autores
classifique as obsessões entre as síndromes que constituem a degenerescência
mental” (...). Quatro anos depois, em 1898, Freud empregou o termo neurose
atual para designar (...) neuroses em que o conflito provinha da atualidade do
sujeito, e não de sua história infantil, e nas quais o sintoma não se
manifestava de maneira simbolizada[3].
Entre 1914 e 1924, Freud conservou a
definição clássica que dera à neurose nos primórdios de suas descobertas e de
suas experiências clínicas. Todavia, após os grandes debates com Carl Gustav
Jung e Eugen Bleuler sobre a dissociação, o autoerotismo e o narcisismo, e
depois, com a entrada em cena da segunda tópica, organizada em torno da
trilogia composta pelo eu, isso e supereu, Freud deu uma organização estrutural
ao par formado pela neurose e pela psicose, às quais acrescentou a perversão.
(...)
Freud passou a definir a oposição entre
neurose e psicose como o resultado de duas atitudes provenientes de uma
clivagem do eu. Na neurose, há um conflito entre o eu e o isso e a coabitação
de uma atitude que contraria a exigência pulsional com outra que leva em conta
a realidade, ao passo que, na psicose, há uma perturbação entre o eu e o mundo
externo, que se traduz na produção de uma realidade delirante e alucinatória (a
loucura).
Freud completou esse edifício estrutural
introduzindo nele um terceiro elemento: a perversão. Após ter feito da neurose,
em 1905, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, o “negativo da
perversão”, ele caracterizou esta última como uma manifestação bruta e não
recalcada da sexualidade infantil (perversa polimorfa). Nessa perspectiva, os
três termos acabariam sendo reunidos: a neurose como resultado de um conflito
com recalque, a psicose como reconstrução de uma realidade alucinatória, e a
perversão como renegação da castração, com uma fixação na sexualidade infantil.
A partir da década de 1950, esse modelo do
freudismo clássico foi questionado, em especial nos Estados Unidos e na
Grã-Bretanha, com o aparecimento (...) da noção de borderline.
ROUDINESCO,
Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Verbete: Neurose. Rio de Janeiro:
Zahar, 1998. p. 534, 535 e 536.
PSICOSE
Termo introduzido em 1845 pelo psiquiatra
austríaco Ernst von Feuchtersleben (1806-1849) para substituir o vocábulo
loucura e definir os doentes da alma numa perspectiva psiquiátrica. (...) O
termo psicose designou inicialmente o conjunto das chamadas doenças mentais,
fossem elas orgânicas (como a paralisia geral) ou mais especificamente mentais,
restringindo-se depois às três grandes formas modernas da loucura:
esquizofrenia, paranoia e psicose maníacodepressiva. (...)
Retomado por Sigmund Freud como um
conceito a partir de 1894, o termo foi primeiramente empregado para designar a
reconstrução inconsciente, por parte do sujeito, de uma realidade delirante ou
alucinatória. Em seguida, inscreveu se no interior de uma estrutura tripartite,
na qual se diferencia da neurose, por um lado, e da perversão, por outro.
Se o conceito de neurose é parte
integrante do vocabulário da psicanálise, o da psicose aparece, a princípio,
como um anexo proveniente do saber psiquiátrico e adequado a uma medicina
manicomial, pautada numa concepção do sujeito que se organiza em torno da ideia
de alienação e perda da razão.
Nascida de uma escuta “particular” do
sofrimento humano, inventada por um homem (Freud) que não era psiquiatra e que
não gostava nem dos psicóticos, como ele mesmo diria a Istvan Hollos[4], nem da loucura
carcerária, a psicanálise desenvolveu-se no terreno de uma medicina de
consultório, na qual o diálogo secreto entre o terapeuta e o paciente primava
sobre a preocupação nosográfica. Sob esse aspecto, a neurose histérica das
mulheres da burguesia vienense tratadas por Freud e Josef Breuer em nada se
assemelhava à loucura histérica, muito próxima da psicose, posta em cena por
Jean Martin Charcot na Salpêtrière[5]. Todavia, do ponto de
vista doutrinal, as duas formas de doenças nervosas foram catalogadas sob o
rótulo de neurose.
Freud dedicava toda a sua atenção à
neurose, considerada curável, em detrimento da psicose, que ele julgava quase
sempre incurável. As três grandes análises que ele efetivamente conduziu foram
publicadas como casos de neurose - neurose histérica em Dora (Ida Bauer),
neurose obsessiva no Homem dos Ratos (Ernst Lanzer) e neurose infantil no Homem
dos Lobos (Serguei Constantinovitch Pankejeff) -, enquanto seu único estudo
redigido sobre um caso de psicose foi o comentário de um livro, Memórias de
um doente dos nervos, escrito por um homem tomado de paranoia, Daniel Paul
Schreber. (...)
É na correspondência de Freud com Jung que
melhor se apreende a maneira como foi elaborada a doutrina freudiana da
psicose, entre 1909 e 1911. Opondo-se a Eugen Bleuler, Freud escolheu a
terminologia de Kraepelin, adotando a ideia de uma dissociação da consciência
(à qual denominaria clivagem do eu), mas privilegiando o conceito de
paranoia, em oposição à noção de esquizofrenia. A partir daí, ele fez da paranoia
uma espécie de modelo estrutural da psicose em geral, assim como fizera da
histeria o protótipo da neurose no sentido psicanalítico. Em 1911, no momento
em que Bleuler publicava sua grande obra, Dementia praecox, Freud lançou
suas Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia
(Dementia paranoides). Pois bem, nesse estudo, ele enunciou uma teoria
quase completa do mecanismo do conhecimento paranoico, que lhe serviu para
definir a psicose como um distúrbio entre o eu e o mundo externo. Em seguida,
no contexto de sua segunda tópica e havendo elaborado uma nova teoria do
narcisismo, Freud inscreveu a psicose numa estrutura tripartite, opondo-a à neurose,
de um lado, e à perversão, de outro. Ela foi então definida como a reconstrução
de uma realidade alucinatória na qual o sujeito fica unicamente voltado para si
mesmo, numa situação sexual autoerótica: toma literalmente o próprio corpo (ou
parte deste) como objeto de amor (sem alteridade possível). Ao lado da psicose,
a neurose surge como o resultado de um conflito intrapsíquico, enquanto a
perversão se apresenta como uma renegação da castração. (...)
Freud (...) diferenciou criteriosamente a
psicose das outras duas entidades (perversão e neurose), mas, ao mesmo tempo,
apagou o abismo criado pela psiquiatria entre a norma e a patologia. Sandor
Ferenczi caracterizaria de maneira notável a eliminação dessa distinção, num
texto de 1926 dedicado à contribuição da psicanálise para o movimento de
higiene mental: “Foi a análise da atividade psíquica no sonho”, disse ele, “que
fez desaparecer por completo o abismo entre doença mental e saúde mental, até
então considerado intransponível. O mais normal dos homens torna-se psicótico
durante a noite: tem alucinações, e sua personalidade, tanto no plano lógico
quanto no ético e no estético, sofre uma transformação fundamental, assumindo,
de modo geral, um caráter mais primitivo.”
Durante cinquenta anos, os herdeiros de
Freud fariam questão de revisar a totalidade de sua doutrina, ora insistindo,
como Lacan, no lugar da paternidade na gênese da psicose, ora, ao contrário,
como Melanie Klein, situando a origem dela numa relação arcaica com a mãe.
ROUDINESCO,
Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Verbete: Psicose. Rio de Janeiro:
Zahar, 1998. p. 621 e 622.
[1]
Charcot sabia que a dissecação do sistema nervoso das histéricas não
apresentava nenhuma diferença em relação às pessoas normais. A investigação
anatomopatológica, portanto, não apontava nenhuma relação empiricamente
constatável entre a histeria e um órgão qualquer: nenhuma alteração do útero, nem
do cérebro, nem de qualquer outra estrutura corporal relacionada ao sistema
nervoso. Mesmo assim, caracterizou a histeria como um problema neurológico, mas
não no sentido de que trazia alguma transformação ou degeneração para os
tecidos do sistema nervoso, ou para quaisquer outros tecidos do corpo, mas no
sentido de uma neurose que alterava seus processos funcionais, isto é, o
funcionamento neurológico do corpo como um todo.
[2]
Presunção uterina: por milênios, a medicina associou a histeria a um problema
do útero, o que está na própria origem etimológica da palavra: do grego, útero,
hystera, ὑστέρα.
[3]
A neurose atual, para Freud, não deve ser explicada por meio de conflitos arcaicos,
mas surge da ausência ou da inadequação da vida sexual no presente.
[4]
Istvan Hollos (1872-1957) foi um psicanalista húngaro, colega e interlocutor de
Sandor Ferenczi. Hollos sempre se interessou, como terapeuta e pesquisador,
pela questão da psicose. Esta orientação provocou uma carta famosa de Freud, na
qual discorria sobre o tema, afirmando sua incapacidade de aplicar a
psicanálise à terapia dos processos psicóticos. Tal carta, que se tornou célebre,
continha a seguinte passagem: “Finalmente confessei a mim mesmo que não gostava
desses doentes e que eles me irritavam por serem tão diferentes de mim e de
tudo o que há de humano. É uma curiosa espécie de intolerância, que evidentemente
me torna inapto para a psiquiatria [...]. Nesse aspecto, eu me comporto como faziam
os médicos que nos precederam com os histéricos. Seria um resultado da escolha
do intelecto, sempre mais claramente afirmada, a expressão de uma hostilidade
para com o Isso?” ROUDINESCO,
Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Verbete: Hollos, Istvan. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
p. 349 e 350.
[5]
Hospital francês construído no séc. XVII, no qual trabalhou o neurologista
Jean-Martin Charcot durante o século XIX, investigando a enigmática e
desafiadora questão científica, para a época, da histeria.
NEUROSE E PSICOSE
As relações das neuroses com as
psicoses, assim como as do domínio neurótico e do domínio psicótico, só podem
ser estudadas em psicanálise com uma elucidação desses dois termos, seguida de
um comentário sobre os vínculos recíprocos que eles nutrem nas pesquisas de
Sigmund Freud (...), e, por fim, uma clarificação atual.
No tocante ao termo “neurose”, a ideia
de que se deve isolar em medicina uma categoria nosográfica[1] e etiopatogênica[2] própria das doenças
ligadas a ataques funcionais, sem qualquer lesão manifesta, afetando os nervos[3], (...) apareceu na Idade
Clássica com as obras de Thomas Willis[4] (1622-1675) e de Thomas
Sydenham[5] (1634-1689); eles
incluíram nessa categoria, por exemplo, a histeria, à qual negam toda origem
uterina, e a hipocondria, para a qual rejeitam essa causa hepática que seu nome
sugeria desde a Antiguidade. Quanto ao próprio nome de neurose, foi
criado por William Cullen[6] (1710-1790), em inglês neurosis
– em 1777 (...).
O termo “psicose” é mais tardio. Criado
em 1845 por Ernst von Feuchtersleben[7] (1806-1849), ele designa
de uma maneira muito geral as doenças do espírito Geisteskrankheiten,
opondo-as às neuroses, doenças atribuídas então a uma perturbação funcional dos
nervos periféricos. Assim, a palavra tornou-se sinônimo de alienação mental,
sem mais detalhes. Quando, entre o último quartel do século XIX e a primeira
metade do século XX, a psiquiatria destacou a pluralidade irredutível das
doenças mentais, a palavra passou a designar tudo que, nesse domínio, difere
seguramente das neuroses, dos estados demenciais e dos estados de retardamento
mental, ou seja, o essencial dos pacientes hospitalizados: psicoses agudas
(confusão mental, acessos delirantes, mania e melancolia) e psicoses crônicas
(esquizofrenia, parafrenias, paranoia), continuando posto o problema de saber
se se trata de uma simples enumeração ou de um grupo de distúrbios portadores
de um processo mórbido comum, sem falar das questões de etiologia[8] (...).
No
desenvolvimento da psicanálise, as relações do domínio psicótico com o domínio
neurótico começaram por ser concebidas como relações de exclusão, um abismo
separando o primeiro domínio do segundo, à maneira daquele corte que, em
zoologia, isola os vertebrados dos invertebrados; depois, as concepções
complicaram-se pouco a pouco, aproximando por um lado um registro do outro, mas
perguntando-se, por outro, se não se deveria reservar um certo lugar para o
registro das perversões, para não falar das dificuldades suscitadas mais tarde,
quando foi preciso encontrar algum lugar para os estados-limites, tendo sido
eles próprios descobertos graças a sujeitos de aparência neurótica, aceitos
como tal em análise e nela descompensando de maneira psicótica, como lembram as
pesquisas de Otto Kernberg.
Nos trabalhos iniciais de Freud, a
distinção radical é, por assim dizer, consubstancial com as descobertas
fundadoras: as neuroses correspondem a conflitos interiores do sujeito, mas
cujo significado inicial lhe escapa, remetendo para conflitos da primeira
infância, recalcados, mas acessíveis em geral a uma relação transferencial, e
justificável, portanto, de um tratamento psicanalítico, ao passo que as
psicoses estão relacionadas com os conflitos entre o sujeito e o mundo, muito
pouco acessíveis ou inacessíveis a uma relação transferencial e contraindicado,
por conseguinte, o tratamento psicanalítico, mesmo que os depoimentos de
doentes psicóticos revelem de forma direta e imediata aspectos do inconsciente
que nos neuróticos só aparecem após numerosas sessões. (...)
Ulteriormente, a relativa simplicidade
dessas distinções e sua propensão para se afirmarem como radicais se atenuaram,
fazendo com que esse campo perdesse parte do seu vigor, ao ser questionada a
oposição absoluta entre ordem neurótica e ordem psicótica. (...) A evolução da
concepção psicanalítica das perversões que conduziam a um primado da fixação na
sexualidade infantil, onde elas se apresentavam como o inverso da neurose, até
aos importantes papéis desempenhados pelo desmentido da realidade e a clivagem
do Eu, processos vizinhos dos utilizados no registro psicótico, ocorriam de
tal modo que a bela organização que prevalecia outrora se desmembrava.
MIJOLLA,
Alain (Org.) Dicionário Internacional da Psicanálise. Vol. M-Z. Rio
de Janeiro: Imago, 2005. Verbete: Psicótico/neurótico. p. 1495, 1496 e 1497.
[1] Nosografia:
descrição e classificação das doenças.
[2] Etiopatogenia:
estudo das causas e do desenvolvimento das doenças.
[3]
Doença neurológica funcional: assim Jean-Martin Charcot classificou a histeria,
considerando a ausência de qualquer lesão manifesta em um período de predomínio
da medicina anatomopatológica.
[4]
Thomas Willis foi um médico inglês.
[5]
Thomas Sydenham foi um médico inglês.
[6]
William Cullen foi um médico escocês.
[7] Ernst von
Feuchtersleben foi um poeta, médico e filósofo austríaco.
[8]
Etiologia: estudo das causas das doenças.
CASOS-LIMITE / ESTADOS-LIMITE/ BORDERLINE /
CASOS LIMÍTROFES/ ORGANIZAÇÃO FRONTEIRIÇA
“Caso-limite”: expressão utilizada a
maioria das vezes para designar afecções psicopatológicas situadas no limite
entre neurose e psicose, particularmente esquizofrenias latentes que apresentam
uma sintomatologia de feição neurótica.
A expressão “caso-limite” não possui uma
significação nosográfica rigorosa. As suas variações refletem as próprias
incertezas do campo a que se aplica. De acordo com as suas concepções pessoais,
os autores puderam englobar aqui as personalidades psicopáticas, perversas,
delinquentes e os casos graves de neurose de caráter. Parece que, no uso mais
corrente, a expressão tende a ser reservada para as esquizofrenias que se
apresentam com uma sintomatologia neurótica.
A chamada categoria dos casos-limite
tomou-se evidente em grande parte graças ao desenvolvimento da psicanálise. A
investigação psicanalítica conseguiu, de fato, revelar uma estrutura psicótica
nos casos de distúrbios neuróticos submetidos a tratamento. Do ponto de vista
teórico, considera-se geralmente que, nesses casos, os sintomas neuróticos
desempenham uma função defensiva contra a irrupção da psicose.
LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. Verbete:
Caso-limite. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p.
60.
A noção do borderline faz parte
do vocabulário clínico norte-americano e anglo-saxão próprio da corrente da Self-Psychology
e, sob certos aspectos, do pós-kleinismo da década de 1960. Perpassa igualmente
o neofreudismo e o culturalismo e acabou se integrando à terminologia
psicanalítica francesa, sob o nome de états-limites (no plural). O termo
borderline (fronteira) designa distúrbios da personalidade e da
identidade que se encontram na fronteira entre a neurose e a psicose. Fala-se
também em casos fronteiriços [ou limítrofes], personalidades fronteiriças ou
patologias fronteiriças.
Otto Fenichel foi um dos primeiros, em
1945, a sublinhar a existência desse tipo de patologia: “Existem personalidades
neuróticas que, sem desenvolver uma psicose completa, possuem inclinações
psicóticas, ou manifestam uma propensão a se servir de mecanismos
esquizofrênicos em caso de frustração.” Essa noção foi consideravelmente
desenvolvida, mais tarde, nos trabalhos de Heinz Kohut e Otto Kernberg, que
propôs o termo “organização fronteiriça” para demonstrar com clareza que o
estado borderline era estável e duradouro.
Foi o psicanalista norte-americano Harold
Searles, especialista em esquizofrenia, quem produziu, nesse mesmo período, os
trabalhos mais pertinentes a respeito dessa questão, a partir de uma longa
prática na Chesnut Lodge Clinic, uma das mecas do tratamento
psicanalítico das psicoses, onde trabalhou Frieda Fromm-Reichmann depois de sua
emigração da Alemanha. Marcado pelo ensino de Harry Stack Sullivan, Searles
desarticulou a definição clássica da loucura à maneira dos artífices da
antipsiquiatria, mostrando que, nos pacientes borderline, o eu funciona
de maneira autística. Em seu célebre livro de 1965, O esforço de enlouquecer
o outro, ele criticou a ortodoxia freudiana sublinhando como a prática
ortodoxa da transferência pode desembocar numa estratégia de terror, que
consiste em tornar o paciente dependente do analista. Contrastou com isso uma
prática da análise inspirada no tratamento dos estados borderline e
fundamentada na ideia de reconhecimento mútuo entre o terapeuta e o paciente.
ROUDINESCO,
Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Verbete: Borderline. Rio de
Janeiro: Zahar, 1998. p. 83.
RESUMO DO TEXTO NEUROSE E PSICOSE (1924) DE
FREUD
Neste breve artigo, Freud integra as
recentes noções de ego, id e superego à sua concepção da neurose e da psicose.
O que diferencia estas duas últimas e constitui seu efeito patógeno, segundo
ele, provém de que na neurose "o ego mantém sua fidelidade em face do
mundo exterior e procura amordaçar o id", enquanto na psicose "o ego
se deixa dominar pelo id ao mesmo tempo em que se separa da realidade".
Vamos examinar isto mais detalhadamente.
(...) Freud pondera que o ego entra em
conflito com o id porque recusa uma moção pulsional indesejável, da qual se
protege reprimindo-a no inconsciente; porém, o reprimido se revolta e reaparece
sob a forma de um sintoma substituto que o representa. O sintoma é, portanto,
fruto de um compromisso.
Quanto ao que se passa na psicose, Freud
considera, ao contrário, que é a relação entre o ego e a percepção do mundo
exterior que é perturbada. Por exemplo, na psicose alucinatória aguda, não
apenas a realidade externa não é mais percebida, como também o mundo interno,
que provém de percepções anteriores conservadas na memória. Diante disso,
"o ego cria autocraticamente para si um novo mundo, exterior e interior ao
mesmo tempo; há dois fatos que não deixam nenhuma dúvida: esse novo mundo é
construído seguindo os desejos do id, e o motivo dessa ruptura com o mundo
exterior é que a realidade se opôs ao desejo de uma forma grave, vista como
intolerável".
Para Freud, a causa desencadeante de uma
neurose ou de uma psicose é sempre a frustração: "a não realização de um
desses desejos infantis eternamente indomados", frustração que costuma vir
de fora, mesmo que se trate do superego que, em última análise, representa as
exigências da realidade exterior.
A partir desses esclarecimentos, Freud
delimita uma nova entidade psicopatológica ligada ao conflito entre o ego e o
superego, "as neuropsicoses narcísicas" (...). Se as neuroses e as
psicoses nascem de conflitos entre o ego e as diversas instâncias que o dominam
- superego e id - podemos nos perguntar com que meios o ego consegue escapar
disso sem adoecer. Evidentemente, o resultado depende de um fator econômico,
isto é, das energias presentes. Mas Freud vai mais longe e postula que é
possível para o ego evitar a ruptura "deformando a si próprio, aceitando
abrir mão de sua unidade e eventualmente até mesmo se rompendo ou se
fragmentando". Ele acrescenta que, assim, "as loucuras dos
homens" seriam tratadas da mesma maneira que suas perversões sexuais. Qual
é, portanto, o mecanismo, análogo à repressão, pelo qual o ego se separa do
mundo exterior? "Ele deveria consistir, como na repressão, de uma retirada
pelo ego do investimento que ele havia situado fora". É nesses termos que
Freud anuncia a introdução próxima das noções de "recusa da
realidade" e de "clivagem do ego", que esclarecerá em Fetichismo,
em 1927.
RESUMO DO TEXTO A PERDA DA REALIDADE NA NEUROSE E
PSICOSE (1924) DE FREUD
No artigo anterior, Freud dizia que a
diferença entre a psicose e a neurose consistia em que na psicose o ego se
recusava a perceber a realidade exterior e que na neurose ele a aceitava. No
presente artigo, ele relativiza o que havia afirmado e considera agora que
existe uma perturbação da percepção do mundo real nas duas afecções, mas que
essa perturbação é de natureza diferente. Ele tenta explicar aqui em que
consiste essa diferença.
Ele começa por distinguir dois momentos
nos modos de entrada na neurose e na psicose. Na neurose, existe efetivamente
uma perda da realidade no primeiro momento, seguida da formação de um
compromisso, o sintoma. Mas, nesse primeiro momento, é o fragmento de realidade
evitado que produz a repressão. Ele dá como exemplo o caso de uma moça,
apaixonada por seu cunhado, que ficou transtornada com a ideia que lhe ocorreu
diante do leito de morte de sua irmã: "Agora ele está livre e pode se
casar com você". A cena logo é esquecida, e aparecem as dores histéricas.
Freud assinala que o fato de reprimir o amor pelo cunhado teve como
consequência que a moça evitasse o confronto com a realidade, isto é, pensar
que agora seu cunhado estaria livre: "Mas o que é instrutivo aqui é
justamente constatar a via pela qual a neurose tenta regular o conflito. Ela
desvaloriza a modificação real reprimindo a reivindicação pulsional em questão,
a saber, o amor pelo cunhado. A reação psicótica teria sido negar o fato da
morte de sua irmã".
Freud examina em seguida o que se passa na
psicose e introduz a noção de "negação da realidade" como
característica da recusa de perceber a realidade exterior na psicose. Segundo
ele, a entrada na psicose também ocorre em dois momentos: o primeiro separa o
ego da realidade por meio da negação, o segundo cria uma nova realidade - um
delírio ou uma alucinação - a fim de "reparar os desgastes" e
compensar a perda da realidade. Em outras palavras, na neurose um fragmento
significativo da realidade é evitado em forma de fuga, enquanto na psicose esse
fragmento negado é reconstruído: "A neurose não nega a realidade, só não
quer saber nada sobre ela; a psicose a nega e procura substituí-la".
Quanto ao comportamento dito normal, ele adota aspectos das duas reações: como
na neurose ele não nega a realidade, mas, como na psicose, tenta reconstruí-la
e modificá-la.
A neurose e a psicose apresentam uma outra
característica comum, isto é, a reação de angústia que acompanha os sintomas.
Essa angústia provém do "retorno do reprimido" para a primeira e do
retorno daquilo que foi negado para a segunda. Embora o retorno do reprimido
seja uma noção freudiana clássica, é a primeira vez que Freud relata um retorno
análogo referindo-se ao que foi objeto de uma negação na psicose:
"Provavelmente, na psicose, o fragmento de realidade repelido está sempre
forçando a abertura para a vida psíquica, como faz na neurose a pulsão
reprimida, e é por isso que o efeito é o mesmo nos dois casos". O efeito
de que se trata é o aparecimento da angústia.
Finalmente, diz Freud, a distinção não é
tão nítida entre neurose e psicose no que diz respeito à criação de uma nova realidade,
como na psicose, pois a neurose é destinada igualmente a substituir a realidade
insustentável. A diferença está em que, na psicose, a doença cria uma nova
realidade através do delírio ou da alucinação, enquanto que na neurose o doente
tenta restabelecer uma nova realidade através do mundo fantasioso. Esse mundo
fantasioso constitui um "magazine"[1] onde o paciente neurótico,
assim como o paciente psicótico, obtém suas fantasias. Contudo, no caso do
paciente neurótico, seu ego não está totalmente separado da realidade, como
está o ego do psicótico. Sem dúvida, o psicótico também recorre a um tal magazine,
explica Freud, mas o neurótico utiliza esse novo mundo fantasioso como a
criança brinca, e lhe empresta um sentido "simbólico". Em outras
palavras, o neurótico consegue estabelecer uma diferença entre realidade e
fantasia, ao contrário do psicótico que delira ou alucina.
QUINODOZ,
Jean-Michel. Ler Freud: guia de leitura da obra de S. Freud. Porto
Alegre: Artmed, 2007. p. 266 a 268.
[1]
Magazine: estabelecimento comercial com exposição de variados produtos à venda;
ou revista de publicação periódica que expõe ao público, com ilustrações, assuntos
variados.
FORCLUSÃO OU FORACLUSÃO
Forclusão: termo introduzido por Jacques
Lacan. Mecanismo específico que estaria na origem do fato psicótico; consistiria
numa rejeição primordial de um “significante” fundamental (por exemplo: o falo
enquanto significante do complexo de castração) para fora do universo simbólico
do sujeito. A forclusão distinguir-se-ia do recalque em dois sentidos:
1) Os significantes forcluídos não são
integrados no inconsciente do sujeito;
2) Não retornam “do interior”, mas no seio do
real, especialmente no fenômeno alucinatório.
J.
Lacan invoca a utilização que Freud faz por vezes do termo Verwerfung em
relação com a psicose, e propõe como equivalente francês o termo forclusion.
A filiação freudiana invocada neste ponto
por J. Lacan exige duas séries de observações acerca da terminologia e da
concepção freudiana da defesa psicótica.
I - Uma pesquisa terminológica no
conjunto dos textos freudianos permite chegar às seguintes conclusões:
1)
O termo Verwerfung (ou o verbo verwerfen) é usado por Freud em acepções
bastante variadas, que podemos reduzir esquematicamente a três:
a) No sentido bastante frouxo de uma recusa
que se pode operar, por exemplo, na forma do recalque;
b) No sentido de uma rejeição sob a forma do
juízo consciente de condenação. Encontramos antes nesta acepção a palavra
composta Urteilsverwerfung, que o próprio Freud indica ser sinônima de Verurteilung
(juízo de condenação);
c) O sentido salientado por J. Lacan
encontra-se melhor confirmado em outros textos. Assim, em As psiconeuroses
de defesa (Die Abwehr-Neuropsychosen, 1894), Freud escreve a
propósito da psicose: “Existe uma espécie de defesa muito mais enérgica e muito
mais eficaz que consiste no fato de que o ego rejeita (verwirft) a
representação insuportável e ao mesmo tempo o seu afeto, e se conduz como se a
representação nunca tivesse chegado ao ego.”
O texto em que Lacan preferiu apoiar-se
para promover a noção de forclusion é o de O homem dos lobos, em
que as palavras verwerfen e Verwerfung surgem por diversas vezes.
A passagem mais demonstrativa é sem dúvida aquela em que Freud evoca a
coexistência no sujeito de diversas atitudes para com a castração: “... a
terceira corrente, a mais antiga e a mais profunda, que tinha rejeitado pura e
simplesmente (verworfenhatte) a castração e na qual não havia ainda
julgamento sobre a realidade desta, essa corrente era certamente ainda
reativável. Referi em outro texto uma alucinação que este paciente tinha tido
com a idade de cinco anos...”.
2) Encontramos em Freud outros termos, além de
Verwerfung, num sentido que parece autorizar, segundo o contexto, uma
aproximação com o conceito de forclusão:
Ablehnen (afastar, declinar);
Aufheben
(suprimir, abolir);
Verleugnen
(renegar, recusar).
Em conclusão, podemos verificar,
limitando-nos ao ponto de vista terminológico, que nem sempre o uso do termo Verwerfung
abrange a ideia expressa por forclusão e que, inversamente, outras formas
freudianas designam o que Lacan procura evidenciar.
II - Além desta simples pesquisa
terminológica, poderíamos mostrar que a introdução por Lacan do termo forclusão
se situa no prolongamento de uma exigência constante em Freud: a de definir um
mecanismo de defesa específico da psicose. Aqui as opções terminológicas de
Freud podem ser por vezes enganadoras, particularmente quando fala de
“recalque” a propósito da psicose. O próprio Freud mostrou esta ambiguidade:
“... pode- se duvidar de que o processo chamado recalque tenha nas psicoses
algo de comum com o recalque nas neuroses de transferência”.
1) Poderíamos encontrar ao longo de toda a
obra de Freud essa linha de pensamento acerca da psicose. Nos primeiros textos
freudianos ela é demonstrada particularmente pela discussão do mecanismo da
projeção, esta concebida no psicótico como uma verdadeira rejeição que ocorre
de imediato para o exterior, e não como um retorno secundário do recalcado
inconsciente. Ulteriormente, quando Freud tender a reinterpretar a projeção
como um simples momento secundário do recalque neurótico, ver-se-á obrigado a
admitir que a projeção - tomada neste sentido - já não é o fator propulsor
essencial da psicose: “Não era exato dizer que a sensação reprimida (unterdrückt)
no interior era projetada para o exterior; reconhecemos antes que o que foi
abolido (das Aufgehobene) no interior volta do exterior.”
As expressões “desinvestimento da
realidade” e “perda da realidade” devem ser igualmente compreendidas como
designando este mecanismo primário de separação e de rejeição para o exterior
da “percepção” insuportável.
Freud irá centrar, nos seus últimos
trabalhos, sua reflexão em torno da noção de Verleugnung ou “recusa da
realidade”. Embora o estude principalmente no caso de fetichismo, indica
explicitamente que esse mecanismo cria um parentesco entre esta perversão e a
psicose. A recusa oposta pela criança, pelo fetichista, pelo psicótico, a esta
“realidade” que seria a ausência de pênis na mulher é concebida como uma recusa
em admitir a própria “percepção” e a fortiori em tirar a sua consequência,
quer dizer, a “teoria sexual infantil” da castração. Freud contrapõe em 1938
dois modos de defesa: “repelir uma exigência pulsional do mundo interior” e
“recusar um fragmento do mundo exterior real”. Em 1894 ele já descrevia a
defesa psicótica em termos quase idênticos: “O ego arranca-se à representação
insuportável, mas esta está indissoluvelmente ligada a um fragmento da
realidade e, realizando esta ação, o ego desligou-se também total ou
parcialmente da realidade.”
2) Como conceber, em última análise, esta
espécie de “recalque” no mundo exterior, simétrico do recalque neurótico? A
maior parte das vezes é em termos econômicos que Freud o descreve:
desinvestimento do que foi percebido, retirada narcísica da libido, talvez
acompanhada de uma retirada do “interesse” não libidinal. Em outras ocasiões,
Freud parece chegar àquilo a que se poderia chamar uma retirada de
significação, uma recusa em atribuir um sentido ao que foi percebido. Aliás,
estas duas concepções não se excluem no espírito de Freud: a retirada de
investimento (Besetzung) é também uma retirada de significação (Bedeutung).
III — A noção de forclusão vem prolongar
esta linha de pensamento freudiana, no quadro da teoria do “simbólico” de J.
Lacan. Este autor apoia-se particularmente em textos de O homem dos lobos,
em que Freud mostra como os elementos percebidos quando da cena primitiva só
receberão “a posteriori” o seu sentido e a sua interpretação. No momento
da primeira experiência traumática - com um ano e meio - o sujeito era incapaz
de elaborar, sob a forma de uma teoria da castração, esse dado bruto que seria
a ausência de pênis na mãe. “Rejeita (verwarf) [a castração] e permanece
no ponto de vista do coito pelo ânus [...]. Nisto, não foi propriamente emitido
qualquer julgamento sobre a existência da castração, mas tudo se passou como se
ela não tivesse existido.”
Nos diversos textos de Freud existe uma
ambiguidade indubitável quanto ao que é rejeitado (verworfen) ou
recusado (verleugnet) quando a criança não aceita a castração. Será a
própria castração? Neste caso, seria uma
verdadeira teoria interpretativa dos fatos que seria rejeitada e não uma
simples percepção. Tratar-se-á da “falta de pênis” na mulher? Mas então é
difícil falar de uma “percepção” que seria recusada, porque uma ausência só é
um fato perceptivo na medida em que é relacionada com uma presença possível.
A interpretação de Lacan permitiria
encontrar uma solução para as dificuldades que acabamos de evidenciar.
Apoiando-se no texto de Freud sobre A negação (Die Verneinung,
1925), ele define a forclusão na sua relação com um “processo primário” que
compreende duas operações complementares: “a Einbeziehung ins Ich, a
introdução no sujeito, e a Awsstossung aus dem Ich, a expulsão para fora
do sujeito”. A primeira destas operações é aquilo a que Lacan chama também
“simbolização”, ou Bejahung (posição, afirmação) “primária”. A segunda
“... constitui o real na medida em que ele é o domínio que subsiste fora da
simbolização”. A forclusão consiste então em não simbolizar o que deveria sê-lo
(a castração): é uma “abolição simbólica”. Daí a fórmula que Lacan (traduzindo
para a sua linguagem a passagem de Freud que acima lembramos: “... não era
exato dizer...”) apresenta da alucinação: “... o que foi forcluído do simbólico
reaparece no real”.
J. Lacan desenvolveu posteriormente a
noção de forclusão, no quadro de concepções linguísticas, no seu artigo D
’une question préliminaire à tout traitement possible de la psychose (De
uma questão preliminar a qualquer tratamento possível da psicose).
LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. São
Paulo: Martins Fontes, 2016. Verbete: Forclusão. p. 194 a 197.
O termo (...) forclusão se
origina no vocabulário jurídico. Significa o encerramento de uma ação judicial
na qual uma das partes não respeita os prazos legais para cumprir certas
formalidades. A parte em questão fica excluída do direito de discutir no âmbito
de um litígio, em virtude de não ter respeitado tais prazos; declara-se “a
foro exclusio”; daí o termo repúdio, ou, mais exatamente, forclusão, que
Lacan introduz na psicanálise. (...)
Freud quer diferenciar o mecanismo que
opera na neurose daquele que o faz na psicose: para a primeira, propõe a
repressão, e, para a segunda, a rejeição [Verwerfung]. Por um lado, o
reprimido retorna sob a forma das diversas produções do inconsciente, e o
sujeito, embora essas sejam diferentes de seu eu consciente, aceita-as como
próprias, provenientes do seu “interior”. Por outro lado, quando o mecanismo é
a rejeição, aquilo que foi suprimido retorna do exterior, e o sujeito não o
reconhece como próprio. O exterior se torna um espaço forâneo (exterior,
estranho, estrangeiro) e inquietante, persecutório e inabitável, e diante disso
Freud não se contenta com pensar em uma simples ‘projeção”. Lacan chama esse
mecanismo de forclusão.
NOS,
Silvia. Tudo que você precisa saber sobre psicanálise. São Paulo:
Planeta do Brasil, 2018. p. 166 e 167.
Foraclusão: conceito forjado por Jacques
Lacan para designar um mecanismo específico da psicose, através do qual se
produz a rejeição de um significante fundamental para fora do universo
simbólico do sujeito. Quando essa rejeição se produz, o significante é
foracluído. Não é integrado no inconsciente, como no recalque, e retorna sob
forma alucinatória no real do sujeito. No Brasil também se usam “forclusão”,
“repúdio”, “rejeição” e “preclusão”.
O termo foraclusão foi introduzido pela
primeira vez por Jacques Lacan, em 4 de julho de 1956, na última sessão de seu
seminário dedicado às psicoses e à leitura do comentário de Sigmund Freud sobre
a paranoia do jurista Daniel Paul Schreber.
Para compreender a gênese desse conceito,
há que relacioná-lo com a utilização que Hippolyte Bernheim fez, em 1895, da
noção de alucinação negativa: esta designa a ausência de percepção de um objeto
presente no campo do sujeito após a hipnose. Freud retomou o termo, porém não
mais o empregou a partir de 1917, na medida em que, em 1914, propôs uma nova
classificação das neuroses, psicoses e perversões no âmbito de sua teoria da
castração. Deu então o nome de Verneinung ao mecanismo verbal pelo qual o recalcado é reconhecido de maneira negativa pelo
sujeito, sem no entanto ser aceito: “Não é meu pai.” Em 1934, o termo foi
traduzido em francês por négation [negação]. Quanto à renegação (Verleugnung),
Freud a caracterizava como a recusa, por parte do sujeito, a reconhecer a
realidade de uma percepção negativa - por exemplo, a ausência de pênis na
mulher. (...) Faltava engendrar um termo específico para designar o mecanismo
de rejeição próprio da psicose: essa palavra, com efeito, não figurava no
vocabulário freudiano, ainda que Freud procurasse elaborar seu conceito. (...)
Em 3 de fevereiro de 1954, Lacan começou a
atualizar a questão do foraclusivo (...) por ocasião de um debate com o
filósofo hegeliano Jean Hyppolite (1907-1968). (...) Lacan inspirou-se no
trabalho de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), Phénoménologie de la
perception, e sobretudo nas páginas desse livro dedicadas à alucinação como
“fenômeno de desintegração do real”, componente da intencionalidade do sujeito.
Na análise do caso do
Homem dos Lobos, publicada em
1918, Freud explicou que a gênese do reconhecimento e do desconhecimento da
castração em seu paciente passava por uma atitude de rejeição (ou Verwerfung)
que consistia em só ver a sexualidade pelo prisma de uma teoria infantil: o
comércio sexual pelo ânus. Para ilustrar sua colocação, ele evocou uma
alucinação que seu paciente Serguei Constantinovitch
Pankejeff tivera na infância. Este “vira” seu dedo mínimo cortado por seu
canivete, apercebendo-se em seguida da inexistência do ferimento. A propósito
da “rejeição de uma realidade apresentada como inexistente”, Freud sublinhou
que isso não era um recalcamento, porque “eine Verdrängung ist etwas an
deres als eine Verwerfung” (um recalque é algo diferente de uma rejeição).
Comentando esse texto em seu diálogo de
1954 com Hyppolite, Lacan forneceu como correspondente francês de Verwerfung
a palavra retranchement [supressão, eliminação]. Dois anos depois,
retomou a distinção freudiana entre neurose e psicose (...). Por fim, depois de
comentar longamente a paranoia de Schreber e inventar o conceito de Nome-do-Pai,
Lacan propôs traduzir Verwerfung por foraclusão. Entendia por isso o
mecanismo específico da psicose, definido a partir da paranoia, que consiste na
rejeição primordial de um significante fundamental para fora do universo
simbólico do sujeito. Lacan distinguia esse mecanismo do recalque, sublinhando
que, no primeiro caso, o significante foracluído ou os significantes que o
representam não pertencem ao inconsciente do sujeito, mas retornam (no real)
por ocasião de uma alucinação ou um delírio que invadem a fala ou a percepção
do sujeito.
ROUDINESCO,
Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Verbete: Foraclusão. Rio de
Janeiro: Zahar, 1998. p. 246.
CLIVAGEM DO EU E RECUSA DA REALIDADE
Sabe-se que Bleuler[1] utilizou o termo Spaltung
(clivagem) para designar o sintoma fundamental, segundo ele, do grupo de
afecções a que chamou esquizofrenia. Para este autor, Spaltung faz mais
do que exprimir um dado da observação: implica uma certa hipótese sobre o
funcionamento mental. Sob esse aspecto, a analogia apresentada pelo tipo de
explicação proposta por Bleuler para traduzir a Spaltung esquizofrênica (...)
não pode deixar de impressionar. (...)
A noção de clivagem do ego é definida por
Freud principalmente nos artigos Fetichismo (Fetischismus, 1927),
A divisão do ego no processo de defesa (Die Ichspaltung im
Abivehrvorgang, 1938) e em Esboço de psicanálise (Abriss der
Psychoanalyse, 1938), no quadro de uma reflexão sobre as psicoses e o
fetichismo. Segundo Freud, estas afecções põem em causa principalmente as
relações entre o ego e a “realidade”. E a partir delas que Freud define de
maneira cada vez mais afirmativa a existência de um mecanismo específico, a
recusa (Verleugnung), cujo protótipo é a recusa da castração.
Ora, a recusa por si só não traduz o que a
clínica observa nas psicoses e no fetichismo. Com efeito, nota Freud, “o
problema da psicose seria simples e claro se o ego pudesse desligar-se
totalmente da realidade, mas isso acontece raramente, talvez nunca”. Em toda
psicose, mesmo na mais profunda, pode-se constatar a existência de duas
atitudes psíquicas: “... uma que leva em conta a realidade, a atitude normal, a
outra que, sob a influência das pulsões, desliga o ego da realidade”. É esta
segunda atitude que se traduz na produção de uma nova realidade delirante. No
fetichismo, a coexistência de duas atitudes contraditórias no seio do ego é
constatada por Freud em relação à “realidade” da castração: “Por um lado [os
fetichistas] recusam o fato da sua percepção que lhes mostrou a falta de pênis
no órgão genital feminino”; esta recusa traduz-se na criação do fetiche,
substituto do pênis da mulher; mas “... por outro lado, reconhecem a falta de
pênis na mulher, da qual tiram as consequências corretas. Estas duas atitudes
persistem lado a lado ao longo de toda a vida sem se influenciarem mutuamente.
É a isso que se pode chamar uma clivagem do ego”. Esta clivagem, como se vê,
não é propriamente uma defesa do ego, mas uma maneira de fazer coexistir dois
processos de defesa, um voltado para a realidade (recusa), outro para a pulsão,
este podendo redundar, aliás, na formação de sintomas neuróticos (sintoma fóbico,
por exemplo). Freud, ao introduzir a expressão “clivagem do ego”, chegou a
indagar se aquilo que estava assim introduzindo era “... há muito conhecido e
evidente ou totalmente novo e surpreendente”. Com efeito, a existência no seio
de um mesmo sujeito de “... duas atitudes psíquicas diferentes, opostas e
independentes uma da outra” está na própria base da teoria psicanalítica da
pessoa. Mas, ao descrever uma clivagem do ego (intrassistêmica) e não uma clivagem
entre instâncias (entre o ego e o id), Freud quer pôr em evidência um processo
novo em relação ao modelo do recalque e do retorno do recalcado. Com efeito, uma
das particularidades deste processo é não levar à formação de um compromisso
entre as duas atitudes em presença, mas mantê-las simultaneamente sem que entre
elas se estabeleça relação dialética. Não deixa de ser interessante notar que
foi no campo da psicose (justamente aquele em que Bleuler, numa concepção
teórica diferente, fala também de Spaltung) que Freud sentiu a
necessidade de forjar uma determinada concepção da clivagem do ego.
LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. São
Paulo: Martins Fontes, 2016. Verbete: Clivagem do Ego. p. 66 e 67.
Clivagem do eu: termo introduzido por
Sigmund Freud em 1927 para designar um fenômeno próprio do fetichismo, da
psicose e também da perversão em geral, e que se traduz pela coexistência, no
cerne do eu, de duas atitudes contraditórias, uma que consiste em recusar a
realidade (renegação), outra, em aceitá-la.
As ideias de Spaltung (clivagem),
dissociação e discordância foram inicialmente desenvolvidas, no fim do século
XIX, por todas as doutrinas que estudavam o automatismo mental, a hipnose e as
personalidades múltiplas. De Pierre Janet a Josef Breuer, todos os clínicos da
consciência dupla (inclusive o jovem Freud) viam nesse fenômeno - o da
coexistência de dois campos ou duas personalidades que se ignoravam mutuamente -
uma ruptura da unidade psíquica, que acarretava um distúrbio do pensamento e da
atividade associativa e conduzia o sujeito à alienação mental e, portanto, à
psicose. Foi nesse contexto que Eugen Bleuler fez da Spaltung o
distúrbio principal e primário da esquizofrenia (do grego skhizein:
fender), isto é, da forma de loucura caracterizada por um rompimento de
qualquer contato entre o doente e o mundo externo. Um ano depois, o psiquiatra
francês Philippe Chaslin (1857-1923) chamou de discordância um fenômeno
idêntico, ao qual deu o nome de loucura discordante.
Partindo dessa terminologia e da
descrição, no campo da histeria, de fenômenos idênticos, Freud foi como que
conduzido a introduzir a dissociação (Spaltung) no eu (Ich).
Assim, no contexto de sua segunda tópica e de uma reflexão sobre a renegação e
o fetichismo, ele cunhou o termo clivagem do eu (Ichspaltung). Através
disso, remeteu a discordância ao cerne do eu, enquanto a psiquiatria dinâmica a
situava entre duas instâncias e a caracterizava como um estado de incoerência,
mais do que como um fenômeno estrutural.
Melanie Klein retomou a noção freudiana e
deslocou a clivagem para o objeto, assim elaborando sua teoria dos objetos bons
e maus, enquanto Jacques Lacan, marcado pela tradição psiquiátrica francesa,
empregou o termo discordância, inicialmente em 1932, para definir uma diferença
(da loucura) em relação a uma norma. Vinte anos depois, criou uma coleção de
palavras para designar as diferentes modalidades de clivagem, não apenas do eu,
mas também do sujeito. No contexto de sua teoria do significante, com efeito,
mostrou que o sujeito humano é duplamente dividido - uma primeira instância
separa o eu imaginário do sujeito do inconsciente, e uma segunda instância se
inscreve no próprio interior do sujeito do inconsciente, para representar sua
divisão original. A essa segunda divisão ele chamou refenda [refente], a
partir do inglês fading (to fade, perder a luminosidade
[esmaecer, desvanecer-se]), para dar a ideia do esvaecimento (do sujeito e de
seu desejo), próxima do que Ernest Jones chamava de afânise.
Assim como Melanie Klein, Lacan estendeu a
noção de clivagem à própria estrutura do indivíduo em sua relação com o outro,
ao passo que Freud, embora tenha aberto caminho para esse tipo de
generalização, utilizou-a essencialmente na clínica da psicose e da perversão.
ROUDINESCO,
Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Verbete: Clivagem (do eu). Rio de
Janeiro: Zahar, 1998. p. 121.
[1]
Paul Eugen Bleuler (1857 – 1939) foi um psiquiatra suíço que criou os conceitos
de “esquizofrenia”, “ambivalência” e “autismo”. Manteve relações diretas com
Jung, e suas concepções psiquiátricas terminaram influenciando a psicanálise.
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