Módulo 18

 

FREUD E A HISTERIA









 



A existência ou não de lesão anatômica relativa a determinados sintomas era, para a psiquiatria do século XIX, um fator de extrema importância. A anatomia patológica começava a ser vista, nessa época, como o único meio de inclusão da medicina no campo das ciências exatas, sendo esperado do médico que suas investigações clínicas fossem acompanhadas por investigações anatomopatológicas que oferecessem, ao nível do corpo, a lesão referente aos distúrbios observados.

Formam-se, então, dois grandes grupos de doenças: aquelas com uma sintomatologia regular e que remetiam a lesões orgânicas identificáveis pela anatomia patológica, e aquelas outras - as neuroses - que eram perturbações sem lesão e nas quais a sintomatologia não apresentava a regularidade desejada.

Essa crença na eficácia da anatomia patológica foi compartilhada por Charcot, que, além de neurologista, se tornou professor de anatomia e patologia da Faculdade de Medicina de Paris. A abordagem inicial de Charcot ao problema da histeria foi feita de acordo com esse ponto de vista, isto é, de que há um correlato orgânico das manifestações histéricas. Posteriormente, ele modifica seu ponto de vista ao afirmar que a histeria é, “como tantas outras esfinges”, uma doença que escapa às mais penetrantes investigações anatômicas[1]. No entanto, apesar da ausência de um referencial anatômico, a histeria apresentava aos seus olhos uma sintomatologia bem definida, obedecendo a regras precisas. Esse reparo é importante, porque lhe permite afastar a hipótese de simulação, o grande fantasma da psiquiatria do século XIX.

Ao produzir a separação da histeria com respeito à anatomia patológica, Charcot a introduz no campo das perturbações fisiológicas do sistema nervoso, e em função disso procura novas formas de intervenção clínica, dentre as quais a hipnose vai se constituir na mais importante. Durante algum tempo, Charcot realizou estudos no sentido de mostrar que a hipnose envolvia mudanças fisiológicas no sistema nervoso, o que a aproximava da histeria.

No inverno de 1885, Freud vai a Paris e assiste ao curso de Charcot, cujas aulas práticas eram ministradas na Salpêtrière, e adere entusiasticamente ao modelo fisiológico oferecido por ele para a histeria. Os aspectos mais salientados tanto por Charcot como por Freud, nesse período, eram os que diziam respeito ao fato de que a histeria não era uma simulação, que ela era uma doença funcional com um conjunto de sintomas bem definido e na qual a simulação desempenhava um papel desprezível. Outro ponto enfatizado por ambos foi que a histeria era tanto uma doença feminina como masculina, desfazendo dessa forma a ideia de que apenas as mulheres padeciam de manifestações histéricas (como sugeria o próprio termo “histeria”, que deriva da palavra grega hystéra, que significa “útero”).

Mas, entre essas afirmações e a realidade da prática hospitalar, havia uma distância considerável. Na verdade, Charcot foi o santo milagroso da histeria, sendo que em suas encenações realizadas na Salpêtrière, as inalações de nitrato de amilo ministradas por seus assistentes às pacientes desempenhavam um papel tão importante quanto o ritual do hipnotismo.

O problema continuava sendo apresentar uma sintomatologia regular para a histeria. Caso isso fosse obtido, a histeria seria incluída no campo das doenças neurológicas; caso a tentativa não fosse coroada de êxito, o histérico seria identificado ao louco. Persistia, portanto, a questão do diagnóstico diferencial versus diagnóstico absoluto[2].

O papel desempenhado por Charcot passa a ser o de produzir, através de drogas e da hipnose, a regularidade do quadro histérico, trazendo a histeria para o campo da neurologia e retirando-a das mãos do psiquiatra. O lugar do histérico deveria ser o hospital e não o asilo. Mas é exatamente nesse ponto que o histérico passa a ser investido de um poder sobre o médico equivalente ao que este possuía sobre ele. Por efeito da imposição médica, os pacientes histéricos passam a fornecer os sintomas que lhes eram exigidos. A crise histérica passa a ser fabricada com grande eficácia nas apresentações clínicas de Charcot. Aconteceu, porém, o inesperado: os pacientes passaram a oferecer muito mais do que lhes era solicitado e, dessa forma, passaram a constituir o próprio médico. Esclarecendo melhor: se os histéricos apresentavam um conjunto de sintomas bem definido e regular, eles constituíam o médico como neurologista; se esses sintomas variavam em número e qualidade, rompendo dessa maneira a regularidade das crises, o médico era transformado em psiquiatra[3].

O emprego da hipnose tinha por objetivo o controle da situação. Através da sugestão hipnótica, o médico podia obter um conjunto de sintomas histérico bem definido e regular; mas isso evidencia, ao mesmo tempo, que a histeria nada tinha a ver com o corpo neurológico, mas com o desejo do médico. É numa tentativa de superar esse impasse que Charcot vai elaborar a teoria do trauma.

      Segundo Charcot, o sistema nervoso pode ser dotado de uma predisposição hereditária para, em decorrência de um trauma psíquico, produzir um estado hipnótico que torna a pessoa suscetível à sugestão[4]. O trauma formaria uma injunção permanente, um estado hipnótico permanente, que poderia ser objetivado corporalmente por uma paralisia, uma cegueira ou qualquer outro tipo de sintoma. O estado hipnótico que o médico produzia na clínica seria uma injunção desse tipo, só que temporária. Nela, o papel da sugestão é idêntico ao desempenhado na situação traumática, com a diferença apenas de não ser permanente.

Ora, na medida em que o trauma em questão não é de ordem física, ressurge a necessidade de o paciente narrar sua história pessoal para que o médico possa localizar o momento traumático responsável pela histeria.

         O que Charcot não esperava era que dessas narrativas surgissem sistematicamente histórias cujo componente sexual desempenhasse um papel preponderante. Estava selado o pacto entre a histeria e a sexualidade; pacto esse que foi recusado por Charcot e que se transformou em ponto de partida e núcleo central da investigação freudiana[5].

 

TRAUMA E AB-REAÇÃO

 

A teoria do trauma psíquico vai ter profunda repercussão sobre os escritos iniciais de Freud e, paradoxalmente, vai se constituir no impedimento maior à elaboração da teoria psicanalítica. Enquanto persistir a teoria do trauma, a sexualidade infantil e o Édipo não poderão fazer sua entrada em cena, visto que nela os sintomas neuróticos permanecem dependentes de um acontecimento traumático real que os produziu e não das fantasias edipianas da criança[6].

A concepção de Charcot sobre a histeria está integralmente presente no artigo que Freud escreve, em 1888, para a Enciclopedia Villaret (Handwörterbuch der gesamten Medizin). Nesse artigo, Freud recomenda dois tipos de tratamento para a neurose histérica. O primeiro consiste no afastamento do paciente de seu ambiente familiar, considerado por ele como gerador de crises, e sua internação num hospital. A internação teria como objetivo mais imediato uma mudança de ambiente, afastando dessa maneira a possibilidade de as crises serem deflagradas pela expectativa ansiosa dos familiares; e, em segundo lugar, a internação criaria condições ideais de observação e de controle das crises. Após um ou dois meses de repouso, o paciente deveria ser submetido à hidroterapia e à ginástica. O emprego de massagem e de eletroterapia não deveria ser desprezado. O segundo tipo de tratamento consiste na remoção das causas psíquicas dos sintomas histéricos. Como essas causas são inconscientes para o paciente, o método para eliminar os sintomas consiste em dar ao paciente, sob hipnose, uma sugestão que remova o distúrbio.

         Esse procedimento, porém, apenas elimina o sintoma, mas não remove a causa. Freud propõe, então, que se empregue um método elaborado por Joseph Breuer e que consiste em fazer o paciente remontar, sob efeito hipnótico, à pré-história psíquica da doença a fim de que possa ser localizado o acontecimento traumático que originou o distúrbio[7].

         Em dezembro de 1892, Freud publica o artigo Um caso de cura pelo hipnotismo[8], no qual a influência de Breuer é bem maior do que a de Charcot, e no ano seguinte publicam em conjunto Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar, que foi transformado no primeiro capítulo dos Estudos sobre a histeria.

         O caso clínico que deu origem à Comunicação preliminar foi o de Anna O. (Bertha Pappenheim), paciente de Breuer. Na época em que Breuer se dedicou ao tratamento de Anna O., Freud estava se formando em medicina e todo o seu interesse estava voltado para os estudos sobre anatomia do sistema nervoso, e somente cinco anos mais tarde iria a Paris assistir aos cursos dados por Charcot na Salpêtrière.

Anna O. era filha de um paciente de Breuer e começou a apresentar uma série de sintomas histéricos enquanto cuidava do pai. Breuer submeteu-a à hipnose e verificou que os sintomas desapareciam sempre que o acontecimento traumático que estava ligado a ele era reproduzido sob hipnose. Após dois anos de tratamento, todos os sintomas de Anna O. haviam desaparecido. Breuer narrou o caso a Freud e este, muito impressionado, contou-o a Charcot por ocasião de seu curso em Paris. Mas Charcot não demonstrou nenhum interesse pelo relato de Freud e este resolveu não pensar mais no assunto.

Vários anos mais tarde, depois de seu retorno de Paris e de ter estabelecido uma clínica de doenças nervosas em Viena, Freud recebeu para tratamento Frau Emmy von N., em quem resolve aplicar a técnica de Breuer de investigação pela hipnose. Breuer havia chamado seu método de “catártico” (de kátharsis = purgação), pois o que ocorria durante o tratamento era uma “purgação” ou uma descarga do afeto que originalmente estava ligado à experiência traumática. A função da hipnose era a de, por sugestão, remeter o paciente ao seu passado, de modo que ele próprio encontrasse o fato traumático, produzindo-se, em decorrência disso, a “ab-reação”, isto é, a liberação da carga de afeto.

         Freud acrescenta uma novidade à técnica empregada por Breuer. Enquanto este permanecia passivo diante da torrente de fatos narrados pela sua paciente, não procurando influenciá-la em nada, mas apenas esperando que ela própria chegasse às suas retenções e produzisse a ab-reação, Freud passou a empregar a sugestão diretamente como meio terapêutico. Assim, a hipnose era empregada para se chegar aos fatos traumáticos - tal como o fazia Breuer - mas, uma vez esses fatos tendo sido identificados, Freud fazia uso da sugestão para eliminá-los ou pelo menos para debilitá-los em sua força patogênica.

 

TRAUMA E DEFESA PSÍQUICA

 

O interesse de Breuer pelo assunto não vai além deste ponto. Ao que parece, Anna O. foi a primeira e única paciente tratada por ele pelo método catártico, e sua retomada do problema só se deu anos mais tarde quando Freud o pressiona nesse sentido. O próprio emprego da sugestão hipnótica como forma de intervenção direta sobre as ideias patogênicas não foi feito por influência de Breuer, mas de Bernheim, com quem Freud esteve durante algumas semanas no ano de 1889. A prática da sugestão foi abandonada posteriormente por Freud, que retornou ao método mais “investigador” de Breuer, “incomparavelmente mais atraente do que as proibições monótonas e forçadas usadas no tratamento pela sugestão, proibições que criavam um obstáculo a qualquer pesquisa”[9].

Após várias experiências com pacientes histéricos, Freud propõe a Breuer uma publicação conjunta sobre o assunto. Em 1893 surge a Comunicação preliminar e em 1895 os Estudos sobre a histeria, reunidos posteriormente. É no primeiro desses trabalhos que Freud lança uma noção que vai desempenhar um papel fundamental na elaboração da teoria psicanalítica: a noção de defesa. É nesse momento também que começa o afastamento entre os dois autores.

Entre a Comunicação preliminar (1893) e os Estudos sobre a histeria (1895), Freud publicou o artigo As neuropsicoses de defesa (1894), no qual sua independência com relação a Breuer e aos seus contemporâneos já se manifesta de forma acentuada. Embora a noção de defesa já tivesse sido lançada no artigo de 1893, o termo “defesa” só aparece no artigo de 1894 e é nele que o problema é tratado de maneira mais extensa.

Freud só teve pleno acesso ao fenômeno da defesa quando abandonou a técnica da hipnose. Até então, uma série de indícios poderiam sugerir-lhe a existência de algo que lhe era vedado pelo próprio método que empregava, mas esses indícios só se transformariam em evidência após o abandono desse método. Assim, o procedimento hipnótico era, sem que ele soubesse, o obstáculo maior ao fenômeno que será transformado num dos pilares da teoria psicanalítica: a defesa (ou, como ele chamará mais tarde, o recalcamento).

Referindo-se muito mais tarde a este momento da gênese da psicanálise, Freud escreve:

A teoria do recalque é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise. É a parte mais essencial dela e, todavia, nada mais é senão a formulação teórica de um fenômeno que pode ser observado quantas vezes se desejar se se empreende a análise de um neurótico sem recorrer à hipnose. Em tais casos encontra-se uma resistência que se opõe ao trabalho de análise e, a fim de frustrá-lo, alega falha de memória. O uso da hipnose ocultava essa resistência; por conseguinte, a história da psicanálise propriamente dita só começa com a nova técnica que dispensa a hipnose.[10]

Quando Freud abandona a hipnose e solicita de seus pacientes que procurem se lembrar do fato traumático que poderia ter causado os sintomas, verifica que tanto a sua insistência quanto os esforços do paciente esbarravam com uma resistência destes a que as ideias patogênicas se tornassem conscientes. Qual seria a natureza dessas ideias e por que geravam essa resistência? Analisando detalhadamente os casos de análise completa de que já dispunha, chegou à conclusão de que todas essas ideias eram de natureza aflitiva, capazes de despertar emoções de vergonha, de autocensura e de dor psíquica. “De tudo isso surgia, como que automaticamente, a ideia de defesa”[11]. A defesa aparece, assim, como uma forma de censura por parte do ego do paciente à ideia ameaçadora, forçando-a a manter-se fora da consciência; e a resistência era o sinal externo dessa defesa. O mecanismo pelo qual a carga de afeto ligada a essa ideia (ou conjunto de ideias) é transformada em sintomas somáticos é chamado por Freud de conversão.

De fato, os termos “defesa” e “recalcamento” não são sinônimos, apesar de, na época em que Freud publica As neuropsicoses de defesa, eles poderem ser quase que identificados. “Defesa” é um termo mais amplo que designa, em sua primeira acepção, o mecanismo pelo qual o ego se protege de uma representação desagradável e ameaçadora.

A conversão é, portanto, o modo de defesa específico da histeria. O termo recalcamento (ou recalque), como veremos mais à frente, está ligado a uma conceituação mais precisa, de vez que apenas parcialmente pode ser tomado como sinônimo de defesa.

De posse das noções de resistência, defesa e conversão, a própria concepção de terapia tinha de ser modificada. Seu objetivo não poderia mais consistir simplesmente em produzir a ab-reação do afeto, mas em tornar conscientes as ideias patogênicas possibilitando sua elaboração. Nesse momento, começa a se operar a passagem do método catártico para o método psicanalítico. (...)

Mas há ainda um ponto dos Estudos sobre a histeria para o qual eu gostaria de chamar atenção, e para isso é necessário que retornemos ao caso de Anna O.

 

A SEXUALIDADE

 

Quando Breuer narrou para Freud a história de sua jovem e bela cliente, não narrou a história completa; o final foi cuidadosamente ocultado. Nos Estudos sobre a histeria, Breuer termina a exposição do caso de Anna O. dando-a como liberta de seus sintomas e atribuindo o término do tratamento ao desejo de sua paciente de encerrá-lo numa data específica, quando completava um ano que ela se havia mudado para uma casa de campo nos arredores de Viena por questões de segurança (Anna morava num terceiro andar e tinha impulsos suicidas). O que de fato aconteceu nos é relatado por E. Jones em seu livro sobre a vida de Freud[12] e pelo próprio Freud através de reconstituições que fez e que foram confirmadas por Breuer.

O que motivou o término do tratamento foi um fenômeno que, apesar de ser hoje em dia bastante conhecido, impossibilitou Breuer de continuar a relação terapêutica com Anna O.: o fenômeno da transferência e da contratransferência. O interesse de Breuer pela sua paciente era vivido por ele como sendo de caráter puramente clínico e científico, e o fato de falar nela com uma frequência acima do comum não lhe parecia indício de nenhum envolvimento emocional, mas sim desse interesse “neutro” que deveria existir na relação médico-paciente. Essa não era, porém, a maneira como a mulher de Breuer vivia a situação. Cansada de ouvir o marido falar apenas em sua paciente, ela se tornou triste e ciumenta. Quando Breuer percebeu o que estava se passando, ficou extremamente embaraçado e resolveu encerrar rapidamente o tratamento. A decisão foi comunicada a Anna O. e o caso foi dado por terminado. Nesse mesmo dia, Breuer foi chamado com urgência à casa de Anna O., que se encontrava numa de suas piores crises. A paciente apresentava contrações abdominais de uma crise de parto histérica e nesse momento teria dito a Breuer: “Agora chega o filho de Breuer.” Muito chocado com o fato, Breuer hipnotizou-a e ela saiu da crise. No dia seguinte, Breuer e sua mulher viajaram de férias para Veneza.

O que havia escapado a Breuer, até então, era exatamente esse componente sexual que havia estado presente o tempo todo na sua relação com Anna O., mas que era rejeitado por ambos. Segundo o relato que fez de sua paciente, ela era uma pessoa assexual e que nunca, durante o tratamento, havia feito alusões a questões sexuais. Quando a evidência do fato se tornou irrecusável, Breuer abandonou horrorizado a cliente e fugiu. Nesse momento, segundo Freud, Breuer deixou cair a chave que poderia decifrar o grande segredo oculto das neuroses.

Anos mais tarde, Freud comenta que, se dependesse dos Estudos sobre a histeria, a importância concedida à sexualidade na etiologia das neuroses seria praticamente nula ou, pelo menos, bastante secundária. Mas o caso Breuer, aliado às experiências de Charcot na Salpêtrière (nas quais o componente sexual do comportamento das histéricas era evidente) e ao comentário de Chroback segundo o qual o remédio a ser receitado para uma histérica deveria ser Penis normalis [13], juntamente com a experiência clínica, levaram Freud à hipótese de que não era qualquer espécie de excitação emocional que se encontrava por trás dos sintomas neuróticos, mas sobretudo uma excitação de natureza sexual e conflitiva. A importância concedida à sexualidade, tanto para a compreensão da neurose como para a compreensão do indivíduo normal, torna-se cada vez mais central em Freud, tendo sido este um dos motivos de seu rompimento com Breuer.

         Freud, o sexólogo. Assim ele foi visto pelos seus contemporâneos e assim ele ainda é visto mesmo por aqueles para quem a psicanálise é algo mais do que informação erudita. Para muitos, Freud foi aquele que descobriu a sexualidade, sobretudo aquele que descobriu a sexualidade infantil. E não há nada mais falso do que isso. Na verdade, a sexualidade já era bastante tematizada pela medicina, pela psiquiatria, pela pedagogia e por vários campos de discurso no século XIX. Mais uma vez remeto o leitor a Michel Foucault e sua História da sexualidade[14].

O que verificamos pela análise de Foucault é que os séculos XVIII e XIX conheceram uma verdadeira explosão discursiva sobre o sexo. A colocação do sexo em discurso não é uma prerrogativa de Freud, mas aquilo que se transformou na grande injunção dos últimos dois séculos. O fenômeno da histeria, a familiarização, a preocupação com a masturbação das crianças, a organização física e funcional dos colégios, a confissão religiosa, o controle sobre a procriação, a psiquiatrização dos perversos, e tantas outras práticas mais, falavam do sexo. Nunca se falou tanto sobre o sexo. “A colocação do sexo em discurso”, como diz Foucault, não é uma novidade da psicanálise e sequer é uma novidade para o homem do século XIX:

A grande originalidade de Freud não foi descobrir a sexualidade sob a neurose. A sexualidade estava lá, Charcot já falara dela. Sua originalidade foi tomar isto ao pé da letra e edificar a partir daí a Traumdeutung, que é algo diferente da etiologia sexual das neuroses (...) o forte da psicanálise é ter desembocado em algo totalmente diferente que é a lógica do inconsciente.[15]

GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p.32 a 41.



[1] citado por LEVIN.K. Freud: a primeira psicologia das neuroses. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. p. 48.

[2] Conseguir delimitar um diagnóstico diferencial da histeria, que a distinguisse de quaisquer outras doenças, era o desafio empreendido por Charcot.

[3] FOUCAULT, Michel. Anotações do curso de 1973-74 no Collège de France (mimeog.).

[4] cf. LEVIN.K. Freud: a primeira psicologia das neuroses. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. p. 50.

[5] Freud ouve Charcot mencionando a relação entre histeria e sexualidade no âmbito informal, mas o neurologista francês não incorpora esta percepção em sua teoria. Quem irá relacionar teoricamente a histeria com a sexualidade é o próprio Freud.

[6] cf. MANNONI, O. Freud e a psicanálise. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. pp. 35-36.

[7] FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira (ESB) das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1970-1977.  v. I, p. 99.

[8] FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira (ESB) das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1970-1977.  v. I.

[9] FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira (ESB) das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1970-1977. v. XIV, p. 19.

[10] FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira (ESB) das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1970-1977. v. XIV, p. 26.

[11] FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira (ESB) das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1970-1977. v. II, p. 19.

[12] JONES, Ernst. Vida e obra de S. Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. p. 237.

[13] FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira (ESB) das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1970-1977. v. XIV, p. 24.

[14] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Rio de Janeiro: Graal, 1977.

[15] FOUCAULT, Michel. “A casa dos loucos”, in Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. pp. 261 e 266.



TEXTOS ESCLARECEDORES DE FREUD SOBRE HISTERIA

 

I. HISTÓRIA. - O nome “histeria” tem origem nos primórdios da medicina e resulta do preconceito, superado somente nos dias atuais, que vincula as neuroses às doenças do aparelho sexual feminino. Na Idade Média, as neuroses desempenharam um papel significativo na história da civilização; surgiam sob a forma de epidemias, em consequência de contágio psíquico, e estavam na origem do que era fatual na história da possessão e da feitiçaria. Alguns documentos daquela época provam que sua sintomatologia não sofreu modificação até os dias atuais. Uma abordagem adequada e uma melhor compreensão da doença tiveram início apenas com os trabalhos de Charcot e da escola do Salpêtrière, inspirada por ele. Até essa época, a histeria tinha sido a bête noire[1] da medicina. Os pobres histéricos, que em séculos anteriores tinham sido lançados à fogueira ou exorcizados, em épocas recentes e esclarecidas, estavam sujeitos à maldição do ridículo; seu estado era tido como indigno de observação clínica, como se fosse simulação e exagero.

A histeria é uma neurose no mais estrito sentido da palavra - quer dizer, não só não foram achadas nessa doença alterações perceptíveis do sistema nervoso, como também não se espera que qualquer aperfeiçoamento das técnicas de anatomia venha a revelar alguma dessas alterações. A histeria baseia-se total e inteiramente em modificações fisiológicas do sistema nervoso; sua essência deve ser expressa numa fórmula que leve em consideração as condições de excitabilidade nas diferentes partes do sistema nervoso. Uma fórmula fisiopatológica desse tipo, no entanto, ainda não foi descoberta; por enquanto, devemo-nos contentar em definir a neurose de um modo puramente nosográfico, pela totalidade dos sintomas que ela apresenta, da mesma forma como a doença de Graves se caracteriza por um grupo de sintomas - exoftalmia, bócio, tremor, aceleração do pulso e alteração psíquica -, sem qualquer consideração relativa a alguma conexão mais íntima entre esses fenômenos.

II. DEFINIÇÃO. - As autoridades alemãs, assim como as inglesas, ainda hoje têm o hábito de distribuir caprichosamente as descrições “histeria” e “histérico” e de agrupar indiscriminadamente a “histeria” com os estados nervosos em geral, a neurastenia, muitos dos estados psicóticos e muitas neuroses que ainda não foram retiradas do caos das doenças nervosas. Charcot, pelo contrário, sustenta com firmeza a opinião de que a “histeria” é um quadro clínico nitidamente circunscrito e bem definido (...). A sintomatologia da (...) histeria, extremamente rica, mas nem por isso anárquica, compõe-se de uma série de sintomas[2].

FREUD, Sigmund. Histeria. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira. vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 77 e 78.

 

A enorme importância prática da histeria masculina (que geralmente não é reconhecida) e, em particular, a histeria que se segue a um trauma foi ilustrada por ele como o caso de um paciente que, durante cerca de três meses, constituiu o ponto central dos estudos de Charcot. Assim, por meio de seu trabalho, a histeria foi retirada do caos das neuroses, diferençada de outros estados de aparência semelhante, e a ela se atribuiu uma sintomatologia que, embora extremamente multiforme, tornava impossível duvidar de que imperassem nela uma lei e uma ordem.

FREUD, Sigmund. Relatórios sobre meus estudos em Paris e Berlim. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira. vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 46.

 

O tratamento direto consiste na remoção das fontes psíquicas que estimulam os sintomas histéricos, e isto se torna compreensível se buscarmos as causas da histeria na vida ideativa inconsciente. Consiste em dar ao paciente sob hipnose uma sugestão que contém a eliminação do distúrbio em causa. Assim, por exemplo, curamos uma tussis nervosa hysterica fazendo pressão sobre a laringe do paciente hipnotizado e assegurando-lhe que foi removido o estímulo que o faz tossir, ou curamos uma paralisia histérica do braço compelindo o paciente, sob hipnose, a mover o membro paralisado, parte por parte. O efeito até se torna maior se adotarmos um método posto em prática, pela primeira vez, por Joseph Breuer, em Viena, e fizermos o paciente, sob hipnose, remontar à pré-história psíquica da doença, compelindo-o a reconhecer a ocasião psíquica em que se originou o referido distúrbio. Esse método de tratamento é novo, mas produz curas bem-sucedidas, que, por outros meios, não são alcançadas. É o método mais apropriado para a histeria, justamente porque imita o mecanismo da origem e da cessação desses distúrbios histéricos. Isso porque muitos sintomas histéricos que resistiram a todos os tratamentos desaparecem espontaneamente sob a influência de um motivo psíquico suficiente (por exemplo, uma paralisia da mão direita desaparecerá se, numa discussão, o paciente sentir ímpetos de dar um murro no ouvido do adversário), ou sob a influência de alguma excitação moral, de um susto ou de uma expectativa (por exemplo, em um local de peregrinação), ou, por fim, quando há uma drástica alteração das excitações no sistema nervoso, após um ataque convulsivo. O tratamento psíquico direto dos sintomas histéricos ainda será considerado o melhor no dia em que o entendimento da sugestão tiver penetrado mais profundamente nos círculos médicos (Bernheim - Nancy[3]). - Atualmente, não se pode decidir com certeza até que ponto a influência psíquica desempenha um papel em alguns outros tratamentos aparentemente físicos. (...)

Para sintetizar, podemos dizer que a histeria é uma anomalia do sistema nervoso que se fundamenta na distribuição diferente das excitações, provavelmente acompanhada de excesso de estímulos no órgão da mente. Sua sintomatologia mostra que esse excesso é distribuído por meio de ideias conscientes ou inconscientes. Tudo o que modifica a distribuição das excitações no sistema nervoso pode curar os distúrbios histéricos: esses efeitos são, em parte, de natureza física e, em parte, de natureza diretamente psíquica.

FREUD, Sigmund. Histeria. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira. vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 93 e 94.

 

Procurei abordar o problema dos ataques histéricos segundo um outro critério diferente do descritivo; examinando pacientes histéricos em estado hipnótico, cheguei a novos achados, alguns dos quais mencionarei aqui. O ponto central de um ataque histérico, qualquer que seja a forma em que este apareça, é uma lembrança, a revivescência alucinatória de uma cena que é significativa para o desencadeamento da doença. (...) O conteúdo da lembrança geralmente é ou um trauma psíquico, que, por sua intensidade, é capaz de provocar a irrupção da histeria no paciente, ou é um evento que, devido à sua ocorrência em um momento particular, tornou-se um trauma.

Nos casos conhecidos como histeria “traumática”, esse mecanismo é evidente até à observação mais superficial, mas também pode ser demonstrado na histeria em que não existe um único trauma de maior significação. Em tais casos, constatamos traumas menores, repetidos, ou, quando predomina o fator da disposição, lembranças em si mesmas indiferentes, mas que assumem a intensidade de traumas. Um trauma teria de ser definido como um acréscimo da excitação no sistema nervoso, que este é incapaz de fazer dissipar-se adequadamente pela reação motora. Um ataque histérico talvez deva ser considerado como uma tentativa de completar a reação ao trauma.

Neste ponto, posso remeter a um trabalho sobre esse assunto, iniciado em colaboração com o Dr. Josef Breuer.

FREUD, Sigmund. Extratos das notas de rodapé de Freud à sua tradução das Conferências das terças feiras de Charcot. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira. vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 181 e 182.

 

A vida sexual é especialmente apropriada para proporcionar o conteúdo [de tais traumas], devido ao contraste muito grande que representa para o restante da personalidade e por ser impossível reagir a suas ideias.

Deve-se compreender que nossa terapia consiste em remover os resultados das ideias que não sofreram ab-reação, seja revivendo o trauma num estado de sonambulismo, e então ab-reagindo e corrigindo-o, seja trazendo-o para o plano da consciência normal, sob hipnose relativamente superficial.

FREUD, Sigmund. Esboços para a comunicação preliminar de 1893. Carta a Josef Breuer. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira. vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 195.

 

Todo evento, toda impressão psíquica é revestida de uma determinada carga de afeto (Affektbetrag) da qual o ego se desfaz, seja por meio de uma reação motora, seja pela atividade psíquica associativa. Se a pessoa é incapaz de eliminar esse afeto excedente ou se mostra relutante em fazê-lo, a lembrança da impressão passa a ter a importância de um trauma e se torna causa de sintomas histéricos permanentes. A impossibilidade de eliminação torna-se evidente quando a impressão permanece no subconsciente.

FREUD, Sigmund. Algumas considerações para um estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira. vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 219 e 220.

 

Eu tomaria por histérica, sem hesitação, qualquer pessoa em quem uma oportunidade de excitação sexual despertasse sentimentos preponderante ou exclusivamente desprazerosos, fosse ela ou não capaz de produzir sintomas somáticos.

FREUD, Sigmund. Fragmento da análise de um caso de histeria. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira. vol. VII Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 37.

 


[1] Bête noire: monstro assustador.

[2] Nas páginas subsequentes, Freud menciona sintomas como ataques convulsivos, alterações sensoriais, zonas do corpo sofrendo dores, paralisias, tremores, contrações musculares, insensibilidade etc.

[3] Hyppolyte Bernheim (1837 - 1919) foi um médico neurologista francês que desenvolveu na cidade de Nancy um amplo trabalho clínico e teórico a respeito da hipnose. Para Bernheim, a sugestão do hipnotizador é a questão central dos processos hipnóticos. Freud presenciou em 1889 durante semanas as sessões de hipnose terapêutica comandadas por Bernheim, tendo traduzido para a língua alemã dois livros do autor: Da sugestão e suas aplicações à terapêutica, em 1889, e Hipnotismo, sugestão, psicoterapia, em 1892. 

 


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A HISTERIA E AS ORIGENS DA PSICANÁLISE

 

 

A PREMISSA DA EXISTÊNCIA DE UM INCONSCIENTE NO PSIQUISMO HUMANO

A obra de Freud, no que se refere à Psicanálise, começa com textos sobre hipnotismo e histeria produzidos a partir de seus estudos realizados durante a permanência por seis meses, entre 1885 e 1886, no Hospital de la Salpêtrière, em Paris. Ali, estudou com o Prof. Jean-Martin Charcot, que se interessava pela pesquisa da histeria e usava a hipnose como recurso. Charcot dedicava seu trabalho a comprovar que existe um âmbito inconsciente na histeria que pode ser acessado pela hipnose e que teria relação com a anatomia humana.

Quando Freud retorna a Viena, cidade em que residia, passando a se dedicar ao tratamento de pacientes portadores de histeria, preponderantemente mulheres, fica impressionado com as evidências de que essas pessoas apresentam sintomas que não têm base orgânica e de que – em alguns casos – não reconhecem em si mesmas certas experiências de vida, uma vez que estas não são lembradas. Nessa época, mantém parceria com um amigo também médico, Josef Breuer, e ambos passam a discutir sobre a possibilidade de existir um âmbito inconsciente no sistema psíquico desses pacientes. As evidências de um inconsciente podiam ser observadas em pessoas que apresentavam sintomas no corpo que não tinham base orgânica, os quais envolviam enxaquecas, perda relativa ou total da visão, parestesias, dores variadas, problemas gástricos e outros. Os autores usam os termos Inconsciente [Unbewusst] e O Inconsciente [Das Unbewusste], que, numa tradução literal, seria “aquilo que não se sabe”; o termo alemão traz também a ideia de que a inconsciência é involuntária. Em contrapartida, temos o termo Bewusst e Das Bewusste, literalmente “aquilo que se sabe”, portanto consciente, conhecido. Ressaltamos que em alemão todo substantivo é iniciado com letra maiúscula.

Breuer e Freud notam que, em alguns casos, o paciente não tem conhecimento, durante o estado de vigília, do que relatou enquanto estava hipnotizado e, em certos casos, parece que está presente algo como uma dupla consciência. Existiriam dois estados de consciência, com pouca comunicação entre ambos. Suas conclusões derivam preponderantemente da análise que fazem do caso de uma paciente de Breuer cujo nome era Bertha Pappenheim, que foi imortalizada na obra psicanalítica com o pseudônimo de Anna O.

 

FREUD E BREUER FAZEM SUA PRIMEIRA COMUNICAÇÃO SOBRE A HISTERIA

No texto conjunto de Breuer e Freud intitulado “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos” [Über den psychischen Mechanismus hysterischer Phänomene], publicado em 1893 e incluído em 1895 na obra “Estudos sobre histeria” [Studien über Hysterie], é apresentado o problema que intriga: os pacientes histéricos teriam vivenciado um trauma do qual não se recordam, que, contudo, mantém relação causal com o evento sintomático posterior que traz o paciente à clínica das doenças nervosas. Ou seja, existiria uma ligação entre o que está acontecendo “agora” e algo ocorrido antes, sendo que aquilo que pertence ao passado longínquo não é lembrado pela consciência da pessoa, mas se manifesta de outra forma, como um sintoma no corpo que substitui aquilo que foi “esquecido”. Essa afirmação remete ao conceito de Inconsciente.

Usando a hipnose como via de acesso a lembranças esquecidas, notam que ao facilitar-se, por meio dela, a sua recordação, pode-se estabelecer junto ao paciente o nexo causal entre os sintomas atuais e sua origem em um tempo passado, ou seja, o nexo entre sintomas e registros psíquicos inconscientes. Abre-se, dessa forma, o caminho para a eliminação do sintoma histérico, pois, conhecida sua causa, ela deixa de ser inconsciente e pode ser eliminada.

Breuer e Freud propõem que fatos externos ao psiquismo teriam relação direta com o fenômeno histérico, na medida em que teria havido um acidente traumático envolvendo acontecimentos e outras pessoas, de caráter intolerável para o psiquismo, o qual teria levado à formação de registros inconscientes. Esses eventos estariam na base patogênica que instaura as condições que produzem o fenômeno histérico. Nesse sentido, afirmam que o paciente alucina, em cada ataque histérico, um mesmo evento original [relativo ao acidente traumático]. Por essa afirmação, estabelecem o elo entre um registro psíquico alocado num âmbito inconsciente, portanto invisível, e um sintoma a ele relativo que se tornou sua forma de expressão, este, em princípio, visível ou passível de ser observado.

 

O RECALQUE

Tendo concluído que houve um evento de caráter traumático que ficou esquecido em algum lugar do sistema psíquico inacessível pela consciência da pessoa, portanto, tendo se tornado inconsciente, Breuer e Freud desenvolvem o conceito de recalque [Verdrängung]. Usam o termo para designar o conjunto de registros psíquicos tornado inconsciente e mantido nessa condição por ser insuportável a lembrança do evento traumático. Dizendo de outro modo: é melhor ficar inconsciente para não lembrar justamente aquilo que é traumático. Está aí, para esses pesquisadores, nesse estágio de suas pesquisas, a base de formação do Inconsciente, que é, segundo suas concepções de então, formado em decorrência da atuação de um movimento de defesa acionado psiquicamente contra eventos traumáticos no sentido psicológico, o qual é denominado recalcamento. Portanto, um Inconsciente surge e atua continuamente, reprimindo o retorno da lembrança inconveniente e evitando que ela novamente invada a consciência. O termo alemão escolhido para designar o recalcamento, Verdrängung, do verbo verdrängen, tem sua melhor tradução como “empurrar para o lado” ou “desalojar”, pois significa literalmente desalojamento ou deslocamento, embora também possa significar repressão. Um bom modo de conceituar a partir de uma tradução assim feita poderia ser “Repressão por meio do mecanismo de empurrar para o lado aquilo que incomoda”.

Para essas conclusões sobre o mecanismo de defesa de recalcamento, além da experiência de Breuer, Freud considera as experiências e conclusões do Dr. Charcot, com quem havia estudado em Paris, o qual mantinha a crença no potencial da hipnose e em um Inconsciente acessível unicamente, nessa época, por essa prática. Ficara também, para ele, a lembrança da afirmação de Charcot de que a sexualidade tinha seu lugar nos quadros de histeria. É importante situar a relevância da sexualidade na construção da Psicanálise, pois desde os seus primeiros estudos com a histeria, usando a hipnose e a fala do paciente sobre seus sintomas e respectivas causas/origens, Freud nota que o tema da sexualidade surge como relevante fator etiológico nas neuroses em geral e na histeria em particular. Ele propõe que o acidente traumático está carregado de experiências que envolvem sexualidade, embora, nesse momento de sua obra, ainda não conseguisse explicitar com clareza a abrangência do que seria sexualidade no sentido traumático.

 

TEORIA DA SEDUÇÃO [VERFÜHRUNGSTHEORIE] E RECALQUE [VERDRÄNGUNG]

Obtendo evidências da presença de conteúdos relativos à sexualidade e da instauração do trauma originário durante a infância, Freud supôs, inicialmente, que a formação do quadro de histeria ocorreria durante o período infantil, a partir de um trauma sexual ao qual a criança não pôde reagir, na medida em que teria sido vítima da sedução de um adulto quando ainda não havia desenvolvido suficientemente a sua maturidade sexual. Ao chegar à vida adulta, um novo acontecimento relacionado com a sexualidade teria despertado no sujeito efeitos dos conteúdos do trauma sexual que eram mantidos inconscientes. No início, ele parece admitir que tenha ocorrido contato físico entre a criança e o adulto, mas se refere a um susto [Schreck] ocorrido durante a cena.

No entanto, após investigar com maior profundidade alguns casos, conclui que o ato sexual pode não ter ocorrido e que, nesse caso, está presente somente a fantasia decorrente de uma situação que inclui aspectos da sexualidade. A criança teria fantasiado ter sido seduzida pelo adulto; essa impressão poderia derivar de sentimentos de amor que incluiriam contatos corporais e que a levariam a fantasiar experiências típicas do mundo adulto. Na continuação, Freud mantém a proposta de que o trauma sexual está relacionado à “sedução”, porém não obrigatoriamente como evento sexual concreto, mas atuando o campo da fantasia. Essa conclusão representou o reconhecimento de que o ato dito sexual talvez não tenha ocorrido. Mais tarde ainda, percebe que o processo de “sedução” pode estar relacionado à fantasia da criança e decorre de seu desejo inconsciente; ela criaria fantasias referentes ao seu desejo de amor direcionado ao adulto. As vivências infantis, em especial as relativas à presença da sexualidade nesse estágio de vida, passam a ganhar atenção especial de Freud para explicar o estabelecimento da neurose de seus pacientes adultos.

A teoria da sedução evoluiu desde a proposta de que um adulto seduziu a criança, passando para a proposta de que a criança construiu a fantasia de ter sido seduzida, para, finalmente, chegar à teoria de que a criança também constrói fantasias com conteúdos amorosos relativos ao adulto. (...)

A proposta original de Freud é de que os sintomas neuróticos decorreriam da reativação, no adulto, de conteúdos sexuais infantis inconscientes. O encontro de caráter sexual entre criança e adulto acontece habitualmente sem que este último tenha consciência do erotismo presente; um exemplo está no carinho envolvendo contatos corporais que não são considerados eróticos pelos adultos. Somos de opinião que, de uma maneira ou outra toda criança é alvo da sedução do adulto. A discussão sobre o complexo de Édipo, que apresentamos mais adiante, coloca isso como algo de que não se consegue escapar. O que não ocorre necessariamente é ela ser violentada/abusada. Pode não haver o assalto sexual, mas há uma sexualidade latente que seguirá caminhos mais ou menos complicados conforme cada caso. Contudo, ressalta-se que a teoria de uma sedução fantasiosa não elimina a possibilidade de ter ocorrido realmente a tentativa ou o ato envolvendo sexo na vivência infantil.

Um importante autor psicanalítico, J. Laplanche, colocou posteriormente a proposta de uma teoria da sedução generalizada, a qual em essência aborda a impossibilidade de que ocorra o desenvolvimento de uma criança fora de um contexto de sedução envolvendo seus contatos com os adultos.

Ao se reconhecer que a sexualidade sempre está presente, cabe o esclarecimento no sentido de prevenir sobre o uso do termo “sexualidade” em Psicanálise, para que não se a considere de acordo com padrões culturais que relativizam, enviesam ou limitam o termo.

Esclarecemos que, na época de Freud, não era novidade que devia haver ligação entre histeria e sexualidade. Conforme relata Martin Ehlert-Balzer no Handbuch psychoanalytischer Grundbegriffe, as afirmações de Freud a respeito não foram tão escandalosas quanto se diz e Breuer também reconheceu a sexualidade como fator mais importante em muitos casos de histeria.

Para esclarecer sobre a formação do âmbito inconsciente, o termo recalcado contribui ao significar conteúdos traumáticos que o sujeito reprimiu em função de não conseguir lidar com determinadas vivências; a prevalência de seu início se daria durante a infância, em processos de sedução.

Pode-se afirmar que a impossibilidade de acessar o âmbito do Inconsciente decorreria de ter havido um trauma incluindo aspectos da sexualidade e, também, da falta de preparo para lidar com acontecimentos, o que promoveria um susto em idade precoce, quando a criança não consegue reconhecer, compreender e discriminar o significado presente nos eventos em que mantém contatos com o adulto, já que não dispõe de recursos relativos à maturidade sexual, cognitiva e emocional. Entrando em contato com sensações precoces que a atraem, bem como estando sujeita a uma Lei Moral ainda incipiente, não consolidada nem suficientemente reconhecida, por lhe faltarem vivência e cognição, a criança não conseguiria reagir com os recursos da maturidade psíquica e sexual. Esse impedimento a levaria a utilizar um mecanismo psíquico específico que implica tornar inconsciente aquilo que é insuportável e incompreensível; trata-se do mecanismo de recalcar. O mecanismo de recalcar constitui-se como mecanismo de repressão promovida em decorrência de ser melhor – para o sujeito – reprimir o reconhecimento de algo do que aceitá-lo.

O mecanismo de tornar inconsciente o que é insuportável [recalcar] consiste na realização de uma separação ou distanciamento entre a representação da cena ocorrida – isto é, a ideia [Vorstellung] ou noção relativa à cena vivenciada, por ter sido vista, escutada ou sentida – e o afeto relativo a essa cena que não pode ser aceita ou carga energética a ela ligada [Affekt]. Portanto, a ideia [Vorstellung] se separa de seu afeto [Affekt] e permanecem ambos separados ou afastados entre si; reduz-se assim a intensidade da ligação energética/afetiva que os une originalmente.

Explica-se Vorstellung como consistindo num registro psíquico passível de memória; como exemplo, citamos a imagem guardada no sistema psíquico que é relativa a uma experiência. Levando em conta que todo evento inclui Vorstellung somada a um Affekt [V + A], o recalque significa que [V] se isola de [A] e ambos permanecem livres entre si. Como os registros psíquicos não têm como escapar do psiquismo, Freud postula que Vorstellung [V] e Affekt [A] separados entre si passam a localizar-se no âmbito inconsciente do psiquismo, onde se forma a base de um núcleo patogênico que resulta dos conteúdos recalcados circulando livremente. Para facilitar a compreensão, traduzimos de ora em diante, Vorstellung por Representação e Affekt por Afeto, e, a nossa fórmula passa a ser [R + A] em vez de [V + A].

Mesmo discriminado na sociedade vienense por defender a existência de sexualidade desde a infância e por abordar os aspectos da sedução infantil pelos adultos, Freud não abandona suas teses e as defende em todo o transcorrer de sua obra. Sabe-se que estava ciente da relevância da sexualidade no encontro do adulto com a criança e talvez se possa dizer que poderia ter sido mais enfático ainda na defesa do reconhecimento das implicações da sedução infantil na formação dos quadros de neurose, pois a clínica psicanalítica atual confirma cotidianamente casos de submissão de crianças a experiências carregadas de sexualidade. Os aspectos da sexualidade são discutidos posteriormente na obra “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”.

 

O CONTEÚDO RECALCADO É INCONSCIENTE E ESSE INCONSCIENTE É AMPLIADO A PARTIR DE NOVOS EVENTOS

         O sistema psíquico inconsciente não é formado apenas pelo conteúdo originalmente recalcado. Novos eventos na vida de uma pessoa influem na sua ampliação; trata-se de “eventos auxiliares”, que, de algum modo, estão associados a representações que fazem parte dos conteúdos recalcados anteriormente; esses novos eventos denominados eventos auxiliares são os que se ligam a traumas mais primitivos, infantis [no sentido psíquico], os quais foram anteriormente recalcados. Esse processo que envolve o acúmulo de experiências que se associam, ampliando o âmbito do recalcado, contribui para ampliar o próprio núcleo patogênico em que está o recalque; os conteúdos novos se ligam ao que já havia sido ali depositado. Ou seja, o âmbito do recalcado vai sendo aumentado com conteúdos que a ele se agregam, formando um núcleo patogênico complexo que constitui a base patogênica da formação dos sintomas histéricos.

No núcleo patogênico, os afetos relativos ao que foi recalcado formam pontos de elevada excitação psíquica. Em decorrência, manifesta-se um excedente de carga psíquica que precisa ser direcionado para um processo de escoamento, visando reduzir a tensão psíquica que ele causa. Não havendo o escoamento, mantém-se a tensão que está na base da formação dos sintomas histéricos. É preciso que ocorra um escoamento do excesso de tensão cada vez que este se torna insuportável. Se isso não ocorrer de modo adequado, surgirá um sintoma indicativo do excesso. Cabe a analogia com a panela de pressão contendo água, que, sobre o fogo, vai acumulando gradativamente mais pressão, que precisa ser escoada pela válvula de segurança. Caso não houvesse a válvula, a panela explodiria. O vapor que sai por essa válvula de segurança corresponde ao sintoma histérico.

Pesquisando pacientes histéricos, Freud chega a importantes conclusões sobre os quadros de histeria e seu tratamento, citando os seguintes sintomas da histeria: nevralgias e anestesias variadas, contraturas e paralisias, ataques histéricos e convulsões epileptoides, petit mal e perturbações como tiques, vômitos crônicos e anorexia, formas variadas de perturbação da visão, alucinações visuais recorrentes e outros sintomas. Breuer e Freud ressaltam que são comuns, em adultos, sintomas que devem estar relacionados a fatos ocorridos na infância, e que, muitas vezes, a relação entre causa e efeito sintomático é evidente, enquanto em outras já não é simples encontrar seu nexo causal, condição essa que requer que se estabeleça uma relação simbólica entre a causa precipitante ou original e o fenômeno patológico posterior, manifestado no adulto. Isto porque o psiquismo se utiliza do campo simbólico para estabelecer a relação entre a causa e a patologia e, nesse sentido, o sintoma poderia ser analisado sob o ponto de vista do simbolismo.

Evoluindo em suas pesquisas, eles concluem que, nas neuroses traumáticas, a causa atuante da doença não é o dano físico ao organismo, na medida em que tenha sido de pequena importância, e que, em vez desse dano, o que tem importância na formação causal do trauma é o afeto relacionado ao susto. Quando, no susto, há um afeto envolvido, o trauma psíquico é facilitado, pois está diretamente relacionado a um evento que envolve afeto. O afeto é visto como a energia psíquica que se liga às representações e apresenta variação econômica [quantitativa] em função da relevância da própria representação em causa. Cabe esclarecer que, no original da obra freudiana, as palavras alemãs usadas foram Affekt, que em português significa afeto, afeição, emoção ou mesmo sentimento, e Schreckaffekt, que significa o afeto que inclui o impacto de um susto [Schreck + Affekt].

Os autores notam que o trauma psíquico está presente na maioria, senão em todos os sintomas histéricos, e consideram que decorre da irrupção de um susto ou medo, vergonha e dor psíquica [ou dor por influência psíquica]. Afirmam, ainda, que devem ser levadas em conta também: a) a suscetibilidade da pessoa afetada e b) as condições situacionais presentes durante o evento deletério. Enfatizam que o efeito traumático pode ser influenciado por uma ou ambas as condições, ou seja, simultaneamente duas influências, uma relativa à suscetibilidade da pessoa e outra relativa às condições situacionais presentes no evento.

Continuando, admitem que, na histeria comum, podem ocorrer, em vez de um grande trauma, diversos traumas parciais, todos ligados a uma causa comum de sofrimento. Neste momento, estão retomando o conceito de eventos auxiliares ligados ao trauma original. Também lembram que um fato trivial pode chegar a se associar a outro realmente atuante, ou mesmo durante um momento de maior suscetibilidade, estabelecendo assim um sintoma específico. Esclarecem que o trauma psíquico fica retido como uma lembrança, que se manifesta mediante o sintoma histérico. Em outras palavras, surge, em um segundo tempo, um sintoma com as características de uma manifestação histérica; seria uma lembrança “abandonada” em um lugar do sistema psíquico inacessível a um reconhecimento pelo Eu, “um lugar” inconsciente.

Eles propõem nessa época que para conhecer-se o evento traumático causador do sintoma histérico é preciso provocar o ressurgir da lembrança relativa a esse sintoma, e a forma de obter isso é induzir o paciente a comunicar a lembrança “abandonada” por meio de palavras que traduzam o afeto envolvido no evento traumático. Ou seja, é necessário levar o paciente a encontrar palavras que possam traduzir o afeto que perdeu sua ligação com a representação recalcada, para, assim, abrir-se o caminho para o desaparecimento do sintoma. Afirmam, ainda, que os histéricos sofrem, principalmente, de reminiscências, pois traços de lembranças de fatos que tiveram que ser “esquecidos” permanecem na base do seu sofrimento, e os sintomas constituem seus substitutos.

Considerando que a angústia mantém importante presença na sintomatologia da histeria, cabe destacar que Freud usou, para referir-se ao que acontece com a criança no evento traumático, a palavra alemã Angst, que significa medo. Não encontramos no alemão uma palavra que tenha o sentido original que tem no português a palavra angústia. Mas existem, nessa língua, termos relativos ao medo, como Angstgefühl, “sentimento ou sensação de medo”, e Angst bekom-men, “adquirir medo ou ficar com medo”. Há também o termo Gewissensangst, que pode ser traduzido como medo da consciência, portanto se aproximando do conceito de angústia.

Contudo, devido à sequência de traduções da obra freudiana, passando antes pelo inglês e francês e, depois, para o português, encontram-se variações nas traduções que dificultam a compreensão sobre o que seja angústia dissociada de ansiedade e, também, quando o melhor sentido seria medo e não angústia. Há certa tendência à ambiguidade no uso dos termos angústia e ansiedade, conforme a origem da tradução inglesa ou francesa. Portanto, ao encontrar os termos angústia ou ansiedade, o leitor terá melhor compreensão ao recordar que, em verdade, Freud se referia ao termo “medo” e palavras dele derivadas e aos sentimentos ou sensações relativas à experiência de medo. Cabe o registro de que Freud conhecia os termos das línguas francesa e inglesa e aceitou, de algum modo, o seu uso. Para melhor compreensão dessa questão, recomenda-se a leitura dos Comentários do Editor Brasileiro que antecedem o texto “Além do princípio de prazer”, incluídos no volume II das “Obras psicológicas de Freud – Escritos sobre a psicologia do inconsciente”, tradução coordenada por Luiz Alberto Hanns. Além disso, ressalta-se que, durante os anos 1940/1950, Michael Balint trabalhou o âmbito do desejo presente no enfrentamento do risco de vida em atividades radicais em sua obra Angstlust und Regression, na qual evidencia a ligação entre o enfrentamento do medo do desamparo primário e o desejo projetado sobre objetos materiais usados como substitutos do amparo vivenciado primitivamente junto a esses objetos primários. Para uma equivalência relativa ao termo Angslust, se for usada uma tradução literal, pode-se usar a expressão “prazer com o medo” ou “desejo que remete a uma situação da qual se tem medo, podendo incluir certa nostalgia”, evidentemente medo do desamparo.

 

REAÇÃO E AB-REAGIR [REAKTION UND ABREAGIREN]

É enfatizado por Breuer e Freud que, para desenvolver-se o quadro de histeria, é preciso que tenham ocorrido experiências num tempo infantil, as quais influenciam o psiquismo atual da pessoa, mas que não fazem sentido para ela, pois não consegue ligar essas experiências anteriores ao seu atual quadro. Para ocorrer o esmaecimento da lembrança e, consequentemente, a perda do seu respectivo afeto, é necessária uma reação energética, forte, que seja adequada ao fato que provocou o afeto traumático. Se o indivíduo consegue reagir adequadamente a um evento que inclui muita carga afetiva, não ocorre a separação entre representação e afeto. Nesse caso, a representação e o afeto a ela ligado permanecem formando um conjunto vinculado.

Consequentemente, eles passam a discutir sobre o termo reação, com o sentido de reflexo voluntário ou involuntário que permite a liberação do afeto traumático. A vingança pode ser exemplo de reação que elimina ou reduz o afeto. Se a reação é reprimida, o afeto permanece sem liberação, condição que está na gênese da neurose. Propõem que o uso da linguagem também ocupa o lugar da reação, constituindo um caminho adequado para a descarga do afeto.

Quando não pode haver reação a um trauma psíquico, este retém seu afeto original. Se, em consequência, o sujeito não consegue livrar-se do acréscimo de estímulo, o evento pode permanecer como um trauma psíquico. Um sistema psíquico sadio tem outros métodos de lidar com o afeto de um trauma psíquico, mesmo que não possa efetuar a reação motora e por palavras – por exemplo, elaborando-o associativamente e produzindo ideias contrastantes. Exemplificando: se uma pessoa é insultada, mesmo que não retribua o golpe nem retruque com grosserias, ela pode reduzir o afeto ligado ao insulto pela evocação de ideias contrastantes, como aquelas relativas a seu valor pessoal, à indignidade da pessoa que a insultou e outras soluções equivalentes. Uma pessoa sadia consegue, de algum modo que lhe é próprio, lidar com um insulto e assim obter que o afeto originalmente intenso em sua memória perca sua intensidade e, com o passar do tempo, seja esquecido.

Na eventualidade de não ter havido uma reação no momento do evento traumático, o afeto pode ser ab-reagido [reação em outro momento ou posteriormente, uma ab-reação]. Além disso, um evento que poderia tornar-se traumático tem seu impacto patogênico reduzido ou eliminado se o indivíduo consegue estabelecer novas associações que reduzam seu significado deletério. Isto significa que o afeto pode ligar-se a outras representações para formar novos conjuntos de representações e afetos.

As experiências relativas aos eventos traumáticos estão inteiramente ausentes da lembrança dos pacientes durante o estado psíquico normal, ou só se fazem presentes de forma sumária. Considerando essa condição, Breuer e Freud propõem, nessa época, que apenas quando o paciente é inquirido e consegue recordar um evento traumático essas lembranças podem emergir com a nitidez inalterada de um fato recente. Para obter essas recordações por meio da inquirição, os autores aplicavam a hipnose. Lembranças relacionadas a fatos traumáticos que não haviam sido ab-reagidas suficientemente eram recordadas mediante o uso da hipnose, desde que o paciente fosse inquirido de modo adequado. Surgiu a proposta de procedimento terapêutico sustentada na busca de uma ab-reação, possível quando a pessoa está no estado de hipnose.

Assim, eles reconhecem a importância da reação que evita ou dificulta a formação de um quadro histérico, mas também a importância de se ab-reagir como fator que permite eliminar o sintoma que se estabeleceu quando não foi possível a reação adequada durante o evento traumático.

A dificuldade em reagir abre o caminho para a formação do recalque, e a dificuldade de ab-reagir dificulta eliminar o conteúdo recalcado. Os motivos que impedem a reação são de dois tipos. No primeiro tipo, a natureza do trauma não comporta reação, como no caso de o sujeito haver perdido uma pessoa querida, ou em eventos em que a situação social impede a reação, ou porque o trauma se refere a algo que o sujeito se esforça para esquecer; nesses casos, ocorre o recalcamento das coisas aflitivas cujos afetos são insuportáveis. Já o segundo tipo decorre dos “estados psíquicos peculiares” atuantes nas experiências deletérias, como no susto, estados psíquicos positivamente anormais, estado crepuscular semi-hipnótico de devaneios e auto-hipnose.

Os dois motivos podem se sobrepor, mas também pode ocorrer que não esteja presente um estado psíquico peculiar e que seja o próprio trauma psíquico o fator causal [original] para a produção do estado psíquico anormal, condição essa que explica a impossibilidade da reação. Em ambos os casos, há evidências de que também não foi possível ao indivíduo chegar a uma compreensão [elaboração psíquica] do evento em suas associações com outros eventos.

 

DUPLA CONSCIÊNCIA

         Freud e Breuer, em especial este último, estão convencidos nessa época de que está presente, na histeria, um estado psíquico de “dupla consciência” em estado rudimentar, e que a tendência à dissociação entre as duas consciências e ao surgimento dos estados anormais da consciência denominados estados hipnoides constitui o fenômeno básico da histeria. Diferenciam a histeria disposicional de outra sintomatologia, denominada histeria psiquicamente adquirida. Na histeria disposicional, o estado hipnoide está presente antes da instalação da doença; existe no sujeito uma disposição psíquica para a histeria, devido estar presente nele uma tendência significativa a permanecer nos estados denominados hipnoides ou crepusculares, em que prevalecem devaneios. No outro caso – o da histeria psiquicamente adquirida –, a doença surge a partir de um evento traumático no qual faltou ao sujeito o recurso necessário para reagir ao seu impacto; em vez de reagir, o sujeito realiza uma divisão expulsiva do conteúdo insuportável do trauma em direção ao seu âmbito inconsciente. Esclarecendo, os grupos de representações que não conseguem ser aceitos pela consciência são remetidos ao Inconsciente; assim, são expulsos para o Inconsciente os conteúdos insuportáveis. (...)

         Freud e Breuer afirmam que podem ocorrer ligações entre certas representações inconscientes, formando conjuntos que se mantêm separados das demais ligações existentes dentro do Inconsciente. Seria uma condição secundária: a segunda consciência, que se manifestaria durante o quadro de histeria aguda, por exemplo. Havendo a consciência hipnoide, esta atuaria sem levar em conta a consciência do estado psiquicamente normal; a consciência normal fica sem controle do sistema motor em sua integralidade.

 

O MÉTODO CATÁRTICO

         Fundados na discussão precedente, os autores postulam a invenção do que denominaram Método Catártico [Kathartische Methode]. Trata-se de um método clínico que pretende levar o paciente a entrar em contato com as lembranças “abandonadas” a partir de comandos que requerem a aplicação da hipnose. Desta forma, o sujeito conseguiria expor, pela palavra, os eventos traumáticos e, como etapa final, seria facilitado ao profissional de psicoterapia a aplicação de uma sugestão para induzir o paciente a deixar de manifestar o sintoma correspondente.

         O método é denominado catártico por referência ao termo catarse, que, do grego, traz a ideia de purgação, limpeza, e representa uma nova forma de utilizar os recursos da hipnose em prol do tratamento da histeria e outras neuroses. É constituído, basicamente, de três etapas, pela ordem: 1. hipnose; 2. fala; e 3. sugestão. Esclarecendo: 1. procedimento de hipnotizar o paciente; 2. então induzi-lo a falar sobre seus sintomas e eventos a eles associados; e 3. finalmente, formular sugestões ao paciente, com o propósito de eliminar sintomas por meio de fórmulas engenhosas voltadas para o “esquecimento” de eventos desagradáveis ou causadores de angústia, bem como redução do afeto envolvido com tais eventos por meio da análise, que lhes tira parte ou a totalidade do impacto afetivo. O método está sustentado no reconhecimento da existência de dois estados de consciência, sendo um deles de âmbito inconsciente, desconhecido ou minimamente reconhecido pelo estado de consciência normal. O conteúdo do estado inconsciente precisa ser reconhecido para que seus efeitos deletérios possam ser eliminados ou reduzidos. Nesse momento, o psiquismo poderia ser visto como sendo integrado por dois estados psíquicos.

 

TORNAR CONSCIENTE O QUE ESTÁ INCONSCIENTE

A tarefa do médico [depois se diria psicoterapeuta e, mais tarde, psicanalista] consiste em hipnotizar o paciente de modo a facilitar-se o acesso aos conteúdos inconscientes e, então, pela sugestão, convidá-lo a falar sobre seus sintomas e, se possível, sobre sua origem, tornando-os conscientes. Finalmente conhecidos – pela fala – os fatores que explicam a razão de ser dos sintomas, realiza-se a sugestão que terá a função de contribuir para que os sintomas sejam abandonados ou mesmo substituídos. Sua proposta se sustenta nas evidências de que haveria um âmbito inconsciente e um outro consciente: [das Unbewusste] e [das Bewusste].

Trata-se de uma psicoterapia que se socorre da eliminação da força atuante do trauma que ainda não foi ab-reagido, bem como da liberação do afeto “estrangulado” no âmbito do recalcado. Isso é feito por meio da fala, que permite uma saída para “aquilo” que está recalcado, ao tempo que submete a representação em causa a uma correção pela recuperação das associações que foram distorcidas ou “perdidas”. A reintrodução, na consciência normal – usando hipnose leve –, do conteúdo que estava recalcado no Inconsciente ou a sua eliminação por sugestão constituem a etapa final da psicoterapia pelo Método Catártico.

Contudo, Freud e Breuer reconhecem que nem sempre ocorre a cura total, principalmente quando o paciente é mais suscetível aos estados hipnoides. Suas conclusões derivam preponderantemente da análise que fazem do caso de uma paciente de Breuer, Bertha Pappenheim, imortalizada na obra psicanalítica com o pseudônimo de Anna O. Segue um resumo desse caso.

 

SENHORITA [ FRÄULEIN] ANNA O., 21 ANOS (BREUER)

O tratamento ocorreu durante os anos 1880 a 1882. No caso de Anna O., uma jovem muito culta, tem-se um quadro histérico que foi se estabelecendo gradativamente durante o período em que ela cuidou de seu pai gravemente enfermo, período esse em que permaneceu à sua cabeceira por longo tempo. Após a morte dele, seus sintomas tornaram-se intensos. De uma condição inicial de eventos somáticos agudos, a paciente passou a apresentar uma doença crônica.

Breuer enfatiza a dissociação psíquica da paciente, que apresentava a denominada condição secundária ou segunda consciência, considerada um estado psíquico distinto do estado psíquico de normalidade. Ao aprofundar a discussão sobre essa condição secundária, Breuer introduz o conceito de Inconsciente, um âmbito do psiquismo que seria desconhecido pela consciência normal. Afirma que a paciente tinha conhecimento da existência do âmbito inconsciente, mas reconhece que não conseguia ter domínio sobre as manifestações resultantes dessa condição. (...)

Anna O. dividia o dia em dois tempos, de modo que (...) durante o dia era perseguida por alucinações; à noite, se tornava lúcida e assim permanecia trabalhando até a madrugada. Portanto, durante o período vespertino, permanecia em estado condizente com o de condição secundária e, no restante do tempo, principalmente à noite e de madrugada, permanecia em estado de consciência normal. Essa separação do tempo correspondia a uma repetição da separação de tempo que se vira forçada a realizar durante o longo período em que permanecera à cabeceira de seu pai moribundo – cuidando dele à noite. Tratava-se, portanto, da repetição de uma cena por ela vivida.

A terapêutica aplicada consistiu basicamente em sessões de hipnose, que permitiram à paciente livrar-se das sensações deletérias e sintomas histéricos que se acumulavam diariamente, facilitando-lhe, assim, conduzir as suas horas de consciência normal [no final do dia] em condições minimamente adequadas. Esse processo perdurou por dois anos, entre 1880 e 1882, encerrando-se quatro anos antes do retorno de Freud a Viena, após ter estudado com Charcot em Paris. Essa história clínica foi contada por Breuer a Freud, que ficou bastante impressionado e, interessado no estudo da histeria, engajou-se na pesquisa com Breuer.

Anna O. descreveu a terapêutica como sendo uma cura pela fala [talking cure] e que, com esse tratamento, ocorreu o que denominou uma limpeza de chaminé [chimney-sweeping]. O uso desses termos por Anna O. decorreu de ela, nos estados hipnoides, substituir o alemão pelo inglês e de ter consistido o tratamento em sessões nas quais lhe era solicitado falar das origens de seus sofrimentos e traumas envolvidos, além de sensações e alucinações relacionadas aos sintomas. Isto dava a ela, consequentemente, a sensação de estar sendo realizada a “limpeza” de seu interior por meio da fala, que estaria permitindo-lhe expelir resíduos [ou sujeira].

Outros aspectos do caso não estão presentes diretamente na explanação de Breuer. O conceito de transferência, que veio a ser trabalhado mais tarde por Freud, não foi reconhecido por Breuer, que não soube lidar com o amor transferencial (...). Percebe-se, no relato, a insistente omissão dos sentimentos da paciente em relação a ele. O caso é encerrado abruptamente, como se fosse um término programado pela própria paciente, como se Breuer não tivesse participação nesse rompimento terapêutico, embora se saiba que não foi bem assim. O texto passa ao leitor a impressão de que esse médico quis encerrar o caso sem assumir responsabilidade pelo encerramento. A cuidadosa análise do relato, bem como da forma de interrupção do tratamento, constitui elemento elucidativo para a compreensão da importância que deve receber a preparação dos profissionais para atuarem com pacientes neuróticos. O caso Anna O. apresenta as bases do que veio a ser denominado Método Catártico.

 

SENHORA [FRAU] EMMY VON N., 40 ANOS (FREUD)

Atendimento ocorrido no período 1889-1890 ou um ano mais tarde. Um caso clínico que ajudou Freud a conhecer o método de Breuer foi o de Frau Emmy Von N. O relato clínico desse atendimento constitui uma demonstração detalhada da terapêutica da histeria denominada método catártico, à qual, inicialmente, Freud aderiu. Ele reconhece que essa foi a sua primeira tentativa de aplicar esse método, e que se interessou pelo caso ao tomar conhecimento da riqueza dos sintomas apresentados pela doente, bem como das qualidades da personalidade dela. Quando soube que Emmy Von N. poderia ser facilmente hipnotizada, resolveu testar o método catártico. Percebe-se que Freud está testando o potencial de influência da sugestão durante a hipnose, porém também faz esse mesmo teste sem que a paciente tenha sido hipnotizada.

Emmy Von N. transitava entre dois estados psíquicos, o estado normal de consciência e o outro estado, em que se manifestavam delírios. Estava evidente a manifestação de uma “condição secundária”, ou seja, outro estado de consciência que não o da consciência normal da vida de vigília. Ela apresentava, além de delírios relacionados a aspectos fóbicos, um tique que incluía uma estalada peculiar da boca, gagueira espástica, interrupções da continuidade da fala, quando então o seu rosto denunciava horror e nojo, ao tempo que estendia a mão em direção ao interlocutor, abrindo e entortando os dedos, para finalmente exclamar com voz alterada carregada de sentimento de medo: “Fique quieto! – Não diga nada! – Não me toque!”. Manifestava, também, frequentes movimentos convulsivos semelhantes a tiques no rosto e nos músculos do pescoço. Em seus delírios estavam presentes referências a animais que lhe causavam aversão e conteúdos persecutórios. Contudo, as pessoas próximas não sabiam de sua doença, pois a paciente conseguia, em seu estado de consciência dito normal, dar conta dos requisitos sociais que lhe eram impostos por ser proprietária de um importante sistema industrial.

Além de testar com Frau Emmy as possibilidades da sugestão, Freud procura realizar o que denomina análise dos sintomas e dos eventos traumáticos; para isso, relaciona-os a passagens da vida de sua paciente. Nesse procedimento, evidenciam-se os esforços de Freud visando influenciar a doente para que “esqueça” certos fatos que a perturbaram emocionalmente, depois de haver, junto a ela, analisado as relações entre eventos ou o impacto de outros eventos em sua vida.

A terapêutica empregada consiste em hipnotizar e, então, realizar perguntas cujas respostas permitam relacionar os sintomas a eventos traumáticos e fazer sugestões à paciente para que deixe de sentir como danosas certas lembranças, ou “esquecê-las”, ou mudar seu significado, bem como fazer sugestões de mudanças comportamentais.

Deve ser ressaltado que, após um período inicial de tratamento de aproximadamente sete semanas, a paciente afirmou sentir-se bem, mas queixou-se de certa amnésia. Cabe a hipótese de que essa amnésia decorreu das tentativas de Freud no sentido de induzi-la a esquecer ou modificar suas lembranças, e que essa consequência pode ter influenciado o pai da Psicanálise a, mais tarde, descartar o uso da sugestão como técnica de tratamento.

Percebe-se que as sugestões nem sempre eram suficientemente atuantes ou persistentes. Freud notou que, quando era pequena a relação entre a reminiscência dos fatos comunicados pela paciente e o evento traumático, ou quando era reduzida a influência do evento original para a formação do sintoma, a sugestão exigia pouco esforço. Contudo, quanto maior era a influência do trauma, mais difícil que a sugestão levasse a mudanças.

Fica evidenciado, para Freud, que é mais fácil ir reduzindo quantidades importantes de sintomas quando se trabalha inicialmente com os sintomas que mantêm menor relação com o evento traumático, que estão mais afastados do núcleo patogênico. A terapêutica é delineada como processo de “limpeza” gradativa e crescente – em termos de importância dos sintomas –, eliminando os sintomas superpostos uns aos outros desde os menos importantes, também mais periféricos em relação ao núcleo patogênico. Nota-se que a retirada de sintomas vai se tornando dificultada à medida que o processo de “limpeza” se aproxima do núcleo patogênico e, portanto, a gradativa aproximação ao núcleo patogênico começa a ser vislumbrada como relevante.

Na análise dos conteúdos da paciente, ele verificou que os sintomas decorriam de eventos ocorridos na infância e na adolescência, quando sofrera sustos fóbicos [por exemplo, quando seus irmãos lhe atiravam pequenos animais], mas também estavam presentes eventos de sua vida adulta, como a morte inesperada e repentina de seu marido e as perseguições maldosas dos parentes dele após sua morte. Ficou evidente, também, que Emmy Von N. era facilmente influenciável e que isso estaria presente em sua constituição psíquica, devendo ser considerado um fator etiológico relevante na formação de seus sintomas fóbicos. Ela estaria muito sujeita aos estados hipnoides que promovem a histeria disposicional.

O comportamento da paciente na vida de vigília era influenciado pelas ocorrências presentes na vida de sonambulismo. Esta constatação é indicativa de que a separação entre os estados psíquicos – hipnoide e de normalidade – não é total. Freud notou que, enquanto a paciente ainda não havia conseguido reconhecer toda a profundidade e amplitude de um evento traumático específico, o que era feito por meio da análise dos conteúdos em estado de sonambulismo [hipnose], a sugestão dada para que o sintoma desaparecesse tinha pouca eficácia. Concluiu, assim, que a eficácia da sugestão decorre de dois fatores: a) baixa interrelação entre o sintoma e o evento traumático; e b) análise suficientemente completa de um conteúdo traumático de modo a poder, por sugestão, excluir totalmente a ligação entre os dois.

Esteve presente em todo o atendimento, como fator importante a ser considerado, a abstinência sexual de Emmy Von N., viúva que era, que recusava a possibilidade de casamento com quaisquer pretendentes, pois temia que estivessem interessados em sua riqueza. Contudo, devido à sua ainda relativa inexperiência com a etiologia das neuroses, Freud não soube colocar na análise as questões da sexualidade na medida da relevância que essa temática teria em sua obra posterior. Em uma nota de pé de página, escreve que a própria paciente reconhece o êxito apenas parcial na eliminação dos sintomas de gagueira e do estalido e que continuava a manifestar esses sintomas sempre que se assustava. Essa condição decorreria da vinculação desses sintomas não somente aos traumas iniciais, mas também a uma série de outras lembranças associadas, presentes em diversas ocorrências, que deixaram de ser “apagadas” por meio de sugestões.

No relato do caso Emmy Von N. surge a primeira referência ao que seria, depois, reconhecido como o método de associação livre, pois a paciente demonstrava algumas vezes, em estado de sonambulismo, rejeição às imposições de que falasse de um tema que a Freud interessasse em sua pesquisa da doença. Ela, então, demonstrava que queria dizer algo relacionado ao que estava dizendo antes e não o que ele desejava. Se Freud insistia em negar-lhe seguir por essa associação, ela se apresentava profundamente afetada nas sessões seguintes, demonstrando medo e ansiedade. Se, por outro lado, ele lhe permitia seguir em suas associações livremente, ela apresentava melhoras interessantes, por ter liberado por meio das palavras aquilo que a incomodava e isto facilitava depois o cumprimento de sugestões.

 

SENHORITA [MISS] LUCY R., 30 ANOS (FREUD)

Tratamento iniciado no final do ano de 1892, perdurando no primeiro semestre de 1893. A paciente, inglesa, era governanta [babá] das duas filhas de um senhor viúvo, importante diretor industrial em uma empresa perto de Viena, na Áustria. Ela trazia o histórico de rinite supurativa cronicamente recorrente, que vinha sendo tratada por um médico conhecido de Freud. O surgimento de outros sintomas associados à rinite levou à suposição de um quadro de histeria.

Lucy havia perdido completamente o sentido do olfato, mas era perseguida por duas sensações olfativas subjetivas, uma de ser “tomada por cheiro de pudim queimado” e outra de ser “tomada por cheiro de charuto”. Também apresentava fadiga, queixava-se de peso na cabeça, pouco apetite e perda de eficiência; relatou também passar por uma depressão.

Freud considerou que as alucinações olfativas deviam estar relacionadas a algum fato do passado e que, em conjunto com a depressão, poderiam equivaler a um ataque histérico. Ao estar a paciente sofrendo de rinite supurativa, a sua atenção estaria concentrada no nariz e em suas sensações, estabelecendo-se, desse modo, um canal para o surgimento dos sintomas da histeria de caráter olfativo.

O tratamento de Lucy diferenciou-se em aspectos importantes dos procedimentos previstos para o Método Catártico. Primeiramente, porque não foi possível manter uma agenda com datas e horários fixos, pois a paciente vinha ao consultório quando isso se tornava possível e, em cada vez, por pouco tempo. Além disso, Lucy não era hipnotizável, pelo menos por Freud. Assim, em lugar de sessões de hipnose, ocorriam “conversas”, com o intento de analisar a relação dos sintomas com eventos da vida dela. As “conversas” tinham duração variada e eram interrompidas para uma retomada em outro momento possível. O tratamento foi curto, tendo durado apenas alguns meses.

O caso Lucy foi um daqueles em que Freud teve que atuar sem recorrer à hipnose. Nesses casos, o Método Catártico estava sendo adaptado, e ele recorria a procedimentos que facilitassem um estado de relaxamento que permitisse à paciente voltar o foco para a sua concentração mental. Nesse modo de atuar, o paciente deitava-se no divã, permanecendo com os seus olhos fechados, e lhe era pedido que realizasse uma “concentração” na busca de respostas para as questões colocadas pelo psicoterapeuta, que estava procurando informações [do paciente] para realizar o que já recebia de Freud o nome “análise”. Surge a discussão sobre a efetividade da hipnose, pois há pacientes que não se consegue hipnotizar e há profissionais que não obtêm o mesmo sucesso que outros no intento de hipnotizar certos ou quaisquer pacientes. Outro hipnotizador – Bernheim – também não conseguiu hipnotizar uma paciente de Freud.

Na apresentação do caso Lucy, Freud reconhece que ficava incomodado com a resistência de alguns pacientes quando realizava os testes visando saber se estavam hipnotizados e em qual grau, bem como ao proferir asseguramentos e ordens tais como “Você vai dormir… durma!”, e de ouvir em resposta: “Mas doutor, eu não estou dormindo”. A opinião corrente de que sem a hipnose não seria possível induzir o paciente a lembrar-se de acontecimentos “esquecidos” foi superada neste caso. (...)

A técnica da pressão (utilizada por Freud como forma alternativa à hipnose, ou como semi-hipnose) consistia em apor uma ou ambas as mãos sobre a cabeça do paciente e solicitar-lhe entrar em contato com suas “lembranças esquecidas”. Freud a aplica quando a hipnose não é viável, como meio auxiliar para induzir o paciente a “lembrar” de algo que não lhe vinha à memória ou que, em certo sentido, não tinha a intenção de relatar.

Ele induziu Lucy a encontrar suas lembranças relativas ao cheiro de pudim queimado e ela recordou um evento traumático sobre uma carta recebida de sua mãe enquanto preparava, com as crianças (que cuidava, como babá), um pudim que queimou; disse, ainda, que as crianças demonstraram afeto por ela. Relatou que decidira deixar o emprego por não suportar ficar naquela casa, pois as colegas de trabalho pareciam pensar que ela estava se colocando acima de seu lugar, e se aliaram numa intriga contra ela junto ao avô das crianças. Disse, então, que não obteve apoio do patrão nem do avô das crianças.

Depois disso, o cheiro de pudim queimado tornou-se menos frequente e mais fraco, mas não desapareceu. A persistência desse símbolo mnêmico (...) levou Freud à suspeita de que, além da cena principal relativa ao trauma, o cheiro de pudim queimado se havia ligado às representações de numerosos traumas secundários de caráter associado, o que levou essa análise a trilhar um caminho em busca de alguma coisa que pudesse ter relação com o pudim queimado; chegou se ao atrito doméstico, ao comportamento do avô e assim por diante. Gradativamente, o cheiro de pudim queimado foi-se desfazendo.

Desaparecido o cheiro de pudim queimado, Lucy passou a se referir ao cheiro de charuto. A origem desse cheiro era relativa a uma cena em que o patrão de Lucy advertira seu contador porque este tentara beijar as crianças e o ambiente estava impregnado de cheiro de charuto.

Lucy melhorou, mas não completamente, e Freud desconfiou da existência de um evento traumático mais antigo. Induziu Lucy, usando a técnica da pressão, a buscá-lo em sua memória e ela recordou que, antes dos eventos já relatados, sentira-se agredida por meio de palavras pelo patrão, reconhecido como o homem que ela desejava [o pai das crianças]. Ele a teria admoestado por não ter evitado que uma senhora beijasse as crianças. Esse evento, com carga de afeto mais intensa que as demais, foi reconhecido como o trauma original, e então Lucy pôde considerar-se curada.

Assim, surgem as evidências da sequência dos eventos traumáticos, confirmando-se uma sequência em que os dois eventos inicialmente lembrados, relativos ao cheiro de pudim queimado e ao de charuto, ocorreram em tempo posterior ao primeiro da série de três [pois o primeiro é relativo à agressão do patrão] e foram associados sequencialmente a esse primeiro. Portanto, no tratamento, as primeiras lembranças vêm dos traumas auxiliares, eventos posteriores ao trauma original, enquanto o trauma inicial [neste caso, a admoestação do patrão] é lembrado por último.

Abordando a resistência de Lucy em reconhecer que estava apaixonada pelo patrão, Freud relata que perguntou: “Mas, se você sabia que amava seu patrão, por que não me disse?”. Sua resposta foi: “Não sabia… ou melhor, não queria saber. Queria tirar isso de minha cabeça e não pensar mais no assunto, e creio que tenho conseguido isso nos últimos tempos”.

Surge o conceito de sobredeterminação [Überdeterminierung]. Supondo a existência de um centro na topologia de um núcleo patogênico psíquico, Freud propõe que em seu entorno se estabelecem novas experiências; dentre elas, algumas conseguem, de algum modo, relacionar-se ao evento traumático inicial. Assim, forma-se uma sequência de eventos auxiliares que se ligam ao trauma original. No caso de Lucy, o núcleo patogênico inicial seria a admoestação de caráter agressivo que lhe fizera seu patrão, a quem ela desejava, e haveria dois eventos auxiliares, os relativos aos dois cheiros. Uma condição essencial deve ter sido preenchida: uma representação deve ter sido intencionalmente recalcada da consciência e excluída da possibilidade de modificações associativas.

Esse recalcamento intencional constitui também a base para a conversão total ou parcial da soma de excitação em um sintoma no corpo. A base do próprio recalcamento é constituída por uma sensação de desprazer, que decorre da incompatibilidade entre uma representação isolada a ser recalcada e o restante das representações que constituem o Eu. A representação recalcada, ao não poder associar-se com outras representações do Eu, e ao gerar tensão psíquica, segue um caminho errado que lhe possibilita direcionar-se para o corpo, externamente ao que seria o aparelho psíquico. Surge o sintoma histérico por inervação somática, em decorrência da transposição da energia psíquica para o corpo.

Essas qualidades da histeria a caracterizam como um método de defesa psíquica que utiliza a conversão da excitação psíquica, tornando-se uma inervação somática [deslocamento para o corpo] como modo de negar o reconhecimento, pelo Eu, da ideia incompatível. O corpo sofre em nome da consciência que se protege. Obtém sucesso por forçar a ideia incompatível para fora do Eu consciente, para o corpo. Em troca, a consciência guarda a reminiscência [no caso, as sensações olfativas de Lucy] e o sofrimento da pessoa decorre do afeto que se acha ligado àquela reminiscência. A incompatibilidade existente na ideia, devido à necessidade de evitar o afeto, não é mais percebida, pois a conversão no corpo substitui a ideia rejeitada. Assim, o recalque atua na histeria e pode-se afirmar que a histeria representa um ato de covardia moral, mas também uma medida defensiva à disposição do Eu, pois em certas situações e/ou condições há vantagem para o psiquismo em rechaçar alguma coisa por esse mecanismo.

A histeria de Lucy seria do tipo adquirida. Lembra Freud que, em tais casos, é importante considerar a natureza do trauma em conjunto com a reação do sujeito ao mesmo. Ele ressalta certas características do caso: a) presença de sentimento que precisa ser negado; b) temor da crítica a esse sentimento; e c) a importância que pode ter a descoberta de que se é rejeitado pela pessoa desejada. Para ele, esse conjunto indica a importância patogênica de uma ideia que precisa ser recusada e conclui que, para a aquisição da histeria, é condição necessária que esteja presente o desenvolvimento de uma incompatibilidade entre o Eu e uma ideia a ele apresentada. No caso de Lucy, a incompatibilidade surgiu depois que ela criara uma ideia de casamento com seu patrão. Ocorreu que, durante uma conversa com seu patrão, ele fora extremamente amável, demonstrando confiança em Lucy. Daí decorreu sua idealização quanto a realizar com ele o desejo relativo ao casamento, o que incluiria assumir a função materna de suas filhas. Contudo, foram lhe sendo apresentadas, sequencialmente, diversas evidências de que seu desejo não poderia ser realizado; nesse sentido contribuíram as zombarias e críticas de suas colegas, a falta de apoio dos homens da casa e as cenas em que seu patrão demonstrara não ser afável como ela supunha anteriormente.

O momento traumático real é aquele em que a incompatibilidade se impõe sobre o Eu e esse Eu decide repudiar a ideia incompatível, a qual não é aniquilada por tal repúdio, mas apenas recalcada para o Inconsciente. Quando esse processo ocorre pela primeira vez, começa a existir um núcleo e centro de cristalização para a formação de um grupo psíquico separado do Eu, em torno do qual tudo o que implica a aceitação da ideia inaceitável passa a se reunir, formando o núcleo patogênico. Nesses casos, a divisão da consciência é, talvez, intencional. Pelo menos, é muitas vezes introduzida por um ato de vontade, mas o resultado real é diferente do pretendido pelo indivíduo. Ele deseja eliminar uma ideia, como se jamais tivesse surgido, mas só consegue isolá-la psiquicamente e, consequentemente, passa a conviver com sintomas no corpo.

Este caso apresenta características importantes para o aprofundamento do conceito de recalque, pois fica evidenciado que o trauma original da moça ocorreu quando já era uma jovem adulta e, portanto, já saíra do período relativo ao desenvolvimento psicossexual infantil. Apresentava-se uma ideia com forte carga de afeto que precisava ser rechaçada por ser intolerável.

 

KATHARINA (FREUD)

Atendimento que ocorreu em alguma data entre o início dos estudos de Freud sobre hipnose e a época em que considerava a hipnose o caminho ideal de acesso ao Inconsciente, certamente antes de 1895. Este relato é incluído entre os casos clínicos, embora se refira mais a uma “entrevista ou conversa” que Freud teve com uma moça de 18 anos que o procurou durante as suas férias nos Alpes. Fica evidenciado que não houve condições e/ou necessidade de seguir detalhadamente os procedimentos do Método Catártico e que não foi aplicada a hipnose.

Essa moça, de nome Katharina, seria sobrinha da dona da estalagem em que Freud se alojara e trouxe a ele o relato de sintomas que foram considerados histéricos. Ela sentia falta de ar, o que acontecia repentinamente depois de sentir alguma coisa pressionando os seus olhos, quando sua cabeça ficava pesada e ouvia um zumbido desagradável, ficando tonta; sentia no peito uma pressão, como se algo o estivesse esmagando, sentia apertos na garganta e marteladas na cabeça; nisso, ficava assustada, temendo morrer. Simultaneamente, tinha a sensação de que alguém, com um rosto medonho, a seguia para agarrá-la, olhando-a de um modo terrível.

O autor se vale do relato dessa entrevista fortuita para discutir a origem da histeria a partir do trauma psíquico decorrente de acontecimentos de cunho sexual que o consciente do indivíduo não reconhece, os quais, na maturidade, passam a pressionar o consciente e, por isso, são mantidos recalcados.

No caso em pauta, a jovem teria sido assediada sexualmente por seu tio aos 14 anos de idade e, depois desse evento que ela não valorizou e “esqueceu”, por não ter conhecimento suficiente sobre sexualidade, teriam ocorrido outras tentativas de assédio sexual de seu tio que ela também não teria reconhecido como tais. Contudo, posteriormente, aos 16 anos de idade, ela assistiu a um encontro sexual entre uma de suas primas e seu tio, cena essa que ficara parcialmente incompreensível para ela. A essa cena seguiram-se outras, indicativas de encontros sexuais dele com a prima. Essa sequência de cenas sexuais deu sentido à cena traumática original, de quando ela tinha 14 anos e sentira em seu corpo o contato do pênis, pois compreendeu, ao ver os dois em encontros sexuais, o que seu tio tentara com ela. Katharina contou a sua tia sobre os encontros entre o tio e a prima e, em decorrência, ocorreu o divórcio deles. Deve-se ressaltar que, durante um tempo, o seu tio a perseguira com acusações de ser responsável pelo divórcio, o que se transformou em alucinação de uma cabeça perseguidora em seus conteúdos paranoicos.

Freud escondeu dos leitores, quando da primeira publicação do texto, que o assediador era o próprio pai de Katharina. Preferiu dizer que se tratava de um tio e que a moça morava com seus tios e primos. Trinta anos mais tarde, em 1924, esclareceu, em uma nota de pé de página, que o assediador era o próprio pai da moça e pode-se colocar em dúvida se a suposta prima não seria irmã dela, outra filha do pai de Katharina. Nessa nota percebe-se que o autor se recrimina por haver omitido essa informação e defende a importância de haver fidelidade nos relatos de casos clínicos, naquilo que é essencial à sua compreensão e adequada análise.

Quando discute o caso, apresenta-o como de histeria adquirida, havendo eventos traumáticos e eventos auxiliares na formação dos sintomas, e estabelece a possibilidade de que “em lugar de um ato de vontade do Eu contrário à consciência de um evento traumático, seria possível existir uma condição de ignorância do Eu, quando este ainda nada sabe sobre a sexualidade”. Afirma, também, que em outros casos de histéricas foi possível verificar a mesma condição, ou seja, um evento que seria traumático em si mesmo não teria provocado os sintomas e que, nesses casos, os sintomas histéricos irromperam somente a partir da nova ocorrência traumática, que deu sentido ao evento traumático original, quando já havia maior capacidade de reconhecimento do que se passara. Fundado no pensamento de Charcot, Freud conjetura que o intervalo entre os dois episódios corresponderia ao que seria o “período de elaboração psíquica” que redundaria na histeria.

Pode-se, considerando essa sequência no estabelecimento do quadro histérico, aceitar a hipótese do trauma em dois tempos. A formação do quadro que possibilita o surgimento de histeria ocorreria em sentido progressivo na sequência histórica dos eventos, sendo requerido que um segundo evento adquira a condição de traumático, por trazer a elucidação de um evento anterior, ou primeiro, que não foi levado adequadamente em conta. Poder-se-ia denominar esse processo como “trauma em dois tempos”. Por outro lado, a análise se daria em sentido regressivo, ou contrário, começando da condição atual do paciente, com os relatos dos eventos mais recentes sobre sintomas e cenas, portanto um relato relativo a evento auxiliar, para, posteriormente, seguindo a sua associação de ideias, chegar-se aos relatos sobre eventos que estão “cobertos” pelo sintoma primeiramente relatado. Chega-se assim, em sentido regressivo, do evento/sintoma mais recente, ao evento originário.

 

SENHORITA [FRÄULEIN] ELISABETH VON R., 24 ANOS (FREUD)

Tratamento realizado a partir do outono europeu de 1892 até alguma data antes da primavera europeia de 1894. Elisabeth se queixava de grande dor ao andar, bem como ficava cansada após algum tempo em pé. O foco das dores estava localizado em uma parte da coxa direita; a pele e os músculos eram sensíveis à pressão e aos beliscões. Freud concluiu tratar-se de histeria na medida em que os locais e a duração das dores se apresentavam indefinidos e também porque ela demonstrava prazer além de dor em seu semblante [ambivalência] ao serem pressionados sua pele ou seus músculos. Ele comenta que vislumbrava um sentido oculto na máscara que seria o rosto dela. Parecia que tinha consciência da causa de sua doença; por isso, decidiu não aplicar a hipnose, pelo menos de início.

Essa teria sido a primeira análise integral de uma histeria feita por Freud e lhe propiciou estabelecer um método regular que consistia em remover o material psíquico patogênico camada por camada, como se estivesse escavando uma cidade soterrada. Os relatos eram feitos, inicialmente, de modo consciente, sendo anotados os pontos obscuros para, depois, buscar-se informações adicionais, conscientes ou por hipnose. Ele aplica a noção de núcleo patogênico formado progressivamente – em camadas – pelo acúmulo de representações e afetos, as mais recentes ou menos inconscientes estando ligadas a outras mais antigas ou menos conscientes. Eventos auxiliares teriam contribuído para a formação progressiva do quadro complexo.

A paciente foi induzida a relatar seus cuidados ao pai doente que veio a falecer, bem como suas preocupações relativas à sua mãe, que tinha problemas de visão. Também relatou o sofrimento que lhe causara a morte prematura da irmã mais jovem, casada com um homem a quem Elisabeth amava, embora negasse esse amor durante a psicoterapia. Foi encontrada a origem da dor na coxa da paciente, ao confirmar-se que era decorrente de ela apoiar a perna de seu pai na própria perna enquanto providenciava os curativos. Os cuidados intensos e cansativos ao pai teriam facilitado o estabelecimento dos estados psíquicos favorecedores da instalação da histeria (estados hipnoides).

O método foi complementado com a aplicação da técnica da pressão na cabeça da paciente, depois que a tentativa de hipnose não teve sucesso. Foi com a técnica da pressão, que Freud obteve um encaminhamento mais promissor nesse caso, que ele considerou importante para a compreensão da histeria.

Um evento relevante refere-se ao encontro da paciente com um namorado. Na ocasião, ela teria demorado a retornar para casa e, justamente nesse tempo, teria ocorrido forte piora no quadro de saúde do pai. Depois disso, ela não mais se afastou dele até sua morte e isso ficou na base da formação do quadro de adoecimento histérico. Freud verificou que as pernas de Elisabeth “participavam da conversa” mediante a manifestação de dores típicas que ocorriam durante os relatos. Ela pôde entrar em contato com sentimentos contraditórios, envolvendo satisfação com a possibilidade de casar com seu cunhado que ficara livre desde a morte da irmã. Os eventos envolvendo o amor pelo cunhado, com a possibilidade de um prazer proibitivo ao se imaginar casando com ele, deram novo sentido às dores que estiveram presentes quando dos cuidados a seu pai, seguidos de sua morte, bem como às situações envolvendo cuidados com a sua mãe. Foram lembradas ocorrências que puderam ser associadas a movimentos corporais, como ficar em pé, andar e sentar.

Nesse caso, eventos contemporâneos contribuíam para a formação de associações com eventos “esquecidos” e a técnica da pressão permitiu a ab-reação. Freud chegou a incentivar Elisabeth a realizar certas atividades, tais como visitar o túmulo de sua irmã ou comparecer a uma festa em que estaria seu antigo namorado. Animado com os resultados, propõe que “a técnica da pressão nunca falha”, mas, depois, deixa essa perspectiva de lado. Afirma: “Os esforços do analista foram ricamente recompensados”. A esse respeito, Freud comenta que nesse caso surgiram, perante os seus olhos, as evidências que lhe permitiriam a construção de conceitos relativos ao movimento, do sujeito, de rechaçar uma representação incompatível dentro da gênese dos sintomas histéricos mediante a conversão de excitações psíquicas em algo físico e, também, sobre a formação de um grupo psíquico separado, através do ato de vontade que conduziu ao rechaço.

Em outro momento, afirma: “O resgate dessa representação recalcada teve um efeito devastador sobre a pobre moça. Ela chorou intensamente quando lhe expus secamente a situação com as palavras: ‘Quer dizer que, durante muito tempo, você esteve apaixonada por seu cunhado!’. Nesse momento, ela queixou-se de dores mais terríveis e fez um último e desesperado esforço para rejeitar a explicação: não era verdade, eu a havia induzido àquilo, não podia ser verdade, ela seria incapaz de tanta maldade, jamais poderia perdoar-se por isso”. A rejeição teve que ser trabalhada com a análise de sinais que se relacionavam a esses sentimentos de amor proibido e, com o passar do tempo, foi superada. Lembra-se ao leitor que a experiência dessa rejeição é relevante para a compreensão do conceito de resistência ao tratamento.

Elisabeth recalcou uma ideia erótica fora da consciência e transformou a carga de seu afeto em sensações físicas de dor. Além disso, a paciente estaria, durante esse tempo, em um estado psíquico peculiar favorecedor do recalque, o estado hipnoide ou crepuscular. Ela somente teria reconhecido seus sentimentos pelo cunhado em certas ocasiões esporádicas, momentaneamente, mas os teria recusado de imediato. Estabeleceu-se uma divisão da consciência [dupla consciência], tendo por motivo a defesa psíquica – a recusa por parte de todo o Eu da paciente de chegar a um acordo com esse grupo representativo em separado. Esse grupo constituiu a base do mecanismo de conversão, com a substituição das dores psíquicas por dores no corpo que representavam o sofrimento psíquico.

O autor ainda coloca em discussão, nessa análise, a relevância da simbolização, que ocupa lugar importante na definição de sintomas. Apresenta o exemplo da paciente Caecilie M, que afirmou: “Foi como uma bofetada no rosto”, referindo-se a uma injúria do marido. Tratou-se de uma manifestação do marido que teve o impacto que teria uma bofetada, que evidentemente não foi dada; mas a “bofetada não dada” causou nessa paciente uma nevralgia em seu rosto; esta desapareceu temporariamente após essa ab-reação, e em definitivo na medida de outras ab-reações de conteúdos associados à primeira simbolização.

O texto “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar” é incluído em 1895 no livro “Estudos sobre histeria”. Breuer inclui nessa mesma obra o texto “Considerações teóricas”, enquanto Freud inclui o texto “A psicoterapia da histeria”. “Estudos sobre histeria” constitui um marco na passagem do conhecimento científico disponível até então para o tratamento das neuroses em direção à estruturação da Psicanálise, pois estabelece as bases teóricas originais do estudo do Inconsciente, embora a Psicanálise ainda não existisse.

RANDT, Juan Adolfo. A psicanálise de Freud explicada. São Paulo: Zagodoni Editora, 2017. p. 17 a 41.

 

 

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