Módulo 6


                                                   

AS PERVERSÕES


 

O que realmente caracteriza todas as perversões é o fato de elas recusarem e se afastarem do fim essencial da sexualidade, isto é, da união dos órgãos genitais de sexo oposto e, evidentemente, de renunciarem à procriação. Uma definição deste tipo alarga extraordinariamente o domínio da perversão, visto que uma atividade sexual é considerada perversa quando procura prazer por um meio estranho aos órgãos sexuais do parceiro do sexo oposto. Mas, neste caso, o que é que não é perverso? Com efeito, o beijo entra nesta definição da perversão. É por isso que Freud admite que a sexualidade é fundamental e primitivamente perversa: só se torna normal em consequência de recalcamentos e inibições que se produzem ao longo do seu desenvolvimento. A origem das perversões remonta à sexualidade infantil que é necessariamente perversa, na medida em que a finalidade sexual (genital e reprodutiva) escapa à criança. Encontramos já todas as possibilidades de perversão na criança. Mas nela existe perversão em sentido lato, teórico e geral, como quando aí incluímos o beijo. As verdadeiras perversões são desvios mórbidos, em que toda a vida sexual normal é afastada.

Freud distingue as perversões que respeitam ao objeto sexual, ou seja, à pessoa que exerce uma atração sexual, e as que respeitam ao fim sexual, à natureza do ato que substitui o coito heterossexual. A mais importante das perversões que dizem respeito ao objeto sexual é a homossexualidade. (...) Há também (...) os perversos que sofrem um desvio em relação ao fim sexual. Para o homem normal, a sexualidade do objeto amado não se limita às zonas genitais, mas estende-se a todo o corpo. Todos os órgãos do corpo, para além da sua função normal, podem desempenhar um papel sexual “erógeno”. Mas esse papel não é dominante, quer dizer, o homem normal não se detém exclusivamente nesta ou naquela parte do corpo do ser amado, recusando o contato com os órgãos genitais. Ora, os perversos não só substituem a vagina pela boca ou pelo ânus, mas também por uma outra parte do corpo (os pés, os seios, os cabelos), ou até por um objeto inanimado que toca de perto o ser amado ou o seu sexo (sapatos, roupa interior). A isto chama-se fetichismo. Existe uma parte de fetichismo (e de muitas outras perversões) no amor normal; é uma forma de preparação para o ato sexual. Mas há perversão quando o fetiche se desliga da pessoa e se transforma por si próprio no fim sexual.

Há também perversão naqueles que se limitam aos atos preliminares à união sexual (carícias, olhar etc.) A necessidade de olhar, de tocar, torna-se perversa quando constitui um fim independente do ato sexual e se afasta dele (...). É o caso dos voyeurs e dos exibicionistas.

O sadismo é a perversão daqueles que só podem sentir prazer se infligirem ao parceiro toda a espécie de sofrimentos morais e físicos, desde a humilhação até às lesões corporais. Pelo contrário, o masoquismo consiste em sentir prazer em receber do ser amado humilhações e sofrimentos. Mas o masoquismo não é simplesmente o contrário do sadismo. Com efeito, o sádico sente por vezes volúpia em tomar o lugar da vítima.

A própria existência das perversões prova que o campo da sexualidade ultrapassa largamente as funções da procriação e a maturidade sexual. Este campo engloba o período infantil que é o único que pode explicar tanto a perversão e a neurose quanto a vida sexual normal.

HAAR, Michel. Introdução à psicanálise de Freud. Lisboa: Edições 70, 2008. p. 51, 52 e 53.


PERVERSÕES E NEOSSEXUALIDADES EM

 JOYCE MCDOUGALL

 

Seria o rótulo "perversão" adequado para descrever (...) as engenhosas e intrincadas invenções da confusa e aflita criança escondida no interior do adulto? Eu me recordo vividamente que, durante meus anos de formação psicanalítica, todas estas soluções, incluindo as homossexualidades, eram definidas por nossos professores como "desvios" do (então chamado) ato sexual normal, e quaisquer destes desvios eram indelevelmente marcados como uma perversão sexual praticada por um perverso. No entanto, o conceito de "desvio" inevitavelmente implica uma "norma" - a noção de um impulso com qualidades pré-formadas e meios de expressão que, claramente, não existem nos seres humanos.

Ainda lembro da minha surpresa, como a jovem e inexperiente analista que eu era, ao escutar um analisando que recontava ter feito amor na noite anterior e que tinha sido razoavelmente bem-sucedido. Somente alguns meses depois soube que, a fim de chegar a este "razoável sucesso" comparativo, ele teve que atar seu parceiro à cama com cordas, ou pediu a seu amante para chicoteá-lo nas nádegas ou urinar sobre ele, a fim de atingir o prazer orgástico.

De fato, eu iria descobrir que a maioria dos meus analisandos que haviam, se assim posso falar, reinventado a cena primitiva[1] (se comparada com sua representação ortodoxa), encaravam suas atividades sexuais e escolhas objetais como estando totalmente de acordo com suas representações de si mesmos e em conformidade com seus desejos eróticos, apesar de alguns indivíduos, ou da sociedade como um todo, julgarem suas formas de sexualidade e escolhas objetais como "perversas" e, portanto, erradas. Assim, aos poucos, fui chegando à conclusão de que a forma específica de predileção sexual de qualquer indivíduo pode somente ser considerada como um problema clínico em busca de solução, se chegar a um nível em que a sexualidade do analisando crie conflito e sofrimento psíquico.

Então, as únicas predileções sexuais que eu qualificaria como perversas estão limitadas a certas formas de relacionamento ao outro - particularmente, atos sexuais que não levam em conta as necessidades ou desejos do parceiro, tais como abuso sexual infantil, estupro, exibicionismo, voyeurismo[2] ou necrofilia (frequentemente precedida por assassinato do parceiro escolhido). Como vocês já devem ter percebido, estes atos sexuais são exatamente os mesmos que são condenados pela lei no Ocidente.

Gostaria de enfatizar neste ponto a contratransferência[3] que pode ocorrer quando se encara as práticas sexuais desviantes com o olhar de uma natureza adaptativa. A natureza polimorfa da sexualidade adulta não precisa ser relembrada. Nossos analisandos descrevem uma variedade infinita de cenários eróticos, objetos fetichistas e disfarces, jogos sadomasoquistas, e assim por diante. Isto tudo é visto como áreas privadas de suas vidas amorosas e não experimentadas como compulsivas ou indispensáveis meios de gratificação sexual[4]. Se alguns de nossos analisandos podem somente obter uma troca erótica satisfatória através de cenários fetichistas ou sadomasoquistas, embora nós pudéssemos desejar-lhes uma vida amorosa menos restrita, não temos nenhuma razão justificada para desejar que estes indivíduos abandonem suas práticas sexuais simplesmente porque nos permitimos julgar estas sexualidades não ortodoxas como sintomáticas. A maioria dos indivíduos experimenta seus atos eróticos e escolhas objetais como estando em conformidade com seus próprios desejos, sejam eles julgados ou não por outros como "perversos". Reitero a noção de que as preferências sexuais somente se tornam um problema que pede análise quando não estão de acordo com o eu ideal do indivíduo em questão, sendo assim fonte de sofrimento psíquico.

Com relação às orientações homossexuais, existem muitas outras complicações provenientes de uma contratransferência heterossexista revelada por alguns analistas, os quais correm o risco de ficarem surdos à escuta e ao entendimento das necessidades do paciente. (O mesmo também deveria ser dito de uma contratransferência "homossexista" evidenciada por alguns analistas gays e lésbicas.) Quaisquer que sejam as predileções pessoais do analista, não se pode, de forma alguma, decidir que analisandos homossexuais irão se beneficiar se se tornarem heterossexuais - ou vice-versa. É verdade que um certo número de pacientes gays e lésbicas descobrem, ao longo de sua "viagem" analítica, que são "heterossexuais latentes", e que, até então, terrores inconscientes haviam tornado os relacionamentos heterossexuais impossíveis. Mas isto representa uma pequena minoria: a maioria dos homossexuais, sejam eles homens ou mulheres, não têm o menor desejo de renunciar à sua orientação sexual - não mais do que a média dos heterossexuais desejaria se tornar homossexual - e nós só podemos aprovar, deste ponto de vista, ao reconhecer que as predileções sexuais de cada um e suas escolhas objetais são um substrato vital, não somente para seu próprio sentimento de identidade sexual como também para sua identidade subjetiva.

Finalmente, chego ao que tenho chamado de "neossexualidades". Este termo não é um conceito, mas é um determinado modo de escutar nossos analisandos, quando descrevem e exploram suas vidas sexuais. Depois de uma longa cogitação sobre o significado subjacente aos atos e escolhas que são distinguíveis daquilo que poderia ser chamado da "norma" homossexual, ou da "norma" heterossexual, finalmente entendi que estes cenários incomuns serviam não somente para consertar fraturas nos sentimentos de identidade subjetiva e sexual, mas também para proteger seus objetos internos de sentimentos de ódio inconsciente e destrutividade (em parte ligados a impulsos orais e anais não-elaborados, característicos dos impulsos libidinais infantis incorporativos e excorporativos). Graças à milagrosa descoberta da criação neossexual, aquilo que anteriormente parecia sem sentido, se torna significativo e um senso de vitalidade psíquica prevalece, mesmo que somente de forma pontual, sobre os sentimentos de morte interior. Estes mesmos conflitos poderiam ter encontrado soluções menos felizes, expressando-se de formas psicóticas e psicopáticas. Apesar da urgência, da compulsividade e dos afetos carregados de angústia, que tão frequentemente acompanham estes cenários incomuns, aí existe um objetivo de autocura face aos ameaçadores conflitos neuróticos ou psicóticos, o que nos leva à conclusão de que a erotização é um caminho poderoso para superar o trauma psíquico do início da vida, permitindo que Eros triunfe sobre Thanatos.

Resumindo as considerações feitas acima, poderíamos dizer que "neossexuais", sejam de orientação homossexual ou heterossexual, foram obrigados a reinventar o erotismo sexual e as relações de amor (...). A construção destas novas cenas primitivas representa, então, a melhor solução que a criança do passado foi capaz de encontrar face ao medo, à confusão e à dor mental, ligadas a cada ímpeto libidinal, cuja fonte original está no inconsciente biparental. Também fica claro que as soluções encontradas tendem a durar por toda a vida.

Além dos desejos e ansiedades dos pais, frequentemente também descobrimos uma série de eventos traumáticos na infância: histórias de abuso sexual, o desaparecimento súbito de um genitor devido ao abandono ou à morte, ou, novamente, experiências de hospitalização pelas quais a criança teve que passar.

MCDOUGALL, Joyce. Teoria sexual e psicanálise. In: CECCARELLI, Paulo Roberto (org.) Diferenças sexuais. São Paulo: Escuta, 1999. p. 18 a 22.



[1] Cena primitiva, cena originária ou cena primária: “Cena de relação sexual entre os pais, observada ou suposta segundo determinados índices e fantasiada pela criança, que é geralmente interpretada por ela como um ato de violência por parte do pai. (...) Faz parte daquilo que Freud chama de ‘fantasias originárias’.” LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 62 e 63.

[2] Somente em alguns casos o exibicionismo e o voyeurismo implicam uma invasão criminosa, isto é, perversa, da liberdade de alguém.

[3] A ausência de sentimentos de reprovação do analista em relação ao seu analisando.

[4] Entretanto, em alguns casos tornam-se sexualidade compulsiva, o que traz um problema para a analise. 


JOYCE MCDOUGALL: PERVERSÃO COMO

 NEGAÇÃO DO OUTRO, COMO NEGAÇÃO

 DA ALTERIDADE

 

       Se, por um lado, o sistema sexual do perverso fornece à estrutura psíquica uma amurada sólida contra as infiltrações psicóticas, existe aí, sem embargo, uma fragilidade intrinsecamente inscrita, já que ele só pôde ser construído graças à dissolução de certos elos associativos entre as representações psíquicas e a realidade externa. Assim, a relação do sujeito com a realidade tende a enfraquecer-se, ao menos nesse âmbito restrito. (...)

      A normalidade, diz o perverso, “é um Eros castrado”, e ao afirmá-lo não está totalmente engando, pois a perversão é um triunfo sobre o Édipo e sobre a sexualidade genital, que por definição, depende de um outro. A perversão é o “quebra-galho” da sexualidade, a independência encarnada. Somente o perverso pode conservar a ilusão de ser o “verdadeiro” objeto do desejo da mãe, condenando-se assim a brincar de sexualidade, a fim de transigir com a vida e suas verdades insuportáveis. (...)

     Que medidas permitem a essa organização se manter? A recusa da alteridade, responsável pelo abismo criado entre o sujeito e seus objetos, é um repúdio radical que tem por consequência a perturbação profunda (...) do conjunto das relações objetais. Sem embargo, a recusa ou denegação da realidade é um mecanismo psíquico fundamental, e, como tal, esteve ou está presente e ativo em todo ser humano. O que importa, na verdade, é como o vazio psíquico provocado pela recusa será colmatado. (...) O Outro é recusado, como se a morte emanasse dele. No seio da aventura analítica, deparamo-nos, portanto, com uma força de antivida que procura anular todo movimento suscetível de despertar a vida pulsional ou de conduzir o indivíduo até o Outro. Esta força chama-se instinto de morte.

MCDOUGALL, JOYCE. Em defesa de uma certa anormalidade: teoria e clínica psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983. p. 73, 74, 90 e 91.


                 AUTOEROTISMO

 

 A) Em sentido amplo, característica de um comportamento sexual em que o sujeito obtém a satisfação recorrendo unicamente ao seu próprio corpo, sem objeto exterior: neste sentido, a masturbação é considerada como comportamento autoerótico.

B) De um modo mais específico, característica de um comportamento sexual infantil precoce pela qual uma pulsão parcial, ligada ao funcionamento de um órgão ou à excitação de uma zona erógena, encontra a sua satisfação no local, isto é:

1. sem recorrer a um objeto exterior;

2. sem referência a uma imagem do corpo unificada, a um primeiro esboço de ego, tal como ele caracteriza o narcisismo[1]. (...)

 

1º. A teoria do autoerotismo está ligada a essa tese fundamental de Três ensaios: a contingência do objeto da pulsão sexual. Mostrar como no início da vida sexual a satisfação pode ser obtida sem recorrer a um objeto é mostrar que não existe qualquer caminho pré-formado que leve o sujeito para um objeto determinado. Essa teoria não implica a afirmação de um estado primitivo “anobjetal”. O ato de sugar ou chupar, que para Freud é o modelo do autoerotismo, é efetivamente secundário numa primeira fase em que a pulsão sexual se satisfaz por apoio na pulsão de autoconservação (a fome) e graças a um objeto: o seio materno. Ao separar-se da fome, a pulsão sexual oral perde o seu objeto e toma-se assim autoerótica. Se é verdade que se pode dizer que o autoerotismo não tem objeto, não é porque apareça antes de qualquer relação com um objeto, nem mesmo porque com a sua chegada qualquer objeto deixe de estar presente na busca da satisfação, mas apenas porque o modo natural de apreensão do objeto se acha clivado: a pulsão sexual separa-se das funções não sexuais (a alimentação, por exemplo) nas quais se apoiava e que lhe indicavam a sua meta e o seu objeto. A “origem” do autoerotismo seria portanto esse momento, sempre renovado mais do que localizável em um tempo determinado da evolução, em que a sexualidade se separa do objeto natural, se vê entregue à fantasia e por isso mesmo se cria como sexualidade.

2° Por outro lado, a noção de autoerotismo implica desde a sua primeira utilização por Freud um outro quadro de referência diferente da relação com o objeto: a referência a um estado do organismo em que as pulsões se satisfazem cada uma por sua própria conta, sem que exista qualquer organização de conjunto. Desde Três ensaios o autoerotismo é sempre definido como a atividade das diversas “componentes parciais”; deve ser concebido como uma excitação sexual que nasce e se apazigua ali mesmo, ao nível de cada zona erógena tomada isoladamente (prazer de órgão). E evidente que a atividade autoerótica necessita a maior parte das vezes do contato da zona erógena com outra parte do corpo (sucção do polegar, masturbação, etc.), mas o seu modelo ideal é o dos lábios que beijam a si mesmos.

A introdução da noção de narcisismo vem esclarecer, a posteriori, a de autoerotismo: no narcisismo é o ego, como imagem unificada do corpo, o objeto da libido narcísica, e o autoerotismo é definido, por oposição, como a fase anárquica que precede essa convergência das pulsões parciais para um objeto comum: “Temos de admitir que não existe no indivíduo, desde o início, uma unidade comparável ao ego; o ego tem de passar por um desenvolvimento. Mas as pulsões autoeróticas existem desde a origem; alguma coisa, uma nova ação psíquica, deve pois vir juntar-se ao autoerotismo para dar o narcisismo.”

Em numerosos textos, Freud mantém claramente esta ideia: na passagem do autoerotismo para o narcisismo, “...as pulsões sexuais, até então isoladas, reuniram-se agora numa unidade, e simultaneamente acharam um objeto”; esse objeto é o ego. Mais tarde, a distinção ficará menos nítida, sobretudo em certos textos em que Freud admitirá a existência de um AUTOEROTISMO estado de “narcisismo primário” desde a origem, e até mesmo desde a vida intrauterina. O autoerotismo, então, define-se apenas como “a atividade sexual da fase narcisista da organização libidinal”.

Em conclusão, vemos que a noção que o termo “autoerotismo” procura conotar pode ser definida com uma certa coerência a partir da noção de um estado originário de fragmentação da pulsão sexual. Tal fragmentação implica na verdade, quanto à relação com o objeto, a ausência de objeto total (ego ou pessoa estranha), mas de modo nenhum a ausência de um objeto parcial fantasístico.

LAPLANCHE E PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2016. Verbete: autoerotismo. p. 47, 48 e 49.

 

ALOEROTISMO

 

Termo às vezes utilizado por oposição a autoerotismo: atividade sexual que encontra a sua satisfação graças a um objeto exterior.

Freud, quando em 1899 usa pela primeira vez o termo “autoerotismo”, emparelha-o com aloerotismo, que se subdivide por sua vez em homoerotismo (satisfação encontrada graças a um objeto do mesmo sexo: homossexualidade) e em heteroerotismo (satisfação encontrada graças a um objeto do outro sexo: heterossexualidade). Este termo, pouco usado, foi retomado por E. Jones.

LAPLANCHE E PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2016. Verbete: aloerotismo. p. 15.

 

AUTOEROTISMO/ALOEROTISMO

 

O termo “autoerotismo” refere-se aos comportamentos que visam obter a satisfação sexual sem intervenção de uma outra pessoa (sendo o caso mais evidente a masturbação). Entretanto, esse termo é frequentemente tomado lato sensu, levando em conta a concepção freudiana da psicossexualidade, segundo a qual muitos prazeres do corpo apresentam o valor de uma satisfação sexual, mesmo que a zona genital não esteja em jogo, e, por extenso, certas atividades psíquicas (a leitura, diz um certo bom senso popular, é “um vício solitário”...)

O termo aloerotismo, de emprego mais raro, refere-se  pelo contrário às satisfações sexuais obtidas com o concurso de uma outra pessoa.

Freud, que foi buscar esses termos em Havelock Ellis, utiliza-os pela primeira vez, ao que parece, numa carta para Wilhelm Fliess datada de 9 de dezembro de 1899: “Entre as camadas sexuais, a mais profunda é a do autoerotismo, que não tem nenhum alvo psicossexual e só exige uma sensação capaz de o satisfazer localmente. É substituído mais tarde pelo aloerotismo (homo ou hetero), mas continuará subsistindo, certamente sob a forma de uma corrente independente”.

Portanto, segundo essa primeira definição, o autoerotismo seria o primeiro mas nunca desapareceria. Freud esclarece o seu pensamento em termos mais precisos nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) e, depois, nas notas acrescentadas em edições subsequentes desse texto. Ele situa então a sucção como atividade fundadora: "Diremos que os lábios da criança desempenharam o papel de zona erógena e que a excitação causada pelo afluxo de leite quente provocou o prazer. No início, a satisfação da zona erógena foi estreitamente ligada ao apaziguamento da fome." Em 1915, Freud acrescenta: "No início, a atividade sexual apoia-se numa função que serve para conservar a vida e da qual só mais tarde se torna independente.[...] A criança deixa então de se servir, para a sucção, de um objeto exterior ao seu corpo e prefere urna parte da sua própria epiderme, mais acessível, porque fica assim independente do mundo exterior que ela ainda não pode dominar." Esta é uma tese importante para Freud: a sexualidade infantil desenvolve-se apoiada numa função essencial à vida, função essa da qual se desligará mais tarde.

Essa satisfação autoerótica não é, portanto, anterior a todo o investimento objetal, visto que, por esse desligamento, a criança emancipa-se do primeiro objeto, o seio. Aquela está correlacionada com a satisfação alucinatória, cujo despontamento provocará o nascimento das primeiras representações.

Sobre o narcisismo – uma introdução (1914) permite a Freud dar mais um passo: quando a criança se constitui em “objeto” de sua própria satisfação, não se trata mais, como na atividade autoerótica, de satisfações de pulsões parciais, localizadas em tal ou tal zona erógena, e sim de um início da unificação pulsional e objetal: “as pulsões sexuais, até então isoladas, então doravante reunidas numa unidade e encontraram, ao mesmo tempo, um objeto”; esse movimento unificador estender-se-á em seguida a uma outra pessoa, quando das primeiras “escolhas de objeto” que vão reger toda a vida sexual ulterior. Freud fornecerá um complemento para essas noções e traçará um quadro de conjunto num artigo de 1923 sobre “a organização genital infantil”.

O autoerotismo caracteriza, por conseguinte, uma fase precoce do desenvolvimento sexual. Entretanto, e Freud já o afirmava em 1899 na carta para Fliess acima citada, ele “subsiste” sempre, tal como é testemunho na clínica mais banal. Desempenha um papel importante em certas estruturas; nas psicoses, como o mostra bem o caso de Daniel-Paul Schreber (1911).

MIJOLLA, Alain de. Dicionário internacional da psicanálise. Vol. I – A-L. Rio de Janeiro: Imago, 2005. Verbete princípio autoerotismo/aloerotismo. p. 195 e 196.



[1] O narcisismo, como se verá logo adiante, será uma fase posterior ao autoerotismo, caracterizada pela formação de um eu mais estruturado, que se torna o objeto principal do investimento libidinal.

  


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