FREUD E A HISTERIA
A existência ou não de lesão anatômica
relativa a determinados sintomas era, para a psiquiatria do século XIX, um
fator de extrema importância. A anatomia patológica começava a ser vista, nessa
época, como o único meio de inclusão da medicina no campo das ciências exatas,
sendo esperado do médico que suas investigações clínicas fossem acompanhadas
por investigações anatomopatológicas que oferecessem, ao nível do corpo, a
lesão referente aos distúrbios observados.
Formam-se, então, dois grandes grupos de
doenças: aquelas com uma sintomatologia regular e que remetiam a lesões
orgânicas identificáveis pela anatomia patológica, e aquelas outras - as
neuroses - que eram perturbações sem lesão e nas quais a sintomatologia não
apresentava a regularidade desejada.
Essa crença na eficácia da anatomia
patológica foi compartilhada por Charcot, que, além de neurologista, se tornou
professor de anatomia e patologia da Faculdade de Medicina de Paris. A
abordagem inicial de Charcot ao problema da histeria foi feita de acordo com
esse ponto de vista, isto é, de que há um correlato orgânico das manifestações
histéricas. Posteriormente, ele modifica seu ponto de vista ao afirmar que a
histeria é, “como tantas outras esfinges”, uma doença que escapa às mais
penetrantes investigações anatômicas[1]. No entanto, apesar da
ausência de um referencial anatômico, a histeria apresentava aos seus olhos uma
sintomatologia bem definida, obedecendo a regras precisas. Esse reparo é
importante, porque lhe permite afastar a hipótese de simulação, o grande fantasma
da psiquiatria do século XIX.
Ao produzir a separação da histeria com
respeito à anatomia patológica, Charcot a introduz no campo das perturbações
fisiológicas do sistema nervoso, e em função disso procura novas formas de intervenção
clínica, dentre as quais a hipnose vai se constituir na mais importante.
Durante algum tempo, Charcot realizou estudos no sentido de mostrar que a
hipnose envolvia mudanças fisiológicas no sistema nervoso, o que a aproximava
da histeria.
No inverno de 1885, Freud vai a Paris e
assiste ao curso de Charcot, cujas aulas práticas eram ministradas na Salpêtrière,
e adere entusiasticamente ao modelo fisiológico oferecido por ele para a
histeria. Os aspectos mais salientados tanto por Charcot como por Freud, nesse
período, eram os que diziam respeito ao fato de que a histeria não era uma
simulação, que ela era uma doença funcional com um conjunto de sintomas bem
definido e na qual a simulação desempenhava um papel desprezível. Outro ponto
enfatizado por ambos foi que a histeria era tanto uma doença feminina como
masculina, desfazendo dessa forma a ideia de que apenas as mulheres padeciam de
manifestações histéricas (como sugeria o próprio termo “histeria”, que deriva
da palavra grega hystéra, que significa “útero”).
Mas, entre essas afirmações e a realidade
da prática hospitalar, havia uma distância considerável. Na verdade, Charcot
foi o santo milagroso da histeria, sendo que em suas encenações realizadas na Salpêtrière,
as inalações de nitrato de amilo ministradas por seus assistentes às pacientes
desempenhavam um papel tão importante quanto o ritual do hipnotismo.
O problema continuava sendo apresentar uma
sintomatologia regular para a histeria. Caso isso fosse obtido, a histeria
seria incluída no campo das doenças neurológicas; caso a tentativa não fosse
coroada de êxito, o histérico seria identificado ao louco. Persistia, portanto,
a questão do diagnóstico diferencial versus diagnóstico absoluto[2].
O papel desempenhado por Charcot passa a
ser o de produzir, através de drogas e da hipnose, a regularidade do quadro
histérico, trazendo a histeria para o campo da neurologia e retirando-a das
mãos do psiquiatra. O lugar do histérico deveria ser o hospital e não o asilo.
Mas é exatamente nesse ponto que o histérico passa a ser investido de um poder
sobre o médico equivalente ao que este possuía sobre ele. Por efeito da
imposição médica, os pacientes histéricos passam a fornecer os sintomas que
lhes eram exigidos. A crise histérica passa a ser fabricada com grande eficácia
nas apresentações clínicas de Charcot. Aconteceu, porém, o inesperado: os
pacientes passaram a oferecer muito mais do que lhes era solicitado e, dessa
forma, passaram a constituir o próprio médico. Esclarecendo melhor: se os
histéricos apresentavam um conjunto de sintomas bem definido e regular, eles constituíam
o médico como neurologista; se esses sintomas variavam em número e qualidade,
rompendo dessa maneira a regularidade das crises, o médico era transformado em
psiquiatra[3].
O emprego da hipnose tinha por objetivo o
controle da situação. Através da sugestão hipnótica, o médico podia obter um
conjunto de sintomas histérico bem definido e regular; mas isso evidencia, ao
mesmo tempo, que a histeria nada tinha a ver com o corpo neurológico, mas com o
desejo do médico. É numa tentativa de superar esse impasse que Charcot vai
elaborar a teoria do trauma.
Segundo Charcot, o sistema nervoso pode
ser dotado de uma predisposição hereditária para, em decorrência de um trauma
psíquico, produzir um estado hipnótico que torna a pessoa suscetível à sugestão[4]. O trauma formaria uma
injunção permanente, um estado hipnótico permanente, que poderia ser objetivado
corporalmente por uma paralisia, uma cegueira ou qualquer outro tipo de
sintoma. O estado hipnótico que o médico produzia na clínica seria uma injunção
desse tipo, só que temporária. Nela, o papel da sugestão é idêntico ao
desempenhado na situação traumática, com a diferença apenas de não ser
permanente.
Ora, na medida em que o trauma em questão
não é de ordem física, ressurge a necessidade de o paciente narrar sua história
pessoal para que o médico possa localizar o momento traumático responsável pela
histeria.
O que Charcot não esperava era que
dessas narrativas surgissem sistematicamente histórias cujo componente sexual
desempenhasse um papel preponderante. Estava selado o pacto entre a histeria e
a sexualidade; pacto esse que foi recusado por Charcot e que se transformou em
ponto de partida e núcleo central da investigação freudiana[5].
TRAUMA
E AB-REAÇÃO
A teoria do trauma psíquico vai ter
profunda repercussão sobre os escritos iniciais de Freud e, paradoxalmente, vai
se constituir no impedimento maior à elaboração da teoria psicanalítica.
Enquanto persistir a teoria do trauma, a sexualidade infantil e o Édipo não
poderão fazer sua entrada em cena, visto que nela os sintomas neuróticos
permanecem dependentes de um acontecimento traumático real que os produziu e
não das fantasias edipianas da criança[6].
A concepção de Charcot sobre a histeria
está integralmente presente no artigo que Freud escreve, em 1888, para a
Enciclopedia Villaret (Handwörterbuch der gesamten Medizin). Nesse
artigo, Freud recomenda dois tipos de tratamento para a neurose histérica. O
primeiro consiste no afastamento do paciente de seu ambiente familiar,
considerado por ele como gerador de crises, e sua internação num hospital. A
internação teria como objetivo mais imediato uma mudança de ambiente, afastando
dessa maneira a possibilidade de as crises serem deflagradas pela expectativa
ansiosa dos familiares; e, em segundo lugar, a internação criaria condições
ideais de observação e de controle das crises. Após um ou dois meses de
repouso, o paciente deveria ser submetido à hidroterapia e à ginástica. O
emprego de massagem e de eletroterapia não deveria ser desprezado. O segundo
tipo de tratamento consiste na remoção das causas psíquicas dos sintomas
histéricos. Como essas causas são inconscientes para o paciente, o método para
eliminar os sintomas consiste em dar ao paciente, sob hipnose, uma sugestão que
remova o distúrbio.
Esse procedimento, porém, apenas
elimina o sintoma, mas não remove a causa. Freud propõe, então, que se empregue
um método elaborado por Joseph Breuer e que consiste em fazer o paciente
remontar, sob efeito hipnótico, à pré-história psíquica da doença a fim de que
possa ser localizado o acontecimento traumático que originou o distúrbio[7].
Em dezembro de 1892, Freud publica o
artigo Um caso de cura pelo hipnotismo[8], no qual a influência de
Breuer é bem maior do que a de Charcot, e no ano seguinte publicam em conjunto Sobre
o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar, que
foi transformado no primeiro capítulo dos Estudos sobre a histeria.
O caso clínico que deu origem à Comunicação
preliminar foi o de Anna O. (Bertha Pappenheim), paciente de Breuer. Na
época em que Breuer se dedicou ao tratamento de Anna O., Freud estava se
formando em medicina e todo o seu interesse estava voltado para os estudos
sobre anatomia do sistema nervoso, e somente cinco anos mais tarde iria a Paris
assistir aos cursos dados por Charcot na Salpêtrière.
Anna O. era filha de um paciente de Breuer
e começou a apresentar uma série de sintomas histéricos enquanto cuidava do
pai. Breuer submeteu-a à hipnose e verificou que os sintomas desapareciam
sempre que o acontecimento traumático que estava ligado a ele era reproduzido
sob hipnose. Após dois anos de tratamento, todos os sintomas de Anna O. haviam
desaparecido. Breuer narrou o caso a Freud e este, muito impressionado,
contou-o a Charcot por ocasião de seu curso em Paris. Mas Charcot não
demonstrou nenhum interesse pelo relato de Freud e este resolveu não pensar
mais no assunto.
Vários anos mais tarde, depois de seu
retorno de Paris e de ter estabelecido uma clínica de doenças nervosas em
Viena, Freud recebeu para tratamento Frau Emmy von N., em quem resolve aplicar
a técnica de Breuer de investigação pela hipnose. Breuer havia chamado seu
método de “catártico” (de kátharsis = purgação), pois o que ocorria
durante o tratamento era uma “purgação” ou uma descarga do afeto que
originalmente estava ligado à experiência traumática. A função da hipnose era a
de, por sugestão, remeter o paciente ao seu passado, de modo que ele próprio
encontrasse o fato traumático, produzindo-se, em decorrência disso, a
“ab-reação”, isto é, a liberação da carga de afeto.
Freud acrescenta uma novidade à técnica
empregada por Breuer. Enquanto este permanecia passivo diante da torrente de
fatos narrados pela sua paciente, não procurando influenciá-la em nada, mas
apenas esperando que ela própria chegasse às suas retenções e produzisse a
ab-reação, Freud passou a empregar a sugestão diretamente como meio
terapêutico. Assim, a hipnose era empregada para se chegar aos fatos
traumáticos - tal como o fazia Breuer - mas, uma vez esses fatos tendo sido
identificados, Freud fazia uso da sugestão para eliminá-los ou pelo menos para
debilitá-los em sua força patogênica.
TRAUMA
E DEFESA PSÍQUICA
O interesse de Breuer pelo assunto não vai
além deste ponto. Ao que parece, Anna O. foi a primeira e única paciente
tratada por ele pelo método catártico, e sua retomada do problema só se deu
anos mais tarde quando Freud o pressiona nesse sentido. O próprio emprego da
sugestão hipnótica como forma de intervenção direta sobre as ideias patogênicas
não foi feito por influência de Breuer, mas de Bernheim, com quem Freud esteve
durante algumas semanas no ano de 1889. A prática da sugestão foi abandonada
posteriormente por Freud, que retornou ao método mais “investigador” de Breuer,
“incomparavelmente mais atraente do que as proibições monótonas e forçadas
usadas no tratamento pela sugestão, proibições que criavam um obstáculo a
qualquer pesquisa”[9].
Após várias experiências com pacientes
histéricos, Freud propõe a Breuer uma publicação conjunta sobre o assunto. Em
1893 surge a Comunicação preliminar e em 1895 os Estudos sobre a
histeria, reunidos posteriormente. É no primeiro desses trabalhos que Freud
lança uma noção que vai desempenhar um papel fundamental na elaboração da
teoria psicanalítica: a noção de defesa. É nesse momento também que começa o
afastamento entre os dois autores.
Entre a Comunicação preliminar
(1893) e os Estudos sobre a histeria (1895), Freud publicou o artigo As
neuropsicoses de defesa (1894), no qual sua independência com relação a
Breuer e aos seus contemporâneos já se manifesta de forma acentuada. Embora a
noção de defesa já tivesse sido lançada no artigo de 1893, o termo “defesa” só
aparece no artigo de 1894 e é nele que o problema é tratado de maneira mais
extensa.
Freud só teve pleno acesso ao fenômeno da
defesa quando abandonou a técnica da hipnose. Até então, uma série de indícios
poderiam sugerir-lhe a existência de algo que lhe era vedado pelo próprio
método que empregava, mas esses indícios só se transformariam em evidência após
o abandono desse método. Assim, o procedimento hipnótico era, sem que ele
soubesse, o obstáculo maior ao fenômeno que será transformado num dos pilares
da teoria psicanalítica: a defesa (ou, como ele chamará mais tarde, o
recalcamento).
Referindo-se muito mais tarde a este
momento da gênese da psicanálise, Freud escreve:
A teoria do recalque é a pedra
angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise. É a parte mais
essencial dela e, todavia, nada mais é senão a formulação teórica de um
fenômeno que pode ser observado quantas vezes se desejar se se empreende a
análise de um neurótico sem recorrer à hipnose. Em tais casos encontra-se uma
resistência que se opõe ao trabalho de análise e, a fim de frustrá-lo, alega
falha de memória. O uso da hipnose ocultava essa resistência; por conseguinte,
a história da psicanálise propriamente dita só começa com a nova técnica que
dispensa a hipnose.[10]
Quando Freud abandona a hipnose e solicita
de seus pacientes que procurem se lembrar do fato traumático que poderia ter
causado os sintomas, verifica que tanto a sua insistência quanto os esforços do
paciente esbarravam com uma resistência destes a que as ideias patogênicas se
tornassem conscientes. Qual seria a natureza dessas ideias e por que geravam
essa resistência? Analisando detalhadamente os casos de análise completa de que
já dispunha, chegou à conclusão de que todas essas ideias eram de natureza
aflitiva, capazes de despertar emoções de vergonha, de autocensura e de dor
psíquica. “De tudo isso surgia, como que automaticamente, a ideia de defesa”[11]. A defesa aparece, assim,
como uma forma de censura por parte do ego do paciente à ideia ameaçadora,
forçando-a a manter-se fora da consciência; e a resistência era o sinal externo
dessa defesa. O mecanismo pelo qual a carga de afeto ligada a essa ideia (ou
conjunto de ideias) é transformada em sintomas somáticos é chamado por Freud de
conversão.
De fato, os termos “defesa” e
“recalcamento” não são sinônimos, apesar de, na época em que Freud publica As
neuropsicoses de defesa, eles poderem ser quase que identificados. “Defesa”
é um termo mais amplo que designa, em sua primeira acepção, o mecanismo pelo
qual o ego se protege de uma representação desagradável e ameaçadora.
A conversão é, portanto, o modo de defesa
específico da histeria. O termo recalcamento (ou recalque), como veremos mais à
frente, está ligado a uma conceituação mais precisa, de vez que apenas
parcialmente pode ser tomado como sinônimo de defesa.
De posse das noções de resistência, defesa
e conversão, a própria concepção de terapia tinha de ser modificada. Seu
objetivo não poderia mais consistir simplesmente em produzir a ab-reação do
afeto, mas em tornar conscientes as ideias patogênicas possibilitando sua
elaboração. Nesse momento, começa a se operar a passagem do método catártico
para o método psicanalítico. (...)
Mas há ainda um ponto dos Estudos
sobre a histeria para o qual eu gostaria de chamar atenção, e para isso é
necessário que retornemos ao caso de Anna O.
A
SEXUALIDADE
Quando Breuer narrou para Freud a história
de sua jovem e bela cliente, não narrou a história completa; o final foi
cuidadosamente ocultado. Nos Estudos sobre a histeria, Breuer termina a
exposição do caso de Anna O. dando-a como liberta de seus sintomas e atribuindo
o término do tratamento ao desejo de sua paciente de encerrá-lo numa data
específica, quando completava um ano que ela se havia mudado para uma casa de
campo nos arredores de Viena por questões de segurança (Anna morava num
terceiro andar e tinha impulsos suicidas). O que de fato aconteceu nos é
relatado por E. Jones em seu livro sobre a vida de Freud[12] e pelo próprio Freud
através de reconstituições que fez e que foram confirmadas por Breuer.
O que motivou o término do tratamento foi
um fenômeno que, apesar de ser hoje em dia bastante conhecido, impossibilitou
Breuer de continuar a relação terapêutica com Anna O.: o fenômeno da
transferência e da contratransferência. O interesse de Breuer pela sua paciente
era vivido por ele como sendo de caráter puramente clínico e científico, e o
fato de falar nela com uma frequência acima do comum não lhe parecia indício de
nenhum envolvimento emocional, mas sim desse interesse “neutro” que deveria
existir na relação médico-paciente. Essa não era, porém, a maneira como a
mulher de Breuer vivia a situação. Cansada de ouvir o marido falar apenas em
sua paciente, ela se tornou triste e ciumenta. Quando Breuer percebeu o que
estava se passando, ficou extremamente embaraçado e resolveu encerrar
rapidamente o tratamento. A decisão foi comunicada a Anna O. e o caso foi dado
por terminado. Nesse mesmo dia, Breuer foi chamado com urgência à casa de Anna
O., que se encontrava numa de suas piores crises. A paciente apresentava
contrações abdominais de uma crise de parto histérica e nesse momento teria
dito a Breuer: “Agora chega o filho de Breuer.” Muito chocado com o fato,
Breuer hipnotizou-a e ela saiu da crise. No dia seguinte, Breuer e sua mulher
viajaram de férias para Veneza.
O que havia escapado a Breuer, até então,
era exatamente esse componente sexual que havia estado presente o tempo todo na
sua relação com Anna O., mas que era rejeitado por ambos. Segundo o relato que
fez de sua paciente, ela era uma pessoa assexual e que nunca, durante o
tratamento, havia feito alusões a questões sexuais. Quando a evidência do fato
se tornou irrecusável, Breuer abandonou horrorizado a cliente e fugiu. Nesse
momento, segundo Freud, Breuer deixou cair a chave que poderia decifrar o grande
segredo oculto das neuroses.
Anos mais tarde, Freud comenta que, se
dependesse dos Estudos sobre a histeria, a importância concedida à
sexualidade na etiologia das neuroses seria praticamente nula ou, pelo menos,
bastante secundária. Mas o caso Breuer, aliado às experiências de Charcot na Salpêtrière
(nas quais o componente sexual do comportamento das histéricas era evidente) e
ao comentário de Chroback segundo o qual o remédio a ser receitado para uma
histérica deveria ser Penis normalis [13], juntamente com a
experiência clínica, levaram Freud à hipótese de que não era qualquer espécie
de excitação emocional que se encontrava por trás dos sintomas neuróticos, mas
sobretudo uma excitação de natureza sexual e conflitiva. A importância concedida
à sexualidade, tanto para a compreensão da neurose como para a compreensão do
indivíduo normal, torna-se cada vez mais central em Freud, tendo sido este um
dos motivos de seu rompimento com Breuer.
Freud, o sexólogo. Assim ele foi visto
pelos seus contemporâneos e assim ele ainda é visto mesmo por aqueles para quem
a psicanálise é algo mais do que informação erudita. Para muitos, Freud foi
aquele que descobriu a sexualidade, sobretudo aquele que descobriu a sexualidade
infantil. E não há nada mais falso do que isso. Na verdade, a sexualidade já
era bastante tematizada pela medicina, pela psiquiatria, pela pedagogia e por
vários campos de discurso no século XIX. Mais uma vez remeto o leitor a Michel
Foucault e sua História da sexualidade[14].
O que verificamos pela análise de Foucault
é que os séculos XVIII e XIX conheceram uma verdadeira explosão discursiva
sobre o sexo. A colocação do sexo em discurso não é uma prerrogativa de Freud,
mas aquilo que se transformou na grande injunção dos últimos dois séculos. O
fenômeno da histeria, a familiarização, a preocupação com a masturbação das
crianças, a organização física e funcional dos colégios, a confissão religiosa,
o controle sobre a procriação, a psiquiatrização dos perversos, e tantas outras
práticas mais, falavam do sexo. Nunca se falou tanto sobre o sexo. “A colocação
do sexo em discurso”, como diz Foucault, não é uma novidade da psicanálise e
sequer é uma novidade para o homem do século XIX:
A grande originalidade de Freud não
foi descobrir a sexualidade sob a neurose. A sexualidade estava lá, Charcot já
falara dela. Sua originalidade foi tomar isto ao pé da letra e edificar a
partir daí a Traumdeutung, que é algo diferente da etiologia sexual das
neuroses (...) o forte da psicanálise é ter desembocado em algo totalmente
diferente que é a lógica do inconsciente.[15]
GARCIA-ROZA,
Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p.32
a 41.
[1] citado por
LEVIN.K. Freud: a primeira psicologia das neuroses. Rio de Janeiro:
Zahar, 1980. p. 48.
[2]
Conseguir delimitar um diagnóstico diferencial da histeria, que a distinguisse
de quaisquer outras doenças, era o desafio empreendido por Charcot.
[3] FOUCAULT,
Michel. Anotações do curso de 1973-74 no Collège de France (mimeog.).
[4] cf. LEVIN.K.
Freud: a primeira psicologia das neuroses. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. p.
50.
[5]
Freud ouve Charcot mencionando a relação entre histeria e sexualidade no âmbito
informal, mas o neurologista francês não incorpora esta percepção em sua
teoria. Quem irá relacionar teoricamente a histeria com a sexualidade é o
próprio Freud.
[6] cf. MANNONI,
O. Freud e a psicanálise. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. pp. 35-36.
[7]
FREUD,
Sigmund. Edição Standard Brasileira (ESB) das Obras Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1970-1977. v. I, p. 99.
[8]
FREUD,
Sigmund. Edição Standard Brasileira (ESB) das Obras Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1970-1977. v. I.
[9]
FREUD,
Sigmund. Edição Standard Brasileira (ESB) das Obras Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1970-1977. v. XIV, p. 19.
[10]
FREUD,
Sigmund. Edição Standard Brasileira (ESB) das Obras Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1970-1977. v. XIV, p. 26.
[11]
FREUD,
Sigmund. Edição Standard Brasileira (ESB) das Obras Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1970-1977. v. II, p. 19.
[12] JONES,
Ernst. Vida e obra de S. Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. p.
237.
[13]
FREUD,
Sigmund. Edição Standard Brasileira (ESB) das Obras Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1970-1977. v. XIV, p. 24.
[14] FOUCAULT,
Michel. História da sexualidade. Rio de Janeiro: Graal, 1977.
[15] FOUCAULT,
Michel. “A casa dos loucos”, in Microfísica do Poder. Rio de Janeiro:
Graal, 1979. pp. 261 e 266.
TEXTOS ESCLARECEDORES DE FREUD SOBRE HISTERIA
I. HISTÓRIA. - O nome “histeria” tem origem nos primórdios da medicina
e resulta do preconceito, superado somente nos dias atuais, que vincula as
neuroses às doenças do aparelho sexual feminino. Na Idade Média, as neuroses
desempenharam um papel significativo na história da civilização; surgiam sob a
forma de epidemias, em consequência de contágio psíquico, e estavam na origem
do que era fatual na história da possessão e da feitiçaria. Alguns documentos
daquela época provam que sua sintomatologia não sofreu modificação até os dias
atuais. Uma abordagem adequada e uma melhor compreensão da doença tiveram
início apenas com os trabalhos de Charcot e da escola do Salpêtrière, inspirada
por ele. Até essa época, a histeria tinha sido a bête noire[1] da
medicina. Os pobres histéricos, que em séculos anteriores tinham sido lançados
à fogueira ou exorcizados, em épocas recentes e esclarecidas, estavam sujeitos
à maldição do ridículo; seu estado era tido como indigno de observação clínica,
como se fosse simulação e exagero.
A histeria é uma neurose no mais estrito sentido da palavra - quer
dizer, não só não foram achadas nessa doença alterações perceptíveis do sistema
nervoso, como também não se espera que qualquer aperfeiçoamento das técnicas de
anatomia venha a revelar alguma dessas alterações. A histeria baseia-se total e
inteiramente em modificações fisiológicas do sistema nervoso; sua essência deve
ser expressa numa fórmula que leve em consideração as condições de
excitabilidade nas diferentes partes do sistema nervoso. Uma fórmula
fisiopatológica desse tipo, no entanto, ainda não foi descoberta; por enquanto,
devemo-nos contentar em definir a neurose de um modo puramente nosográfico,
pela totalidade dos sintomas que ela apresenta, da mesma forma como a doença de
Graves se caracteriza por um grupo de sintomas - exoftalmia, bócio, tremor,
aceleração do pulso e alteração psíquica -, sem qualquer consideração relativa
a alguma conexão mais íntima entre esses fenômenos.
II. DEFINIÇÃO. - As autoridades alemãs, assim como as inglesas, ainda
hoje têm o hábito de distribuir caprichosamente as descrições “histeria” e
“histérico” e de agrupar indiscriminadamente a “histeria” com os estados
nervosos em geral, a neurastenia, muitos dos estados psicóticos e muitas
neuroses que ainda não foram retiradas do caos das doenças nervosas. Charcot,
pelo contrário, sustenta com firmeza a opinião de que a “histeria” é um quadro
clínico nitidamente circunscrito e bem definido (...). A sintomatologia da
(...) histeria, extremamente rica, mas nem por isso anárquica, compõe-se de uma
série de sintomas[2].
FREUD,
Sigmund. Histeria. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição
standard brasileira. vol.
I. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 77 e 78.
A enorme importância prática da histeria
masculina (que geralmente não é reconhecida) e, em particular, a histeria que
se segue a um trauma foi ilustrada por ele como o caso de um paciente que,
durante cerca de três meses, constituiu o ponto central dos estudos de Charcot.
Assim, por meio de seu trabalho, a histeria foi retirada do caos das neuroses,
diferençada de outros estados de aparência semelhante, e a ela se atribuiu uma
sintomatologia que, embora extremamente multiforme, tornava impossível duvidar
de que imperassem nela uma lei e uma ordem.
FREUD,
Sigmund. Relatórios sobre
meus estudos em Paris e Berlim. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud.
Edição standard brasileira. vol. I. Rio de Janeiro:
Imago, 1996. p. 46.
O tratamento direto consiste na remoção das fontes psíquicas que
estimulam os sintomas histéricos, e isto se torna compreensível se buscarmos as
causas da histeria na vida ideativa inconsciente. Consiste em dar ao paciente
sob hipnose uma sugestão que contém a eliminação do distúrbio em
causa. Assim, por exemplo, curamos uma tussis nervosa hysterica fazendo
pressão sobre a laringe do paciente hipnotizado e assegurando-lhe que foi
removido o estímulo que o faz tossir, ou curamos uma paralisia histérica do
braço compelindo o paciente, sob hipnose, a mover o membro paralisado, parte
por parte. O efeito até se torna maior se adotarmos um método posto em prática,
pela primeira vez, por Joseph Breuer, em Viena, e fizermos o paciente, sob
hipnose, remontar à pré-história psíquica da doença, compelindo-o a reconhecer
a ocasião psíquica em que se originou o referido distúrbio. Esse método de
tratamento é novo, mas produz curas bem-sucedidas, que, por outros meios, não
são alcançadas. É o método mais apropriado para a histeria, justamente porque
imita o mecanismo da origem e da cessação desses distúrbios histéricos. Isso
porque muitos sintomas histéricos que resistiram a todos os tratamentos
desaparecem espontaneamente sob a influência de um motivo psíquico suficiente
(por exemplo, uma paralisia da mão direita desaparecerá se, numa discussão, o
paciente sentir ímpetos de dar um murro no ouvido do adversário), ou sob a
influência de alguma excitação moral, de um susto ou de uma expectativa (por
exemplo, em um local de peregrinação), ou, por fim, quando há uma drástica
alteração das excitações no sistema nervoso, após um ataque convulsivo. O
tratamento psíquico direto dos sintomas histéricos ainda será considerado o
melhor no dia em que o entendimento da sugestão tiver penetrado mais
profundamente nos círculos médicos (Bernheim - Nancy[3]). -
Atualmente, não se pode decidir com certeza até que ponto a influência psíquica
desempenha um papel em alguns outros tratamentos aparentemente físicos. (...)
Para sintetizar, podemos dizer que a histeria é uma anomalia do sistema
nervoso que se fundamenta na distribuição diferente das excitações,
provavelmente acompanhada de excesso de estímulos no órgão da mente. Sua
sintomatologia mostra que esse excesso é distribuído por meio de ideias
conscientes ou inconscientes. Tudo o que modifica a distribuição das excitações
no sistema nervoso pode curar os distúrbios histéricos: esses efeitos são, em
parte, de natureza física e, em parte, de natureza diretamente psíquica.
FREUD, Sigmund. Histeria.
Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira. vol.
I. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 93 e 94.
Procurei abordar o problema dos ataques histéricos segundo um outro
critério diferente do descritivo; examinando pacientes histéricos em estado
hipnótico, cheguei a novos achados, alguns dos quais mencionarei aqui. O ponto
central de um ataque histérico, qualquer que seja a forma em que este apareça,
é uma lembrança, a revivescência alucinatória de uma cena que é
significativa para o desencadeamento da doença. (...) O conteúdo da
lembrança geralmente é ou um trauma psíquico, que, por sua intensidade, é
capaz de provocar a irrupção da histeria no paciente, ou é um evento que,
devido à sua ocorrência em um momento particular, tornou-se um trauma.
Nos casos conhecidos como histeria “traumática”, esse mecanismo é
evidente até à observação mais superficial, mas também pode ser demonstrado na
histeria em que não existe um único trauma de maior significação. Em tais
casos, constatamos traumas menores, repetidos, ou, quando predomina o fator da
disposição, lembranças em si mesmas indiferentes, mas que assumem a intensidade
de traumas. Um trauma teria de ser definido como um acréscimo da excitação
no sistema nervoso, que este é incapaz de fazer dissipar-se adequadamente
pela reação motora. Um ataque histérico talvez deva ser considerado
como uma tentativa de completar a reação ao trauma.
Neste ponto, posso remeter a um trabalho sobre esse assunto, iniciado
em colaboração com o Dr. Josef Breuer.
FREUD,
Sigmund. Extratos das notas
de rodapé de Freud à sua tradução das Conferências das terças feiras de
Charcot. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição standard
brasileira. vol. I. Rio de Janeiro: Imago,
1996. p. 181 e 182.
A vida sexual é especialmente apropriada para proporcionar o conteúdo
[de tais traumas], devido ao contraste muito grande que representa para o
restante da personalidade e por ser impossível reagir a suas ideias.
Deve-se compreender que nossa terapia consiste em remover os resultados
das ideias que não sofreram ab-reação, seja revivendo o trauma num estado de
sonambulismo, e então ab-reagindo e corrigindo-o, seja trazendo-o para o plano
da consciência normal, sob hipnose relativamente superficial.
FREUD,
Sigmund. Esboços para a comunicação preliminar de 1893. Carta a Josef
Breuer. Obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira. vol.
I. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 195.
Todo evento, toda impressão psíquica é revestida de uma determinada
carga de afeto (Affektbetrag) da qual o ego se desfaz, seja por meio de
uma reação motora, seja pela atividade psíquica associativa. Se a pessoa é
incapaz de eliminar esse afeto excedente ou se mostra relutante em fazê-lo, a
lembrança da impressão passa a ter a importância de um trauma e se torna causa
de sintomas histéricos permanentes. A impossibilidade de eliminação torna-se
evidente quando a impressão permanece no subconsciente.
FREUD, Sigmund.
Algumas considerações para um estudo comparativo das paralisias motoras
orgânicas e histéricas. Obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira. vol.
I. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 219 e 220.
Eu
tomaria por histérica, sem hesitação, qualquer pessoa em quem uma oportunidade
de excitação sexual despertasse sentimentos preponderante ou exclusivamente
desprazerosos, fosse ela ou não capaz de produzir sintomas somáticos.
FREUD,
Sigmund. Fragmento da
análise de um caso de histeria. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição standard
brasileira. vol. VII Rio de
Janeiro: Imago, 1996. p. 37.
[1]
Bête noire: monstro assustador.
[2]
Nas páginas subsequentes, Freud menciona sintomas como ataques convulsivos,
alterações sensoriais, zonas do corpo sofrendo dores, paralisias, tremores, contrações
musculares, insensibilidade etc.
[3] Hyppolyte Bernheim (1837 - 1919) foi um médico neurologista francês
que desenvolveu na cidade de Nancy um amplo trabalho clínico e teórico a
respeito da hipnose. Para Bernheim, a sugestão do hipnotizador é a questão
central dos processos hipnóticos. Freud presenciou em 1889 durante semanas as
sessões de hipnose terapêutica comandadas por Bernheim, tendo traduzido para a
língua alemã dois livros do autor: Da
sugestão e suas aplicações à terapêutica, em 1889, e Hipnotismo, sugestão, psicoterapia, em 1892.
A HISTERIA E AS ORIGENS DA PSICANÁLISE
A
PREMISSA DA EXISTÊNCIA DE UM INCONSCIENTE NO PSIQUISMO HUMANO
A obra de Freud, no que se refere à
Psicanálise, começa com textos sobre hipnotismo e histeria produzidos a partir
de seus estudos realizados durante a permanência por seis meses, entre 1885 e
1886, no Hospital de la Salpêtrière, em Paris. Ali, estudou com o Prof.
Jean-Martin Charcot, que se interessava pela pesquisa da histeria e usava a
hipnose como recurso. Charcot dedicava seu trabalho a comprovar que existe um
âmbito inconsciente na histeria que pode ser acessado pela hipnose e que teria
relação com a anatomia humana.
Quando Freud retorna a Viena, cidade em
que residia, passando a se dedicar ao tratamento de pacientes portadores de
histeria, preponderantemente mulheres, fica impressionado com as evidências de
que essas pessoas apresentam sintomas que não têm base orgânica e de que – em
alguns casos – não reconhecem em si mesmas certas experiências de vida, uma vez
que estas não são lembradas. Nessa época, mantém parceria com um amigo também
médico, Josef Breuer, e ambos passam a discutir sobre a possibilidade de existir
um âmbito inconsciente no sistema psíquico desses pacientes. As evidências de
um inconsciente podiam ser observadas em pessoas que apresentavam sintomas no
corpo que não tinham base orgânica, os quais envolviam enxaquecas, perda
relativa ou total da visão, parestesias, dores variadas, problemas gástricos e
outros. Os autores usam os termos Inconsciente [Unbewusst] e O
Inconsciente [Das Unbewusste], que, numa tradução literal, seria “aquilo
que não se sabe”; o termo alemão traz também a ideia de que a inconsciência é
involuntária. Em contrapartida, temos o termo Bewusst e Das Bewusste,
literalmente “aquilo que se sabe”, portanto consciente, conhecido. Ressaltamos
que em alemão todo substantivo é iniciado com letra maiúscula.
Breuer e Freud notam que, em alguns casos,
o paciente não tem conhecimento, durante o estado de vigília, do que relatou
enquanto estava hipnotizado e, em certos casos, parece que está presente algo
como uma dupla consciência. Existiriam dois estados de consciência, com pouca
comunicação entre ambos. Suas conclusões derivam preponderantemente da análise
que fazem do caso de uma paciente de Breuer cujo nome era Bertha Pappenheim,
que foi imortalizada na obra psicanalítica com o pseudônimo de Anna O.
FREUD
E BREUER FAZEM SUA PRIMEIRA COMUNICAÇÃO SOBRE A HISTERIA
No texto conjunto de Breuer e Freud
intitulado “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos” [Über
den psychischen Mechanismus hysterischer Phänomene], publicado em 1893 e
incluído em 1895 na obra “Estudos sobre histeria” [Studien über
Hysterie], é apresentado o problema que intriga: os pacientes histéricos
teriam vivenciado um trauma do qual não se recordam, que, contudo, mantém
relação causal com o evento sintomático posterior que traz o paciente à clínica
das doenças nervosas. Ou seja, existiria uma ligação entre o que está
acontecendo “agora” e algo ocorrido antes, sendo que aquilo que pertence ao
passado longínquo não é lembrado pela consciência da pessoa, mas se manifesta
de outra forma, como um sintoma no corpo que substitui aquilo que foi “esquecido”.
Essa afirmação remete ao conceito de Inconsciente.
Usando a hipnose como via de acesso a
lembranças esquecidas, notam que ao facilitar-se, por meio dela, a sua
recordação, pode-se estabelecer junto ao paciente o nexo causal entre os
sintomas atuais e sua origem em um tempo passado, ou seja, o nexo entre sintomas
e registros psíquicos inconscientes. Abre-se, dessa forma, o caminho para a
eliminação do sintoma histérico, pois, conhecida sua causa, ela deixa de ser
inconsciente e pode ser eliminada.
Breuer e Freud propõem que fatos externos
ao psiquismo teriam relação direta com o fenômeno histérico, na medida em que
teria havido um acidente traumático envolvendo acontecimentos e outras pessoas,
de caráter intolerável para o psiquismo, o qual teria levado à formação de
registros inconscientes. Esses eventos estariam na base patogênica que instaura
as condições que produzem o fenômeno histérico. Nesse sentido, afirmam que o
paciente alucina, em cada ataque histérico, um mesmo evento original [relativo
ao acidente traumático]. Por essa afirmação, estabelecem o elo entre um
registro psíquico alocado num âmbito inconsciente, portanto invisível, e um
sintoma a ele relativo que se tornou sua forma de expressão, este, em
princípio, visível ou passível de ser observado.
O
RECALQUE
Tendo concluído que houve um evento de
caráter traumático que ficou esquecido em algum lugar do sistema psíquico
inacessível pela consciência da pessoa, portanto, tendo se tornado
inconsciente, Breuer e Freud desenvolvem o conceito de recalque [Verdrängung].
Usam o termo para designar o conjunto de registros psíquicos tornado
inconsciente e mantido nessa condição por ser insuportável a lembrança do
evento traumático. Dizendo de outro modo: é melhor ficar inconsciente para não
lembrar justamente aquilo que é traumático. Está aí, para esses pesquisadores,
nesse estágio de suas pesquisas, a base de formação do Inconsciente, que é,
segundo suas concepções de então, formado em decorrência da atuação de um
movimento de defesa acionado psiquicamente contra eventos traumáticos no
sentido psicológico, o qual é denominado recalcamento. Portanto, um
Inconsciente surge e atua continuamente, reprimindo o retorno da lembrança
inconveniente e evitando que ela novamente invada a consciência. O termo alemão
escolhido para designar o recalcamento, Verdrängung, do verbo verdrängen,
tem sua melhor tradução como “empurrar para o lado” ou “desalojar”, pois
significa literalmente desalojamento ou deslocamento, embora também possa
significar repressão. Um bom modo de conceituar a partir de uma tradução assim
feita poderia ser “Repressão por meio do mecanismo de empurrar para o lado
aquilo que incomoda”.
Para essas conclusões sobre o mecanismo de
defesa de recalcamento, além da experiência de Breuer, Freud considera as
experiências e conclusões do Dr. Charcot, com quem havia estudado em Paris, o
qual mantinha a crença no potencial da hipnose e em um Inconsciente acessível
unicamente, nessa época, por essa prática. Ficara também, para ele, a lembrança
da afirmação de Charcot de que a sexualidade tinha seu lugar nos quadros de
histeria. É importante situar a relevância da sexualidade na construção da
Psicanálise, pois desde os seus primeiros estudos com a histeria, usando a
hipnose e a fala do paciente sobre seus sintomas e respectivas causas/origens,
Freud nota que o tema da sexualidade surge como relevante fator etiológico nas
neuroses em geral e na histeria em particular. Ele propõe que o acidente
traumático está carregado de experiências que envolvem sexualidade, embora,
nesse momento de sua obra, ainda não conseguisse explicitar com clareza a
abrangência do que seria sexualidade no sentido traumático.
TEORIA
DA SEDUÇÃO [VERFÜHRUNGSTHEORIE] E RECALQUE [VERDRÄNGUNG]
Obtendo evidências da presença de
conteúdos relativos à sexualidade e da instauração do trauma originário durante
a infância, Freud supôs, inicialmente, que a formação do quadro de histeria
ocorreria durante o período infantil, a partir de um trauma sexual ao qual a
criança não pôde reagir, na medida em que teria sido vítima da sedução de um
adulto quando ainda não havia desenvolvido suficientemente a sua maturidade
sexual. Ao chegar à vida adulta, um novo acontecimento relacionado com a
sexualidade teria despertado no sujeito efeitos dos conteúdos do trauma sexual
que eram mantidos inconscientes. No início, ele parece admitir que tenha
ocorrido contato físico entre a criança e o adulto, mas se refere a um susto [Schreck]
ocorrido durante a cena.
No entanto, após investigar com maior
profundidade alguns casos, conclui que o ato sexual pode não ter ocorrido e
que, nesse caso, está presente somente a fantasia decorrente de uma situação
que inclui aspectos da sexualidade. A criança teria fantasiado ter sido
seduzida pelo adulto; essa impressão poderia derivar de sentimentos de amor que
incluiriam contatos corporais e que a levariam a fantasiar experiências típicas
do mundo adulto. Na continuação, Freud mantém a proposta de que o trauma sexual
está relacionado à “sedução”, porém não obrigatoriamente como evento sexual
concreto, mas atuando o campo da fantasia. Essa conclusão representou o
reconhecimento de que o ato dito sexual talvez não tenha ocorrido. Mais tarde
ainda, percebe que o processo de “sedução” pode estar relacionado à fantasia da
criança e decorre de seu desejo inconsciente; ela criaria fantasias referentes
ao seu desejo de amor direcionado ao adulto. As vivências infantis, em especial
as relativas à presença da sexualidade nesse estágio de vida, passam a ganhar
atenção especial de Freud para explicar o estabelecimento da neurose de seus
pacientes adultos.
A teoria da sedução evoluiu desde a
proposta de que um adulto seduziu a criança, passando para a proposta de que a
criança construiu a fantasia de ter sido seduzida, para, finalmente, chegar à
teoria de que a criança também constrói fantasias com conteúdos amorosos
relativos ao adulto. (...)
A proposta original de Freud é de que os
sintomas neuróticos decorreriam da reativação, no adulto, de conteúdos sexuais
infantis inconscientes. O encontro de caráter sexual entre criança e adulto
acontece habitualmente sem que este último tenha consciência do erotismo
presente; um exemplo está no carinho envolvendo contatos corporais que não são
considerados eróticos pelos adultos. Somos de opinião que, de uma maneira ou
outra toda criança é alvo da sedução do adulto. A discussão sobre o complexo de
Édipo, que apresentamos mais adiante, coloca isso como algo de que não se
consegue escapar. O que não ocorre necessariamente é ela ser
violentada/abusada. Pode não haver o assalto sexual, mas há uma sexualidade
latente que seguirá caminhos mais ou menos complicados conforme cada caso.
Contudo, ressalta-se que a teoria de uma sedução fantasiosa não elimina a
possibilidade de ter ocorrido realmente a tentativa ou o ato envolvendo sexo na
vivência infantil.
Um importante autor psicanalítico, J.
Laplanche, colocou posteriormente a proposta de uma teoria da sedução
generalizada, a qual em essência aborda a impossibilidade de que ocorra o
desenvolvimento de uma criança fora de um contexto de sedução envolvendo seus
contatos com os adultos.
Ao se reconhecer que a sexualidade sempre
está presente, cabe o esclarecimento no sentido de prevenir sobre o uso do
termo “sexualidade” em Psicanálise, para que não se a considere de acordo com
padrões culturais que relativizam, enviesam ou limitam o termo.
Esclarecemos que, na época de Freud, não
era novidade que devia haver ligação entre histeria e sexualidade. Conforme
relata Martin Ehlert-Balzer no Handbuch psychoanalytischer Grundbegriffe,
as afirmações de Freud a respeito não foram tão escandalosas quanto se diz e
Breuer também reconheceu a sexualidade como fator mais importante em muitos
casos de histeria.
Para esclarecer sobre a formação do âmbito
inconsciente, o termo recalcado contribui ao significar conteúdos traumáticos
que o sujeito reprimiu em função de não conseguir lidar com determinadas
vivências; a prevalência de seu início se daria durante a infância, em
processos de sedução.
Pode-se afirmar que a impossibilidade de
acessar o âmbito do Inconsciente decorreria de ter havido um trauma incluindo
aspectos da sexualidade e, também, da falta de preparo para lidar com
acontecimentos, o que promoveria um susto em idade precoce, quando a criança
não consegue reconhecer, compreender e discriminar o significado presente nos
eventos em que mantém contatos com o adulto, já que não dispõe de recursos
relativos à maturidade sexual, cognitiva e emocional. Entrando em contato com
sensações precoces que a atraem, bem como estando sujeita a uma Lei Moral ainda
incipiente, não consolidada nem suficientemente reconhecida, por lhe faltarem
vivência e cognição, a criança não conseguiria reagir com os recursos da
maturidade psíquica e sexual. Esse impedimento a levaria a utilizar um
mecanismo psíquico específico que implica tornar inconsciente aquilo que é
insuportável e incompreensível; trata-se do mecanismo de recalcar. O mecanismo
de recalcar constitui-se como mecanismo de repressão promovida em decorrência
de ser melhor – para o sujeito – reprimir o reconhecimento de algo do que
aceitá-lo.
O mecanismo de tornar inconsciente o que é
insuportável [recalcar] consiste na realização de uma separação ou
distanciamento entre a representação da cena ocorrida – isto é, a ideia [Vorstellung]
ou noção relativa à cena vivenciada, por ter sido vista, escutada ou sentida –
e o afeto relativo a essa cena que não pode ser aceita ou carga energética a
ela ligada [Affekt]. Portanto, a ideia [Vorstellung] se separa de
seu afeto [Affekt] e permanecem ambos separados ou afastados entre si; reduz-se
assim a intensidade da ligação energética/afetiva que os une originalmente.
Explica-se Vorstellung como
consistindo num registro psíquico passível de memória; como exemplo, citamos a
imagem guardada no sistema psíquico que é relativa a uma experiência. Levando
em conta que todo evento inclui Vorstellung somada a um Affekt [V
+ A], o recalque significa que [V] se isola de [A] e ambos permanecem livres
entre si. Como os registros psíquicos não têm como escapar do psiquismo, Freud
postula que Vorstellung [V] e Affekt [A] separados entre si
passam a localizar-se no âmbito inconsciente do psiquismo, onde se forma a base
de um núcleo patogênico que resulta dos conteúdos recalcados circulando
livremente. Para facilitar a compreensão, traduzimos de ora em diante, Vorstellung
por Representação e Affekt por Afeto, e, a nossa fórmula passa a ser [R
+ A] em vez de [V + A].
Mesmo discriminado na sociedade vienense
por defender a existência de sexualidade desde a infância e por abordar os
aspectos da sedução infantil pelos adultos, Freud não abandona suas teses e as
defende em todo o transcorrer de sua obra. Sabe-se que estava ciente da
relevância da sexualidade no encontro do adulto com a criança e talvez se possa
dizer que poderia ter sido mais enfático ainda na defesa do reconhecimento das
implicações da sedução infantil na formação dos quadros de neurose, pois a
clínica psicanalítica atual confirma cotidianamente casos de submissão de
crianças a experiências carregadas de sexualidade. Os aspectos da sexualidade
são discutidos posteriormente na obra “Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade”.
O
CONTEÚDO RECALCADO É INCONSCIENTE E ESSE INCONSCIENTE É AMPLIADO A PARTIR DE
NOVOS EVENTOS
O sistema psíquico inconsciente não é
formado apenas pelo conteúdo originalmente recalcado. Novos eventos na vida de
uma pessoa influem na sua ampliação; trata-se de “eventos auxiliares”, que, de
algum modo, estão associados a representações que fazem parte dos conteúdos
recalcados anteriormente; esses novos eventos denominados eventos auxiliares
são os que se ligam a traumas mais primitivos, infantis [no sentido psíquico],
os quais foram anteriormente recalcados. Esse processo que envolve o acúmulo de
experiências que se associam, ampliando o âmbito do recalcado, contribui para
ampliar o próprio núcleo patogênico em que está o recalque; os conteúdos novos
se ligam ao que já havia sido ali depositado. Ou seja, o âmbito do recalcado
vai sendo aumentado com conteúdos que a ele se agregam, formando um núcleo
patogênico complexo que constitui a base patogênica da formação dos sintomas
histéricos.
No núcleo patogênico, os afetos relativos
ao que foi recalcado formam pontos de elevada excitação psíquica. Em
decorrência, manifesta-se um excedente de carga psíquica que precisa ser
direcionado para um processo de escoamento, visando reduzir a tensão psíquica
que ele causa. Não havendo o escoamento, mantém-se a tensão que está na base da
formação dos sintomas histéricos. É preciso que ocorra um escoamento do excesso
de tensão cada vez que este se torna insuportável. Se isso não ocorrer de modo
adequado, surgirá um sintoma indicativo do excesso. Cabe a analogia com a
panela de pressão contendo água, que, sobre o fogo, vai acumulando
gradativamente mais pressão, que precisa ser escoada pela válvula de segurança.
Caso não houvesse a válvula, a panela explodiria. O vapor que sai por essa
válvula de segurança corresponde ao sintoma histérico.
Pesquisando pacientes histéricos, Freud
chega a importantes conclusões sobre os quadros de histeria e seu tratamento,
citando os seguintes sintomas da histeria: nevralgias e anestesias variadas,
contraturas e paralisias, ataques histéricos e convulsões epileptoides, petit
mal e perturbações como tiques, vômitos crônicos e anorexia, formas
variadas de perturbação da visão, alucinações visuais recorrentes e outros
sintomas. Breuer e Freud ressaltam que são comuns, em adultos, sintomas que
devem estar relacionados a fatos ocorridos na infância, e que, muitas vezes, a
relação entre causa e efeito sintomático é evidente, enquanto em outras já não
é simples encontrar seu nexo causal, condição essa que requer que se estabeleça
uma relação simbólica entre a causa precipitante ou original e o fenômeno
patológico posterior, manifestado no adulto. Isto porque o psiquismo se utiliza
do campo simbólico para estabelecer a relação entre a causa e a patologia e,
nesse sentido, o sintoma poderia ser analisado sob o ponto de vista do
simbolismo.
Evoluindo em suas pesquisas, eles concluem
que, nas neuroses traumáticas, a causa atuante da doença não é o dano físico ao
organismo, na medida em que tenha sido de pequena importância, e que, em vez
desse dano, o que tem importância na formação causal do trauma é o afeto
relacionado ao susto. Quando, no susto, há um afeto envolvido, o trauma
psíquico é facilitado, pois está diretamente relacionado a um evento que
envolve afeto. O afeto é visto como a energia psíquica que se liga às
representações e apresenta variação econômica [quantitativa] em função da
relevância da própria representação em causa. Cabe esclarecer que, no original
da obra freudiana, as palavras alemãs usadas foram Affekt, que em português
significa afeto, afeição, emoção ou mesmo sentimento, e Schreckaffekt,
que significa o afeto que inclui o impacto de um susto [Schreck + Affekt].
Os autores notam que o trauma psíquico
está presente na maioria, senão em todos os sintomas histéricos, e consideram
que decorre da irrupção de um susto ou medo, vergonha e dor psíquica [ou dor
por influência psíquica]. Afirmam, ainda, que devem ser levadas em conta
também: a) a suscetibilidade da pessoa afetada e b) as condições situacionais
presentes durante o evento deletério. Enfatizam que o efeito traumático pode
ser influenciado por uma ou ambas as condições, ou seja, simultaneamente duas
influências, uma relativa à suscetibilidade da pessoa e outra relativa às
condições situacionais presentes no evento.
Continuando, admitem que, na histeria
comum, podem ocorrer, em vez de um grande trauma, diversos traumas parciais,
todos ligados a uma causa comum de sofrimento. Neste momento, estão retomando o
conceito de eventos auxiliares ligados ao trauma original. Também lembram que
um fato trivial pode chegar a se associar a outro realmente atuante, ou mesmo
durante um momento de maior suscetibilidade, estabelecendo assim um sintoma
específico. Esclarecem que o trauma psíquico fica retido como uma lembrança,
que se manifesta mediante o sintoma histérico. Em outras palavras, surge, em um
segundo tempo, um sintoma com as características de uma manifestação histérica;
seria uma lembrança “abandonada” em um lugar do sistema psíquico inacessível a
um reconhecimento pelo Eu, “um lugar” inconsciente.
Eles propõem nessa época que para
conhecer-se o evento traumático causador do sintoma histérico é preciso
provocar o ressurgir da lembrança relativa a esse sintoma, e a forma de obter
isso é induzir o paciente a comunicar a lembrança “abandonada” por meio de
palavras que traduzam o afeto envolvido no evento traumático. Ou seja, é
necessário levar o paciente a encontrar palavras que possam traduzir o afeto
que perdeu sua ligação com a representação recalcada, para, assim, abrir-se o
caminho para o desaparecimento do sintoma. Afirmam, ainda, que os histéricos
sofrem, principalmente, de reminiscências, pois traços de lembranças de fatos
que tiveram que ser “esquecidos” permanecem na base do seu sofrimento, e os
sintomas constituem seus substitutos.
Considerando que a angústia mantém
importante presença na sintomatologia da histeria, cabe destacar que Freud
usou, para referir-se ao que acontece com a criança no evento traumático, a
palavra alemã Angst, que significa medo. Não encontramos no alemão uma
palavra que tenha o sentido original que tem no português a palavra angústia.
Mas existem, nessa língua, termos relativos ao medo, como Angstgefühl,
“sentimento ou sensação de medo”, e Angst bekom-men, “adquirir medo ou
ficar com medo”. Há também o termo Gewissensangst, que pode ser
traduzido como medo da consciência, portanto se aproximando do conceito de
angústia.
Contudo, devido à sequência de traduções
da obra freudiana, passando antes pelo inglês e francês e, depois, para o
português, encontram-se variações nas traduções que dificultam a compreensão
sobre o que seja angústia dissociada de ansiedade e, também, quando o melhor
sentido seria medo e não angústia. Há certa tendência à ambiguidade no uso dos
termos angústia e ansiedade, conforme a origem da tradução inglesa ou francesa.
Portanto, ao encontrar os termos angústia ou ansiedade, o leitor terá melhor
compreensão ao recordar que, em verdade, Freud se referia ao termo “medo” e
palavras dele derivadas e aos sentimentos ou sensações relativas à experiência
de medo. Cabe o registro de que Freud conhecia os termos das línguas francesa e
inglesa e aceitou, de algum modo, o seu uso. Para melhor compreensão dessa
questão, recomenda-se a leitura dos Comentários do Editor Brasileiro que
antecedem o texto “Além do princípio de prazer”, incluídos no volume II
das “Obras psicológicas de Freud – Escritos sobre a psicologia do
inconsciente”, tradução coordenada por Luiz Alberto Hanns. Além disso,
ressalta-se que, durante os anos 1940/1950, Michael Balint trabalhou o âmbito
do desejo presente no enfrentamento do risco de vida em atividades radicais em
sua obra Angstlust und Regression, na qual evidencia a ligação entre o
enfrentamento do medo do desamparo primário e o desejo projetado sobre objetos
materiais usados como substitutos do amparo vivenciado primitivamente junto a
esses objetos primários. Para uma equivalência relativa ao termo Angslust,
se for usada uma tradução literal, pode-se usar a expressão “prazer com o medo”
ou “desejo que remete a uma situação da qual se tem medo, podendo incluir certa
nostalgia”, evidentemente medo do desamparo.
REAÇÃO
E AB-REAGIR [REAKTION UND ABREAGIREN]
É enfatizado por Breuer e Freud que, para
desenvolver-se o quadro de histeria, é preciso que tenham ocorrido experiências
num tempo infantil, as quais influenciam o psiquismo atual da pessoa, mas que
não fazem sentido para ela, pois não consegue ligar essas experiências
anteriores ao seu atual quadro. Para ocorrer o esmaecimento da lembrança e,
consequentemente, a perda do seu respectivo afeto, é necessária uma reação
energética, forte, que seja adequada ao fato que provocou o afeto traumático.
Se o indivíduo consegue reagir adequadamente a um evento que inclui muita carga
afetiva, não ocorre a separação entre representação e afeto. Nesse caso, a
representação e o afeto a ela ligado permanecem formando um conjunto vinculado.
Consequentemente, eles passam a discutir
sobre o termo reação, com o sentido de reflexo voluntário ou involuntário que
permite a liberação do afeto traumático. A vingança pode ser exemplo de reação
que elimina ou reduz o afeto. Se a reação é reprimida, o afeto permanece sem
liberação, condição que está na gênese da neurose. Propõem que o uso da
linguagem também ocupa o lugar da reação, constituindo um caminho adequado para
a descarga do afeto.
Quando não pode haver reação a um trauma
psíquico, este retém seu afeto original. Se, em consequência, o sujeito não
consegue livrar-se do acréscimo de estímulo, o evento pode permanecer como um
trauma psíquico. Um sistema psíquico sadio tem outros métodos de lidar com o
afeto de um trauma psíquico, mesmo que não possa efetuar a reação motora e por
palavras – por exemplo, elaborando-o associativamente e produzindo ideias
contrastantes. Exemplificando: se uma pessoa é insultada, mesmo que não
retribua o golpe nem retruque com grosserias, ela pode reduzir o afeto ligado
ao insulto pela evocação de ideias contrastantes, como aquelas relativas a seu
valor pessoal, à indignidade da pessoa que a insultou e outras soluções
equivalentes. Uma pessoa sadia consegue, de algum modo que lhe é próprio, lidar
com um insulto e assim obter que o afeto originalmente intenso em sua memória
perca sua intensidade e, com o passar do tempo, seja esquecido.
Na eventualidade de não ter havido uma
reação no momento do evento traumático, o afeto pode ser ab-reagido [reação em
outro momento ou posteriormente, uma ab-reação]. Além disso, um evento
que poderia tornar-se traumático tem seu impacto patogênico reduzido ou
eliminado se o indivíduo consegue estabelecer novas associações que reduzam seu
significado deletério. Isto significa que o afeto pode ligar-se a outras representações
para formar novos conjuntos de representações e afetos.
As experiências relativas aos eventos
traumáticos estão inteiramente ausentes da lembrança dos pacientes durante o
estado psíquico normal, ou só se fazem presentes de forma sumária. Considerando
essa condição, Breuer e Freud propõem, nessa época, que apenas quando o
paciente é inquirido e consegue recordar um evento traumático essas lembranças
podem emergir com a nitidez inalterada de um fato recente. Para obter essas
recordações por meio da inquirição, os autores aplicavam a hipnose. Lembranças
relacionadas a fatos traumáticos que não haviam sido ab-reagidas
suficientemente eram recordadas mediante o uso da hipnose, desde que o paciente
fosse inquirido de modo adequado. Surgiu a proposta de procedimento terapêutico
sustentada na busca de uma ab-reação, possível quando a pessoa está no estado
de hipnose.
Assim, eles reconhecem a importância da
reação que evita ou dificulta a formação de um quadro histérico, mas também a
importância de se ab-reagir como fator que permite eliminar o sintoma que se
estabeleceu quando não foi possível a reação adequada durante o evento
traumático.
A dificuldade em reagir abre o caminho
para a formação do recalque, e a dificuldade de ab-reagir dificulta eliminar o
conteúdo recalcado. Os motivos que impedem a reação são de dois tipos. No
primeiro tipo, a natureza do trauma não comporta reação, como no caso de o
sujeito haver perdido uma pessoa querida, ou em eventos em que a situação
social impede a reação, ou porque o trauma se refere a algo que o sujeito se
esforça para esquecer; nesses casos, ocorre o recalcamento das coisas aflitivas
cujos afetos são insuportáveis. Já o segundo tipo decorre dos “estados
psíquicos peculiares” atuantes nas experiências deletérias, como no susto,
estados psíquicos positivamente anormais, estado crepuscular semi-hipnótico de
devaneios e auto-hipnose.
Os dois motivos podem se sobrepor, mas
também pode ocorrer que não esteja presente um estado psíquico peculiar e que
seja o próprio trauma psíquico o fator causal [original] para a produção do
estado psíquico anormal, condição essa que explica a impossibilidade da reação.
Em ambos os casos, há evidências de que também não foi possível ao indivíduo
chegar a uma compreensão [elaboração psíquica] do evento em suas associações
com outros eventos.
DUPLA
CONSCIÊNCIA
Freud e Breuer, em especial este
último, estão convencidos nessa época de que está presente, na histeria, um
estado psíquico de “dupla consciência” em estado rudimentar, e que a tendência
à dissociação entre as duas consciências e ao surgimento dos estados anormais
da consciência denominados estados hipnoides constitui o fenômeno básico da
histeria. Diferenciam a histeria disposicional de outra sintomatologia,
denominada histeria psiquicamente adquirida. Na histeria disposicional, o
estado hipnoide está presente antes da instalação da doença; existe no sujeito
uma disposição psíquica para a histeria, devido estar presente nele uma
tendência significativa a permanecer nos estados denominados hipnoides ou
crepusculares, em que prevalecem devaneios. No outro caso – o da histeria
psiquicamente adquirida –, a doença surge a partir de um evento traumático no
qual faltou ao sujeito o recurso necessário para reagir ao seu impacto; em vez
de reagir, o sujeito realiza uma divisão expulsiva do conteúdo insuportável do
trauma em direção ao seu âmbito inconsciente. Esclarecendo, os grupos de
representações que não conseguem ser aceitos pela consciência são remetidos ao
Inconsciente; assim, são expulsos para o Inconsciente os conteúdos
insuportáveis. (...)
Freud e Breuer afirmam que podem
ocorrer ligações entre certas representações inconscientes, formando conjuntos
que se mantêm separados das demais ligações existentes dentro do Inconsciente.
Seria uma condição secundária: a segunda consciência, que se manifestaria
durante o quadro de histeria aguda, por exemplo. Havendo a consciência
hipnoide, esta atuaria sem levar em conta a consciência do estado psiquicamente
normal; a consciência normal fica sem controle do sistema motor em sua
integralidade.
O
MÉTODO CATÁRTICO
Fundados na discussão precedente, os
autores postulam a invenção do que denominaram Método Catártico [Kathartische
Methode]. Trata-se de um método clínico que pretende levar o paciente a
entrar em contato com as lembranças “abandonadas” a partir de comandos que
requerem a aplicação da hipnose. Desta forma, o sujeito conseguiria expor, pela
palavra, os eventos traumáticos e, como etapa final, seria facilitado ao
profissional de psicoterapia a aplicação de uma sugestão para induzir o
paciente a deixar de manifestar o sintoma correspondente.
O método é denominado catártico por
referência ao termo catarse, que, do grego, traz a ideia de purgação, limpeza,
e representa uma nova forma de utilizar os recursos da hipnose em prol do
tratamento da histeria e outras neuroses. É constituído, basicamente, de três
etapas, pela ordem: 1. hipnose; 2. fala; e 3. sugestão. Esclarecendo: 1.
procedimento de hipnotizar o paciente; 2. então induzi-lo a falar sobre seus
sintomas e eventos a eles associados; e 3. finalmente, formular sugestões ao
paciente, com o propósito de eliminar sintomas por meio de fórmulas engenhosas
voltadas para o “esquecimento” de eventos desagradáveis ou causadores de
angústia, bem como redução do afeto envolvido com tais eventos por meio da
análise, que lhes tira parte ou a totalidade do impacto afetivo. O método está
sustentado no reconhecimento da existência de dois estados de consciência,
sendo um deles de âmbito inconsciente, desconhecido ou minimamente reconhecido
pelo estado de consciência normal. O conteúdo do estado inconsciente precisa
ser reconhecido para que seus efeitos deletérios possam ser eliminados ou
reduzidos. Nesse momento, o psiquismo poderia ser visto como sendo integrado
por dois estados psíquicos.
TORNAR
CONSCIENTE O QUE ESTÁ INCONSCIENTE
A tarefa do médico [depois se diria
psicoterapeuta e, mais tarde, psicanalista] consiste em hipnotizar o paciente
de modo a facilitar-se o acesso aos conteúdos inconscientes e, então, pela
sugestão, convidá-lo a falar sobre seus sintomas e, se possível, sobre sua
origem, tornando-os conscientes. Finalmente conhecidos – pela fala – os fatores
que explicam a razão de ser dos sintomas, realiza-se a sugestão que terá a
função de contribuir para que os sintomas sejam abandonados ou mesmo
substituídos. Sua proposta se sustenta nas evidências de que haveria um âmbito
inconsciente e um outro consciente: [das Unbewusste] e [das Bewusste].
Trata-se de uma psicoterapia que se
socorre da eliminação da força atuante do trauma que ainda não foi ab-reagido,
bem como da liberação do afeto “estrangulado” no âmbito do recalcado. Isso é
feito por meio da fala, que permite uma saída para “aquilo” que está recalcado,
ao tempo que submete a representação em causa a uma correção pela recuperação
das associações que foram distorcidas ou “perdidas”. A reintrodução, na
consciência normal – usando hipnose leve –, do conteúdo que estava recalcado no
Inconsciente ou a sua eliminação por sugestão constituem a etapa final da
psicoterapia pelo Método Catártico.
Contudo, Freud e Breuer reconhecem que nem
sempre ocorre a cura total, principalmente quando o paciente é mais suscetível
aos estados hipnoides. Suas conclusões derivam preponderantemente da análise
que fazem do caso de uma paciente de Breuer, Bertha Pappenheim, imortalizada na
obra psicanalítica com o pseudônimo de Anna O. Segue um resumo desse caso.
SENHORITA
[ FRÄULEIN] ANNA O., 21 ANOS (BREUER)
O tratamento ocorreu durante os anos 1880
a 1882. No caso de Anna O., uma jovem muito culta, tem-se um quadro histérico
que foi se estabelecendo gradativamente durante o período em que ela cuidou de
seu pai gravemente enfermo, período esse em que permaneceu à sua cabeceira por
longo tempo. Após a morte dele, seus sintomas tornaram-se intensos. De uma
condição inicial de eventos somáticos agudos, a paciente passou a apresentar
uma doença crônica.
Breuer enfatiza a dissociação psíquica da
paciente, que apresentava a denominada condição secundária ou segunda
consciência, considerada um estado psíquico distinto do estado psíquico de
normalidade. Ao aprofundar a discussão sobre essa condição secundária, Breuer
introduz o conceito de Inconsciente, um âmbito do psiquismo que seria
desconhecido pela consciência normal. Afirma que a paciente tinha conhecimento
da existência do âmbito inconsciente, mas reconhece que não conseguia ter
domínio sobre as manifestações resultantes dessa condição. (...)
Anna O. dividia o dia em dois tempos, de modo que (...) durante o dia era perseguida por alucinações; à noite, se tornava lúcida e assim permanecia trabalhando até a madrugada. Portanto, durante o período vespertino, permanecia em estado condizente com o de condição secundária e, no restante do tempo, principalmente à noite e de madrugada, permanecia em estado de consciência normal. Essa separação do tempo correspondia a uma repetição da separação de tempo que se vira forçada a realizar durante o longo período em que permanecera à cabeceira de seu pai moribundo – cuidando dele à noite. Tratava-se, portanto, da repetição de uma cena por ela vivida.
A terapêutica aplicada consistiu
basicamente em sessões de hipnose, que permitiram à paciente livrar-se das
sensações deletérias e sintomas histéricos que se acumulavam diariamente,
facilitando-lhe, assim, conduzir as suas horas de consciência normal [no final
do dia] em condições minimamente adequadas. Esse processo perdurou por dois
anos, entre 1880 e 1882, encerrando-se quatro anos antes do retorno de Freud a
Viena, após ter estudado com Charcot em Paris. Essa história clínica foi
contada por Breuer a Freud, que ficou bastante impressionado e, interessado no
estudo da histeria, engajou-se na pesquisa com Breuer.
Anna O. descreveu a terapêutica como sendo
uma cura pela fala [talking cure] e que, com esse tratamento, ocorreu o
que denominou uma limpeza de chaminé [chimney-sweeping]. O uso desses
termos por Anna O. decorreu de ela, nos estados hipnoides, substituir o alemão
pelo inglês e de ter consistido o tratamento em sessões nas quais lhe era
solicitado falar das origens de seus sofrimentos e traumas envolvidos, além de
sensações e alucinações relacionadas aos sintomas. Isto dava a ela,
consequentemente, a sensação de estar sendo realizada a “limpeza” de seu
interior por meio da fala, que estaria permitindo-lhe expelir resíduos [ou
sujeira].
Outros aspectos do caso não estão
presentes diretamente na explanação de Breuer. O conceito de transferência, que
veio a ser trabalhado mais tarde por Freud, não foi reconhecido por Breuer, que
não soube lidar com o amor transferencial (...). Percebe-se, no relato, a
insistente omissão dos sentimentos da paciente em relação a ele. O caso é
encerrado abruptamente, como se fosse um término programado pela própria
paciente, como se Breuer não tivesse participação nesse rompimento terapêutico,
embora se saiba que não foi bem assim. O texto passa ao leitor a impressão de
que esse médico quis encerrar o caso sem assumir responsabilidade pelo
encerramento. A cuidadosa análise do relato, bem como da forma de interrupção
do tratamento, constitui elemento elucidativo para a compreensão da importância
que deve receber a preparação dos profissionais para atuarem com pacientes
neuróticos. O caso Anna O. apresenta as bases do que veio a ser denominado
Método Catártico.
SENHORA
[FRAU] EMMY VON N., 40 ANOS (FREUD)
Atendimento ocorrido no período 1889-1890
ou um ano mais tarde. Um caso clínico que ajudou Freud a conhecer o método de
Breuer foi o de Frau Emmy Von N. O relato clínico desse atendimento constitui
uma demonstração detalhada da terapêutica da histeria denominada método
catártico, à qual, inicialmente, Freud aderiu. Ele reconhece que essa foi a sua
primeira tentativa de aplicar esse método, e que se interessou pelo caso ao
tomar conhecimento da riqueza dos sintomas apresentados pela doente, bem como
das qualidades da personalidade dela. Quando soube que Emmy Von N. poderia ser
facilmente hipnotizada, resolveu testar o método catártico. Percebe-se que
Freud está testando o potencial de influência da sugestão durante a hipnose,
porém também faz esse mesmo teste sem que a paciente tenha sido hipnotizada.
Emmy Von N. transitava entre dois estados
psíquicos, o estado normal de consciência e o outro estado, em que se
manifestavam delírios. Estava evidente a manifestação de uma “condição
secundária”, ou seja, outro estado de consciência que não o da consciência
normal da vida de vigília. Ela apresentava, além de delírios relacionados a
aspectos fóbicos, um tique que incluía uma estalada peculiar da boca, gagueira
espástica, interrupções da continuidade da fala, quando então o seu rosto
denunciava horror e nojo, ao tempo que estendia a mão em direção ao
interlocutor, abrindo e entortando os dedos, para finalmente exclamar com voz
alterada carregada de sentimento de medo: “Fique quieto! – Não diga nada! – Não
me toque!”. Manifestava, também, frequentes movimentos convulsivos semelhantes
a tiques no rosto e nos músculos do pescoço. Em seus delírios estavam presentes
referências a animais que lhe causavam aversão e conteúdos persecutórios.
Contudo, as pessoas próximas não sabiam de sua doença, pois a paciente conseguia,
em seu estado de consciência dito normal, dar conta dos requisitos sociais que
lhe eram impostos por ser proprietária de um importante sistema industrial.
Além de testar com Frau Emmy as
possibilidades da sugestão, Freud procura realizar o que denomina análise dos
sintomas e dos eventos traumáticos; para isso, relaciona-os a passagens da vida
de sua paciente. Nesse procedimento, evidenciam-se os esforços de Freud visando
influenciar a doente para que “esqueça” certos fatos que a perturbaram
emocionalmente, depois de haver, junto a ela, analisado as relações entre
eventos ou o impacto de outros eventos em sua vida.
A terapêutica empregada consiste em
hipnotizar e, então, realizar perguntas cujas respostas permitam relacionar os
sintomas a eventos traumáticos e fazer sugestões à paciente para que deixe de
sentir como danosas certas lembranças, ou “esquecê-las”, ou mudar seu
significado, bem como fazer sugestões de mudanças comportamentais.
Deve ser ressaltado que, após um período
inicial de tratamento de aproximadamente sete semanas, a paciente afirmou
sentir-se bem, mas queixou-se de certa amnésia. Cabe a hipótese de que essa
amnésia decorreu das tentativas de Freud no sentido de induzi-la a esquecer ou
modificar suas lembranças, e que essa consequência pode ter influenciado o pai
da Psicanálise a, mais tarde, descartar o uso da sugestão como técnica de
tratamento.
Percebe-se que as sugestões nem sempre
eram suficientemente atuantes ou persistentes. Freud notou que, quando era
pequena a relação entre a reminiscência dos fatos comunicados pela paciente e o
evento traumático, ou quando era reduzida a influência do evento original para
a formação do sintoma, a sugestão exigia pouco esforço. Contudo, quanto maior
era a influência do trauma, mais difícil que a sugestão levasse a mudanças.
Fica evidenciado, para Freud, que é mais
fácil ir reduzindo quantidades importantes de sintomas quando se trabalha
inicialmente com os sintomas que mantêm menor relação com o evento traumático,
que estão mais afastados do núcleo patogênico. A terapêutica é delineada como
processo de “limpeza” gradativa e crescente – em termos de importância dos
sintomas –, eliminando os sintomas superpostos uns aos outros desde os menos
importantes, também mais periféricos em relação ao núcleo patogênico. Nota-se
que a retirada de sintomas vai se tornando dificultada à medida que o processo
de “limpeza” se aproxima do núcleo patogênico e, portanto, a gradativa
aproximação ao núcleo patogênico começa a ser vislumbrada como relevante.
Na análise dos conteúdos da paciente, ele
verificou que os sintomas decorriam de eventos ocorridos na infância e na
adolescência, quando sofrera sustos fóbicos [por exemplo, quando seus irmãos
lhe atiravam pequenos animais], mas também estavam presentes eventos de sua
vida adulta, como a morte inesperada e repentina de seu marido e as
perseguições maldosas dos parentes dele após sua morte. Ficou evidente, também,
que Emmy Von N. era facilmente influenciável e que isso estaria presente em sua
constituição psíquica, devendo ser considerado um fator etiológico relevante na
formação de seus sintomas fóbicos. Ela estaria muito sujeita aos estados
hipnoides que promovem a histeria disposicional.
O comportamento da paciente na vida de
vigília era influenciado pelas ocorrências presentes na vida de sonambulismo.
Esta constatação é indicativa de que a separação entre os estados psíquicos –
hipnoide e de normalidade – não é total. Freud notou que, enquanto a paciente ainda
não havia conseguido reconhecer toda a profundidade e amplitude de um evento
traumático específico, o que era feito por meio da análise dos conteúdos em
estado de sonambulismo [hipnose], a sugestão dada para que o sintoma
desaparecesse tinha pouca eficácia. Concluiu, assim, que a eficácia da sugestão
decorre de dois fatores: a) baixa interrelação entre o sintoma e o evento
traumático; e b) análise suficientemente completa de um conteúdo traumático de
modo a poder, por sugestão, excluir totalmente a ligação entre os dois.
Esteve presente em todo o atendimento,
como fator importante a ser considerado, a abstinência sexual de Emmy Von N.,
viúva que era, que recusava a possibilidade de casamento com quaisquer
pretendentes, pois temia que estivessem interessados em sua riqueza. Contudo,
devido à sua ainda relativa inexperiência com a etiologia das neuroses, Freud
não soube colocar na análise as questões da sexualidade na medida da relevância
que essa temática teria em sua obra posterior. Em uma nota de pé de página,
escreve que a própria paciente reconhece o êxito apenas parcial na eliminação
dos sintomas de gagueira e do estalido e que continuava a manifestar esses
sintomas sempre que se assustava. Essa condição decorreria da vinculação desses
sintomas não somente aos traumas iniciais, mas também a uma série de outras
lembranças associadas, presentes em diversas ocorrências, que deixaram de ser
“apagadas” por meio de sugestões.
No relato do caso Emmy Von N. surge a
primeira referência ao que seria, depois, reconhecido como o método de
associação livre, pois a paciente demonstrava algumas vezes, em estado de
sonambulismo, rejeição às imposições de que falasse de um tema que a Freud
interessasse em sua pesquisa da doença. Ela, então, demonstrava que queria
dizer algo relacionado ao que estava dizendo antes e não o que ele desejava. Se
Freud insistia em negar-lhe seguir por essa associação, ela se apresentava
profundamente afetada nas sessões seguintes, demonstrando medo e ansiedade. Se,
por outro lado, ele lhe permitia seguir em suas associações livremente, ela
apresentava melhoras interessantes, por ter liberado por meio das palavras
aquilo que a incomodava e isto facilitava depois o cumprimento de sugestões.
SENHORITA
[MISS] LUCY R., 30 ANOS (FREUD)
Tratamento iniciado no final do ano de
1892, perdurando no primeiro semestre de 1893. A paciente, inglesa, era
governanta [babá] das duas filhas de um senhor viúvo, importante diretor
industrial em uma empresa perto de Viena, na Áustria. Ela trazia o histórico de
rinite supurativa cronicamente recorrente, que vinha sendo tratada por um
médico conhecido de Freud. O surgimento de outros sintomas associados à rinite
levou à suposição de um quadro de histeria.
Lucy havia perdido completamente o sentido
do olfato, mas era perseguida por duas sensações olfativas subjetivas, uma de
ser “tomada por cheiro de pudim queimado” e outra de ser “tomada por cheiro de
charuto”. Também apresentava fadiga, queixava-se de peso na cabeça, pouco
apetite e perda de eficiência; relatou também passar por uma depressão.
Freud considerou que as alucinações
olfativas deviam estar relacionadas a algum fato do passado e que, em conjunto
com a depressão, poderiam equivaler a um ataque histérico. Ao estar a paciente
sofrendo de rinite supurativa, a sua atenção estaria concentrada no nariz e em
suas sensações, estabelecendo-se, desse modo, um canal para o surgimento dos
sintomas da histeria de caráter olfativo.
O tratamento de Lucy diferenciou-se em
aspectos importantes dos procedimentos previstos para o Método Catártico.
Primeiramente, porque não foi possível manter uma agenda com datas e horários
fixos, pois a paciente vinha ao consultório quando isso se tornava possível e,
em cada vez, por pouco tempo. Além disso, Lucy não era hipnotizável, pelo menos
por Freud. Assim, em lugar de sessões de hipnose, ocorriam “conversas”, com o
intento de analisar a relação dos sintomas com eventos da vida dela. As
“conversas” tinham duração variada e eram interrompidas para uma retomada em
outro momento possível. O tratamento foi curto, tendo durado apenas alguns
meses.
O caso Lucy foi um daqueles em que Freud
teve que atuar sem recorrer à hipnose. Nesses casos, o Método Catártico estava
sendo adaptado, e ele recorria a procedimentos que facilitassem um estado de
relaxamento que permitisse à paciente voltar o foco para a sua concentração
mental. Nesse modo de atuar, o paciente deitava-se no divã, permanecendo com os
seus olhos fechados, e lhe era pedido que realizasse uma “concentração” na
busca de respostas para as questões colocadas pelo psicoterapeuta, que estava
procurando informações [do paciente] para realizar o que já recebia de Freud o
nome “análise”. Surge a discussão sobre a efetividade da hipnose, pois há
pacientes que não se consegue hipnotizar e há profissionais que não obtêm o
mesmo sucesso que outros no intento de hipnotizar certos ou quaisquer
pacientes. Outro hipnotizador – Bernheim – também não conseguiu hipnotizar uma
paciente de Freud.
Na apresentação do caso Lucy, Freud
reconhece que ficava incomodado com a resistência de alguns pacientes quando
realizava os testes visando saber se estavam hipnotizados e em qual grau, bem
como ao proferir asseguramentos e ordens tais como “Você vai dormir… durma!”, e
de ouvir em resposta: “Mas doutor, eu não estou dormindo”. A opinião corrente
de que sem a hipnose não seria possível induzir o paciente a lembrar-se de
acontecimentos “esquecidos” foi superada neste caso. (...)
A técnica da pressão (utilizada por Freud
como forma alternativa à hipnose, ou como semi-hipnose) consistia em apor uma
ou ambas as mãos sobre a cabeça do paciente e solicitar-lhe entrar em contato
com suas “lembranças esquecidas”. Freud a aplica quando a hipnose não é viável,
como meio auxiliar para induzir o paciente a “lembrar” de algo que não lhe
vinha à memória ou que, em certo sentido, não tinha a intenção de relatar.
Ele induziu Lucy a encontrar suas
lembranças relativas ao cheiro de pudim queimado e ela recordou um evento
traumático sobre uma carta recebida de sua mãe enquanto preparava, com as
crianças (que cuidava, como babá), um pudim que queimou; disse, ainda, que as
crianças demonstraram afeto por ela. Relatou que decidira deixar o emprego por
não suportar ficar naquela casa, pois as colegas de trabalho pareciam pensar
que ela estava se colocando acima de seu lugar, e se aliaram numa intriga
contra ela junto ao avô das crianças. Disse, então, que não obteve apoio do
patrão nem do avô das crianças.
Depois disso, o cheiro de pudim queimado
tornou-se menos frequente e mais fraco, mas não desapareceu. A persistência
desse símbolo mnêmico (...) levou Freud à suspeita de que, além da cena
principal relativa ao trauma, o cheiro de pudim queimado se havia ligado às
representações de numerosos traumas secundários de caráter associado, o que
levou essa análise a trilhar um caminho em busca de alguma coisa que pudesse
ter relação com o pudim queimado; chegou se ao atrito doméstico, ao
comportamento do avô e assim por diante. Gradativamente, o cheiro de pudim
queimado foi-se desfazendo.
Desaparecido o cheiro de pudim queimado,
Lucy passou a se referir ao cheiro de charuto. A origem desse cheiro era
relativa a uma cena em que o patrão de Lucy advertira seu contador porque este
tentara beijar as crianças e o ambiente estava impregnado de cheiro de charuto.
Lucy melhorou, mas não completamente, e
Freud desconfiou da existência de um evento traumático mais antigo. Induziu
Lucy, usando a técnica da pressão, a buscá-lo em sua memória e ela recordou
que, antes dos eventos já relatados, sentira-se agredida por meio de palavras
pelo patrão, reconhecido como o homem que ela desejava [o pai das crianças].
Ele a teria admoestado por não ter evitado que uma senhora beijasse as
crianças. Esse evento, com carga de afeto mais intensa que as demais, foi
reconhecido como o trauma original, e então Lucy pôde considerar-se curada.
Assim, surgem as evidências da sequência
dos eventos traumáticos, confirmando-se uma sequência em que os dois eventos
inicialmente lembrados, relativos ao cheiro de pudim queimado e ao de charuto,
ocorreram em tempo posterior ao primeiro da série de três [pois o primeiro é
relativo à agressão do patrão] e foram associados sequencialmente a esse
primeiro. Portanto, no tratamento, as primeiras lembranças vêm dos traumas
auxiliares, eventos posteriores ao trauma original, enquanto o trauma inicial
[neste caso, a admoestação do patrão] é lembrado por último.
Abordando a resistência de Lucy em
reconhecer que estava apaixonada pelo patrão, Freud relata que perguntou: “Mas,
se você sabia que amava seu patrão, por que não me disse?”. Sua resposta foi:
“Não sabia… ou melhor, não queria saber. Queria tirar isso de minha cabeça e
não pensar mais no assunto, e creio que tenho conseguido isso nos últimos
tempos”.
Surge o conceito de sobredeterminação [Überdeterminierung].
Supondo a existência de um centro na topologia de um núcleo patogênico
psíquico, Freud propõe que em seu entorno se estabelecem novas experiências;
dentre elas, algumas conseguem, de algum modo, relacionar-se ao evento
traumático inicial. Assim, forma-se uma sequência de eventos auxiliares que se
ligam ao trauma original. No caso de Lucy, o núcleo patogênico inicial seria a
admoestação de caráter agressivo que lhe fizera seu patrão, a quem ela
desejava, e haveria dois eventos auxiliares, os relativos aos dois cheiros. Uma
condição essencial deve ter sido preenchida: uma representação deve ter sido
intencionalmente recalcada da consciência e excluída da possibilidade de
modificações associativas.
Esse recalcamento intencional constitui
também a base para a conversão total ou parcial da soma de excitação em um
sintoma no corpo. A base do próprio recalcamento é constituída por uma sensação
de desprazer, que decorre da incompatibilidade entre uma representação isolada
a ser recalcada e o restante das representações que constituem o Eu. A
representação recalcada, ao não poder associar-se com outras representações do
Eu, e ao gerar tensão psíquica, segue um caminho errado que lhe possibilita
direcionar-se para o corpo, externamente ao que seria o aparelho psíquico.
Surge o sintoma histérico por inervação somática, em decorrência da
transposição da energia psíquica para o corpo.
Essas qualidades da histeria a
caracterizam como um método de defesa psíquica que utiliza a conversão da
excitação psíquica, tornando-se uma inervação somática [deslocamento para o
corpo] como modo de negar o reconhecimento, pelo Eu, da ideia incompatível. O
corpo sofre em nome da consciência que se protege. Obtém sucesso por forçar a
ideia incompatível para fora do Eu consciente, para o corpo. Em troca, a
consciência guarda a reminiscência [no caso, as sensações olfativas de Lucy] e
o sofrimento da pessoa decorre do afeto que se acha ligado àquela
reminiscência. A incompatibilidade existente na ideia, devido à necessidade de
evitar o afeto, não é mais percebida, pois a conversão no corpo substitui a
ideia rejeitada. Assim, o recalque atua na histeria e pode-se afirmar que a histeria
representa um ato de covardia moral, mas também uma medida defensiva à
disposição do Eu, pois em certas situações e/ou condições há vantagem para o
psiquismo em rechaçar alguma coisa por esse mecanismo.
A histeria de Lucy seria do tipo
adquirida. Lembra Freud que, em tais casos, é importante considerar a natureza
do trauma em conjunto com a reação do sujeito ao mesmo. Ele ressalta certas
características do caso: a) presença de sentimento que precisa ser negado; b)
temor da crítica a esse sentimento; e c) a importância que pode ter a
descoberta de que se é rejeitado pela pessoa desejada. Para ele, esse conjunto
indica a importância patogênica de uma ideia que precisa ser recusada e conclui
que, para a aquisição da histeria, é condição necessária que esteja presente o
desenvolvimento de uma incompatibilidade entre o Eu e uma ideia a ele
apresentada. No caso de Lucy, a incompatibilidade surgiu depois que ela criara
uma ideia de casamento com seu patrão. Ocorreu que, durante uma conversa com
seu patrão, ele fora extremamente amável, demonstrando confiança em Lucy. Daí
decorreu sua idealização quanto a realizar com ele o desejo relativo ao
casamento, o que incluiria assumir a função materna de suas filhas. Contudo,
foram lhe sendo apresentadas, sequencialmente, diversas evidências de que seu
desejo não poderia ser realizado; nesse sentido contribuíram as zombarias e
críticas de suas colegas, a falta de apoio dos homens da casa e as cenas em que
seu patrão demonstrara não ser afável como ela supunha anteriormente.
O momento traumático real é aquele em que
a incompatibilidade se impõe sobre o Eu e esse Eu decide repudiar a ideia
incompatível, a qual não é aniquilada por tal repúdio, mas apenas recalcada
para o Inconsciente. Quando esse processo ocorre pela primeira vez, começa a
existir um núcleo e centro de cristalização para a formação de um grupo
psíquico separado do Eu, em torno do qual tudo o que implica a aceitação da
ideia inaceitável passa a se reunir, formando o núcleo patogênico. Nesses
casos, a divisão da consciência é, talvez, intencional. Pelo menos, é muitas
vezes introduzida por um ato de vontade, mas o resultado real é diferente do
pretendido pelo indivíduo. Ele deseja eliminar uma ideia, como se jamais
tivesse surgido, mas só consegue isolá-la psiquicamente e, consequentemente,
passa a conviver com sintomas no corpo.
Este caso apresenta características
importantes para o aprofundamento do conceito de recalque, pois fica
evidenciado que o trauma original da moça ocorreu quando já era uma jovem
adulta e, portanto, já saíra do período relativo ao desenvolvimento psicossexual
infantil. Apresentava-se uma ideia com forte carga de afeto que precisava ser
rechaçada por ser intolerável.
KATHARINA
(FREUD)
Atendimento que ocorreu em alguma data
entre o início dos estudos de Freud sobre hipnose e a época em que considerava
a hipnose o caminho ideal de acesso ao Inconsciente, certamente antes de 1895.
Este relato é incluído entre os casos clínicos, embora se refira mais a uma
“entrevista ou conversa” que Freud teve com uma moça de 18 anos que o procurou
durante as suas férias nos Alpes. Fica evidenciado que não houve condições e/ou
necessidade de seguir detalhadamente os procedimentos do Método Catártico e que
não foi aplicada a hipnose.
Essa moça, de nome Katharina, seria
sobrinha da dona da estalagem em que Freud se alojara e trouxe a ele o relato
de sintomas que foram considerados histéricos. Ela sentia falta de ar, o que
acontecia repentinamente depois de sentir alguma coisa pressionando os seus
olhos, quando sua cabeça ficava pesada e ouvia um zumbido desagradável, ficando
tonta; sentia no peito uma pressão, como se algo o estivesse esmagando, sentia
apertos na garganta e marteladas na cabeça; nisso, ficava assustada, temendo
morrer. Simultaneamente, tinha a sensação de que alguém, com um rosto medonho,
a seguia para agarrá-la, olhando-a de um modo terrível.
O autor se vale do relato dessa entrevista
fortuita para discutir a origem da histeria a partir do trauma psíquico
decorrente de acontecimentos de cunho sexual que o consciente do indivíduo não
reconhece, os quais, na maturidade, passam a pressionar o consciente e, por
isso, são mantidos recalcados.
No caso em pauta, a jovem teria sido
assediada sexualmente por seu tio aos 14 anos de idade e, depois desse evento
que ela não valorizou e “esqueceu”, por não ter conhecimento suficiente sobre
sexualidade, teriam ocorrido outras tentativas de assédio sexual de seu tio que
ela também não teria reconhecido como tais. Contudo, posteriormente, aos 16
anos de idade, ela assistiu a um encontro sexual entre uma de suas primas e seu
tio, cena essa que ficara parcialmente incompreensível para ela. A essa cena
seguiram-se outras, indicativas de encontros sexuais dele com a prima. Essa
sequência de cenas sexuais deu sentido à cena traumática original, de quando
ela tinha 14 anos e sentira em seu corpo o contato do pênis, pois compreendeu,
ao ver os dois em encontros sexuais, o que seu tio tentara com ela. Katharina
contou a sua tia sobre os encontros entre o tio e a prima e, em decorrência,
ocorreu o divórcio deles. Deve-se ressaltar que, durante um tempo, o seu tio a
perseguira com acusações de ser responsável pelo divórcio, o que se transformou
em alucinação de uma cabeça perseguidora em seus conteúdos paranoicos.
Freud escondeu dos leitores, quando da
primeira publicação do texto, que o assediador era o próprio pai de Katharina.
Preferiu dizer que se tratava de um tio e que a moça morava com seus tios e
primos. Trinta anos mais tarde, em 1924, esclareceu, em uma nota de pé de
página, que o assediador era o próprio pai da moça e pode-se colocar em dúvida
se a suposta prima não seria irmã dela, outra filha do pai de Katharina. Nessa
nota percebe-se que o autor se recrimina por haver omitido essa informação e
defende a importância de haver fidelidade nos relatos de casos clínicos,
naquilo que é essencial à sua compreensão e adequada análise.
Quando discute o caso, apresenta-o como de
histeria adquirida, havendo eventos traumáticos e eventos auxiliares na
formação dos sintomas, e estabelece a possibilidade de que “em lugar de um ato
de vontade do Eu contrário à consciência de um evento traumático, seria
possível existir uma condição de ignorância do Eu, quando este ainda nada sabe
sobre a sexualidade”. Afirma, também, que em outros casos de histéricas foi
possível verificar a mesma condição, ou seja, um evento que seria traumático em
si mesmo não teria provocado os sintomas e que, nesses casos, os sintomas
histéricos irromperam somente a partir da nova ocorrência traumática, que deu
sentido ao evento traumático original, quando já havia maior capacidade de
reconhecimento do que se passara. Fundado no pensamento de Charcot, Freud
conjetura que o intervalo entre os dois episódios corresponderia ao que seria o
“período de elaboração psíquica” que redundaria na histeria.
Pode-se, considerando essa sequência no
estabelecimento do quadro histérico, aceitar a hipótese do trauma em dois
tempos. A formação do quadro que possibilita o surgimento de histeria ocorreria
em sentido progressivo na sequência histórica dos eventos, sendo requerido que
um segundo evento adquira a condição de traumático, por trazer a elucidação de
um evento anterior, ou primeiro, que não foi levado adequadamente em conta.
Poder-se-ia denominar esse processo como “trauma em dois tempos”. Por outro
lado, a análise se daria em sentido regressivo, ou contrário, começando da
condição atual do paciente, com os relatos dos eventos mais recentes sobre
sintomas e cenas, portanto um relato relativo a evento auxiliar, para, posteriormente,
seguindo a sua associação de ideias, chegar-se aos relatos sobre eventos que
estão “cobertos” pelo sintoma primeiramente relatado. Chega-se assim, em
sentido regressivo, do evento/sintoma mais recente, ao evento originário.
SENHORITA
[FRÄULEIN] ELISABETH VON R., 24 ANOS (FREUD)
Tratamento realizado a partir do outono
europeu de 1892 até alguma data antes da primavera europeia de 1894. Elisabeth
se queixava de grande dor ao andar, bem como ficava cansada após algum tempo em
pé. O foco das dores estava localizado em uma parte da coxa direita; a pele e
os músculos eram sensíveis à pressão e aos beliscões. Freud concluiu tratar-se
de histeria na medida em que os locais e a duração das dores se apresentavam
indefinidos e também porque ela demonstrava prazer além de dor em seu semblante
[ambivalência] ao serem pressionados sua pele ou seus músculos. Ele comenta que
vislumbrava um sentido oculto na máscara que seria o rosto dela. Parecia que
tinha consciência da causa de sua doença; por isso, decidiu não aplicar a
hipnose, pelo menos de início.
Essa teria sido a primeira análise
integral de uma histeria feita por Freud e lhe propiciou estabelecer um método
regular que consistia em remover o material psíquico patogênico camada por
camada, como se estivesse escavando uma cidade soterrada. Os relatos eram
feitos, inicialmente, de modo consciente, sendo anotados os pontos obscuros
para, depois, buscar-se informações adicionais, conscientes ou por hipnose. Ele
aplica a noção de núcleo patogênico formado progressivamente – em camadas –
pelo acúmulo de representações e afetos, as mais recentes ou menos inconscientes
estando ligadas a outras mais antigas ou menos conscientes. Eventos auxiliares
teriam contribuído para a formação progressiva do quadro complexo.
A paciente foi induzida a relatar seus
cuidados ao pai doente que veio a falecer, bem como suas preocupações relativas
à sua mãe, que tinha problemas de visão. Também relatou o sofrimento que lhe
causara a morte prematura da irmã mais jovem, casada com um homem a quem
Elisabeth amava, embora negasse esse amor durante a psicoterapia. Foi
encontrada a origem da dor na coxa da paciente, ao confirmar-se que era
decorrente de ela apoiar a perna de seu pai na própria perna enquanto
providenciava os curativos. Os cuidados intensos e cansativos ao pai teriam
facilitado o estabelecimento dos estados psíquicos favorecedores da instalação
da histeria (estados hipnoides).
O método foi complementado com a aplicação
da técnica da pressão na cabeça da paciente, depois que a tentativa de hipnose
não teve sucesso. Foi com a técnica da pressão, que Freud obteve um
encaminhamento mais promissor nesse caso, que ele considerou importante para a
compreensão da histeria.
Um evento relevante refere-se ao encontro
da paciente com um namorado. Na ocasião, ela teria demorado a retornar para
casa e, justamente nesse tempo, teria ocorrido forte piora no quadro de saúde
do pai. Depois disso, ela não mais se afastou dele até sua morte e isso ficou
na base da formação do quadro de adoecimento histérico. Freud verificou que as
pernas de Elisabeth “participavam da conversa” mediante a manifestação de dores
típicas que ocorriam durante os relatos. Ela pôde entrar em contato com
sentimentos contraditórios, envolvendo satisfação com a possibilidade de casar
com seu cunhado que ficara livre desde a morte da irmã. Os eventos envolvendo o
amor pelo cunhado, com a possibilidade de um prazer proibitivo ao se imaginar
casando com ele, deram novo sentido às dores que estiveram presentes quando dos
cuidados a seu pai, seguidos de sua morte, bem como às situações envolvendo
cuidados com a sua mãe. Foram lembradas ocorrências que puderam ser associadas
a movimentos corporais, como ficar em pé, andar e sentar.
Nesse caso, eventos contemporâneos
contribuíam para a formação de associações com eventos “esquecidos” e a técnica
da pressão permitiu a ab-reação. Freud chegou a incentivar Elisabeth a realizar
certas atividades, tais como visitar o túmulo de sua irmã ou comparecer a uma
festa em que estaria seu antigo namorado. Animado com os resultados, propõe que
“a técnica da pressão nunca falha”, mas, depois, deixa essa perspectiva de
lado. Afirma: “Os esforços do analista foram ricamente recompensados”. A esse
respeito, Freud comenta que nesse caso surgiram, perante os seus olhos, as
evidências que lhe permitiriam a construção de conceitos relativos ao
movimento, do sujeito, de rechaçar uma representação incompatível dentro da
gênese dos sintomas histéricos mediante a conversão de excitações psíquicas em
algo físico e, também, sobre a formação de um grupo psíquico separado, através
do ato de vontade que conduziu ao rechaço.
Em outro momento, afirma: “O resgate dessa
representação recalcada teve um efeito devastador sobre a pobre moça. Ela
chorou intensamente quando lhe expus secamente a situação com as palavras:
‘Quer dizer que, durante muito tempo, você esteve apaixonada por seu cunhado!’.
Nesse momento, ela queixou-se de dores mais terríveis e fez um último e
desesperado esforço para rejeitar a explicação: não era verdade, eu a havia
induzido àquilo, não podia ser verdade, ela seria incapaz de tanta maldade,
jamais poderia perdoar-se por isso”. A rejeição teve que ser trabalhada com a
análise de sinais que se relacionavam a esses sentimentos de amor proibido e,
com o passar do tempo, foi superada. Lembra-se ao leitor que a experiência
dessa rejeição é relevante para a compreensão do conceito de resistência ao
tratamento.
Elisabeth recalcou uma ideia erótica fora
da consciência e transformou a carga de seu afeto em sensações físicas de dor.
Além disso, a paciente estaria, durante esse tempo, em um estado psíquico
peculiar favorecedor do recalque, o estado hipnoide ou crepuscular. Ela somente
teria reconhecido seus sentimentos pelo cunhado em certas ocasiões esporádicas,
momentaneamente, mas os teria recusado de imediato. Estabeleceu-se uma divisão
da consciência [dupla consciência], tendo por motivo a defesa psíquica – a
recusa por parte de todo o Eu da paciente de chegar a um acordo com esse grupo
representativo em separado. Esse grupo constituiu a base do mecanismo de
conversão, com a substituição das dores psíquicas por dores no corpo que
representavam o sofrimento psíquico.
O autor ainda coloca em discussão, nessa
análise, a relevância da simbolização, que ocupa lugar importante na definição
de sintomas. Apresenta o exemplo da paciente Caecilie M, que afirmou: “Foi como
uma bofetada no rosto”, referindo-se a uma injúria do marido. Tratou-se de uma
manifestação do marido que teve o impacto que teria uma bofetada, que
evidentemente não foi dada; mas a “bofetada não dada” causou nessa paciente uma
nevralgia em seu rosto; esta desapareceu temporariamente após essa ab-reação, e
em definitivo na medida de outras ab-reações de conteúdos associados à primeira
simbolização.
O texto “Sobre o mecanismo psíquico dos
fenômenos histéricos: comunicação preliminar” é incluído em 1895 no livro “Estudos
sobre histeria”. Breuer inclui nessa mesma obra o texto “Considerações
teóricas”, enquanto Freud inclui o texto “A psicoterapia da histeria”.
“Estudos sobre histeria” constitui um marco na passagem do conhecimento
científico disponível até então para o tratamento das neuroses em direção à
estruturação da Psicanálise, pois estabelece as bases teóricas originais do
estudo do Inconsciente, embora a Psicanálise ainda não existisse.
RANDT,
Juan Adolfo. A psicanálise de Freud explicada. São Paulo: Zagodoni
Editora, 2017. p. 17 a 41.
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