Módulo 53

 IDENTIFICAÇÃO




Processo psicológico pelo qual um sujeito assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo desse outro. A personalidade constitui-se e diferencia-se por uma série de identificações. (...)

Na obra de Freud, o conceito de identificação assumiu progressivamente o valor central que faz dela, mais do que um mecanismo psicológico entre outros, a operação pela qual o sujeito humano se constitui. Essa evolução tem relação direta principalmente com a colocação em primeiro plano do complexo de Édipo em seus efeitos estruturais, e também com a remodelação introduzida pela segunda teoria do aparelho psíquico, em que as instâncias que se diferenciam a partir do id são especificadas pelas identificações de que derivam.

No entanto, a identificação tinha sido desde muito cedo invocada por Freud, principalmente a propósito dos sintomas histéricos. É certo que os chamados fatos de imitação, de contágio mental, eram conhecidos de longa data, mas Freud vai mais longe explicando-os pela existência de um elemento inconsciente comum às pessoas em causa: “a identificação não é simples imitação, mas apropriação baseada na pretensão a uma etiologia comum; ela exprime um ‘tudo como se’ e relaciona-se com um elemento comum que permanece no inconsciente”. Este elemento comum é uma fantasia; assim, o agoráfobo identifica-se inconscientemente com uma “mulher da rua” e o seu sintoma é uma defesa contra esta identificação e contra o desejo sexual que ela supõe. Por fim, Freud observa desde cedo que podem coexistir várias identificações: “o fato da identificação autoriza talvez um emprego literal da expressão ‘pluralidade das pessoas psíquicas’”.

Ulteriormente, o conceito de identificação é enriquecido por diversas contribuições:

1. A noção de incorporação oral é isolada nos anos 1912-15 (Totem e tabu [Totem und Tabu], Luto e melancolia [Trauer und Melancholie]). Freud mostra o papel desta principalmente na melancolia, em que o sujeito se identifica no modo oral com o objeto perdido, por regressão à relação de objeto característica da fase oral.

2. A noção de narcisismo é circunscrita. Em Sobre o narcisismo: uma introdução (Zur Einführung des Narzissmus, 1914) Freud esboça a dialética que liga a escolha narcísica de objeto (o objeto é escolhido segundo o modelo da própria pessoa) à identificação (o sujeito, ou qualquer das suas instâncias, é constituído segundo o modelo dos seus objetos anteriores: pais, pessoas do seu meio).

3. Os efeitos do complexo de Édipo sobre a estruturação do sujeito são descritos em termos de identificação: os investimentos nos pais são abandonados e substituídos por identificações.

Uma vez destacada a fórmula generalizada do Édipo, Freud mostra que essas identificações formam uma estrutura complexa na medida em que o pai e a mãe são, cada um por sua vez, objeto de amor e de rivalidade. Aliás, é provável que esta presença de uma ambivalência em relação ao objeto seja essencial à constituição de qualquer identificação.

4. A elaboração da segunda teoria do aparelho psíquico vem testemunhar o enriquecimento e a importância crescente da noção de identificação: as instâncias da pessoa já não são descritas em termos de sistemas em que se inscrevem imagens, recordações, “conteúdos” psíquicos, mas como resquícios, sob diversas modalidades, das relações de objeto. (...)

Em Psicologia de grupo e análise do ego (Massenpsychologie und Ich-Analyse, 1921) (...), o estudo da hipnose, da paixão amorosa e da psicologia dos grupos leva (...) Freud (...) a opor a identificação que constitui ou enriquece uma instância da personalidade ao processo inverso, em que o objeto é “posto no lugar” de uma instância, como por exemplo o caso do líder que substitui o ideal do ego dos membros de um grupo. (...) A função do ideal do ego é colocada em primeiro plano. Freud vê nele uma formação nitidamente diferenciada do ego, que permite principalmente explicar a fascinação amorosa, a dependência para com o hipnotizador e a submissão ao líder, casos em que uma pessoa estranha é colocada pelo sujeito no lugar do seu ideal do ego.

Esse processo está na base da constituição do grupo humano. O ideal coletivo retira a sua eficácia de uma convergência dos “ideais do ego” individuais: “... certos indivíduos puseram um só e mesmo objeto no lugar do seu ideal do ego, e em consequência disso identificaram-se uns com os outros no seu ego”, inversamente, estes são os depositários, em consequência de identificações com os pais, com os educadores, etc., de um certo número de ideais coletivos: “Cada indivíduo faz parte de vários grupos, está ligado por identificação de vários lados e construiu o seu ideal do ego segundo os mais diversos modelos.”

Em O ego e o id, em que pela primeira vez figura o termo superego, este é considerado sinônimo de ideal do ego; é uma só instância, formada por identificação com os pais correlativamente ao declínio do Édipo, que reúne as funções de interdição e de ideal. “As relações [do superego] com o ego não se limitam ao preceito ‘você deve ser assim’ (como o pai); compreendem igualmente a interdição ‘você não tem o direito de ser assim’ (como o pai), quer dizer, de fazer tudo o que ele faz; há muitas coisas que são reservadas a ele.” (...)

O termo identificação deve ser diferenciado de termos próximos, como incorporação e introjeção (...). Incorporação e introjeção são protótipos da identificação ou, pelo menos, de algumas modalidades em que o processo mental é vivido e simbolizado como uma operação corporal (ingerir, devorar, guardar dentro de si, etc.). (...) De um ponto de vista puramente conceitual, podemos dizer que a identificação se faz com objetos - pessoa (“assimilação do ego a um ego estranho”), ou característica de uma pessoa, objetos parciais (...). Podemos observar que geralmente a identificação de um sujeito A com um sujeito B não é global, (...) o que remete para um determinado aspecto da relação com ele; eu não me identifico com o meu patrão, mas com determinada característica dele que está ligada à minha relação sadomasoquista com ele. Mas, por outro lado, a identificação permanece sempre marcada pelos seus protótipos primitivos: a incorporação incide em coisas, pois a relação confunde-se com o objeto em que ela encarna (...).

Por outro lado, e esse é um fato essencial, o conjunto das identificações de um sujeito forma nada menos que um sistema relacional coerente; por exemplo, no seio de uma instância como o superego, encontram-se exigências diversas, conflituais, heteróclitas. Do mesmo modo, o ideal do ego é constituído por identificações com ideais culturais não necessariamente harmonizados entre si.

LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. Verbetes Ideal do ego e Identificação São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 222, 223, 226, 227, 228, 229, 230.

 

         A identificação é um processo psíquico inconsciente pelo qual uma pessoa assimila uma parte mais ou menos importante de sua personalidade à de um outro que lhe serve de modelo. Descrito primitivamente por Freud em contextos psicopatológicos, o mecanismo da identificação veio a designar um modo primordial de relacionamento com os outros e a integrar-se entre os processos constitutivos da psique. Cumpre distinguir a identificação da imitação, que é uma abordagem voluntária e consciente.

         A noção de identificação, (...) novidade e originalidade no vocabulário científico da época, aparece pelo punho de Freud numa carta a Wilhelm Fliess de 17 de dezembro de 1896 na acepção que conservaria desde então: “Foi assim que se viu confirmada uma suspeita que eu nutria há muito tempo, uma suspeita relativa ao mecanismo da agorafobia nas mulheres. Não será difícil adivinhar do que se trata se pensares nas prostitutas. É o recalcamento da compulsão para ir buscar na rua o primeiro homem que encontrar, um sentimento de ciúme para com as prostitutas e uma identificação com elas”.

         Identificação e sintomas histéricos encontram-se então frequentemente associados nos escritos seguintes, mas a noção assume toda a sua importância em A interpretação dos sonhos (1900), mais especialmente no comentário que se segue aos sonhos da “espirituosa mulher do açougueiro”, a propósito das identificações que ela aí faz com sua amiga e presumida rival (capítulo IV) [1]. Assim, diz Freud, os pacientes podem “sofrer por toda uma multidão e desempenhar sozinhos todos todos os papéis de uma peça teatral”[2]. Segue-se a definição clássica: “Assim, a identificação não constitui uma simples imitação, mas uma assimilação à base de uma pretensão etiológica semelhante: ela exprime um ‘tudo como se’ e tem sua origem em algo de comum que persiste no inconsciente”.

Que essa “pretensão etiológica” e esse “algo em comum” sejam de ordem sexual não oferece a menor dúvida para Freud que, no Capítulo VI, completa a sua descrição ao mostrar a utilização dinâmica da identificação sob a cobertura de uma personalidade diferente ou de uma formação compósita, pelo processo da condensação e por meio de um “só traço” comum (einzige Zug), (...) para driblar a censura e realizar os desejos infantis interditados pelo sonho. A noção evoluirá pouco nos anos seguintes, e o caso Dora é um exemplo de sua utilização para expor a complexidade dos fenômenos histéricos[3].

Mas em 1909, Sándor Ferenczi reacendeu o interesse com a criação da noção aparentada de “introjeção”. Para ele, o Eu “está em perpétua busca de objetos de identificação, de transferência” e os “introjeta” para se desenvolver. O amor objetal nada mais é do que uma introjeção. A partir do ano seguinte, com o estudo sobre Leonardo da Vinci (1910), Freud caminha nesta nova direção quando escreve que o rapaz fadado para a homossexualidade “recalca seu amor pela mãe; ele próprio se coloca no lugar dela, identifica-se com ela e adota então a sua própria pessoa como o modelo à imagem e semelhança do qual escolhe os novos objetos de seu amor”.

Da mesma maneira, as identificações do “pequeno Hans” com o animal fobogênico[4], portanto, com o pai (1909), do Homem dos Ratos com o pai ou a mãe (1909), do pequeno Arpad com um galo (Ferenczi, 1913[5]) ou do Homem dos Lobos com os pais unidos na cena primitiva (1918) encontram em Totem e tabu (1912-13) o seu modelo, com a identificação com o pai morto durante a refeição totêmica. O precursor oral canibálico do mecanismo psíquico da identificação, chamado “incorporação”, está nitidamente indicado a partir de uma nota adicionada em 1915 aos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905)[6].

         Esse ano de 1915 marca sobretudo a mais importante modificação que caracteriza a noção de identificação e vai fazer dela um processo integrado na história dos vínculos libidinais que se tecem entre o Eu e o outro, inclusive no interior do próprio sujeito. Com efeito, a perda objetal de um objeto narcisicamente investido acarreta um fenômeno que Freud descreve em Luto e melancolia (1916-17) como “uma identificação do Eu com um objeto abandonado”. Cumpre assinalar um ponto importante nessa identificação, que é, nesse caso, qualificada de “melancólica”: ela deixou de ser parcial e determinada por um “traço único comum”, como era na identificação histérica, mas passou a ser total e a efetuar-se por retirada da libido que, do objeto perdido, retorna ao Eu. Ela não tardará em ser designada como “identificação narcísica” e considerada mais originária do que a outra.

         Em Psicologia de grupo e a análise do Ego (1921), um capítulo é consagrado à identificação e três modalidades aí são descritas: “primeiro, a identificação constitui a forma original de laço emocional com um objeto[7]; segundo, de maneira regressiva, ela se torna sucedâneo para uma vinculação de objeto libidinal, por assim dizer, por meio da introjeção do objeto no ego;[8] e, terceiro, pode surgir com qualquer nova percepção de uma qualidade comum partilhada com alguma outra pessoa que não é objeto de pulsões sexuais”[9].

         A primeira dessas modalidades é a ocasião escolhida por Freud para exprimir a dialética do ser e do ter que retomará ulteriormente por diversas vezes: “O menino dá mostras de um interesse particular por seu pai, gostaria de se tornar e ser como ele, tomar o seu lugar em todos os aspectos. Digamo-lo tranquilamente: ele adota seu pai como ideal”. Mas (...) no complexo de Édipo (...) pode haver também (...) investimento homossexual (do menino) por identificação com a mãe: “É fácil expressar numa fórmula a diferença entre uma tal identificação com o pai e a escolha do pai como como objeto. No primeiro caso, o pai é o que se desejaria ser; no segundo, o que se desejaria ter”. Dezessete anos mais tarde, em 12 de julho de 1938, essa oposição continuará agitar Freud, que deixará dela um breve traço: “Ter e ser nas crianças. As crianças gostam de expressar uma relação de objeto por uma identificação: ‘Eu sou o objeto’. O ter é o mais tardio dos dois; após a perda do objeto, ele recai no ser. Exemplo: o seio. O seio é uma parte de mim, eu sou o seio. Só mais tarde: ‘Eu o tenho, isto é, eu não o sou...’”

         A segunda das modalidades, assinala a substituição pela identificação de um apego erótico, ligado ao complexo de Édipo e por regressão. (...) Dora tosse como o seu objeto de amor, o pai. (...)

         A terceira das modalidades é original. Ela faz intervir a nova noção de Ideal do Eu e a encarna na pessoa do “aliciador” ou do “líder”. Essa introjeção do ideal permite a vida em sociedade a indivíduos que vão poder se identificar entre eles por um vínculo comum a um outro, em vez de se considerarem rivais a destruir: as jovens apaixonadas por um pop star não sentem ciúmes umas das outras, os partidários fascinados por um líder esquecem suas querelas e suas divergências mútuas. Um ponto é importante: a identificação não é aqui determinada pela ligação sexual que caracterizava a comunidade da identificação histérica, o que inaugura a sua utilização no estudo sociológico de grupos e de “massas”.

         Com a introdução da “mitologia” das pulsões de vida e de morte, e a descrição da segunda tópica, a noção de identificação se desenvolve em direções que vão continuar se aprofundando até aos nossos dias. A situação nodal atribuída ao complexo de Édipo leva a complicadas identificações cruzadas com cada um dos pais, as quais se fazem e se desfazem em função da pluralidade das possibilidades de evolução e dosa dados da constituição bissexual de cada um.

         Paralelamente a essas modalidades de identificação de tipo “histérico”, a identificação narcísica adquire uma importância muito especial na constituição da pessoa: “Compreendemos que tal substituição tem um papel importante na formação do Eu e contribui essencialmente para produzir aquilo a que chamamos o seu caráter”. Numerosos autores (...) chegaram a ver aí um processo formador do próprio Eu, o que podia deixar prever os comentários subsequentes de Freud sobre o necessário desinvestimento dos objetos libidinais aos quais a corrente da evolução compele o Isso a renunciar: “Talvez essa identificação seja, de um modo geral, a condição para que o Isso abandone os seus objetos (...). Quando o Eu adota os traços do objeto, ele próprio se impõe, por assim dizer, ao Isso como objeto de amor, procura ser o substituto do que foi perdido dizendo: ‘Olha, tu me podes amar também, eu sou muito parecido com o objeto’”.

         É na sequência dessas proposições que Freud vai definir o que ele chama a “identificação primária” (primäre Identifizierung), fenômeno fundador da psique humana cujo postulado representa um momento mítico bastante semelhante aos que designam as noções de narcisismo primário, de recalcamento primário ou mesmo de assassinato do pai da horda primitiva. Compreende-se a que absurdos e mal-entendidos resultaram do uso dessa mesma expressão de identificação “primária” para designar uma identificação precoce do bebê com a mãe, visto que, para Freud, se trata de uma outra coisa muito diferente (...): “Tu deves ser como teu pai”, tal é a primeira instrução identificatória que contradirá a injunção mais tardia: “Tu não tens o direito de ser como ele nem de fazer tudo que ele faz”. Pois em resposta à evolução do complexo de Édipo e do medo da castração, o Supereu vem se impor como uma introjeção do pai em seu caráter interditório, por uma retomada da identificação primária no a posteriori: “Nós dissemos e repetimos que o Eu se forma em boa parte a partir de identificações que possuem investimentos abandonados pelo Isso (...). O Supereu deve sua posição particular no Eu a um fator que deve ser apreciado de dois lados: primeiramente, trata-se da primeira identificação produzida enquanto o Eu ainda era fraco e, em segundo lugar, ele é o herdeiro do complexo de Édipo e, portanto, introduziu no Eu os objetos da mais alta importância”.

         Em Dissolução do complexo de Édipo (1924), Freud retoma a sua descrição acentuando o papel desempenhado pelo medo da castração. Por causa desse medo, escreve ele, “os investimentos de objeto são abandonados e substituídos por identificações. A autoridade do pai ou dos pais é introjetada no Eu e aí forma o núcleo do Supereu, que assume a severidade do pai e perpetua a proibição deste contra o incesto, defendendo assim o Eu do retorno do investimento libidinal. As tendências libidinais pertencentes ao complexo de Édipo são em parte dessexualizadas e sublimadas (coisa que provavelmente acontece com toda transformação em uma identificação) e em parte são inibidas em seu objetivo e transformadas em impulsos de ternura”. Vemos aqui o uso da noção de introjeção como marca de uma espécie de assimilação mais estável, menos lábil do que seriam as identificações mais ligadas às fantasias. É um desvio em relação à noção originalmente definida por Sándor Ferenczi, e um dos exemplos adicionais dos equívocos terminológicos que estorvarão a evolução da noção de identificação. Seja como for, “o Supereu conserva, por conseguinte, caracteres essenciais dos personagens introjetados, sua potência, sua severidade, sua tendência para vigiar e punir”, escreve ainda Freud em O problema econômico do masoquismo (1924).

         As últimas considerações de Freud sobre a identificação deixam perceber sua complexidade diante da complexidade dessa noção. Na XXXI das Novas conferências introdutórias... (1933), ele tenta uma vez mais, e esta será a última, introduzir um pouco de ordem nos diversos processos designados por ele como dependentes da identificação e conclui: “Eu próprio não estou satisfeito, em absoluto, com esses desenvolvimentos a respeito da identificação”.

Mas acrescenta uma observação que inaugurará a pesquisa sobre os fenômenos de transmissão entre gerações: “Via de regra, os pais, e as autoridades análogas a eles, seguem os preceitos dos seus próprios Supereus ao educar as crianças (...). Esqueceram as dificuldades de sua própria infância e agora se sentem contentes com identificar-se eles próprios, inteiramente, com seus pais, que no passado impuseram sobre eles restrições tão severas. Assim, o Supereu de uma criança é, com efeito, construído segundo o modelo não de seus pais, mas do Supereu de seus pais; os conteúdos que ele encerra são os mesmos, e torna-se veículo da tradição e de todos os duradouros julgamentos de valores que dessa forma se transmitem de geração em geração. (...) A humanidade nunca vive inteiramente no presente. O passado, a tradição da raça e do povo, vive nas ideologias do Supereu e só lentamente cede às influências do presente, no sentido de novas modificações”[10].

O próprio pai “cruel” tinha, portanto, um pai que ele tinha tomado por modelo, bem como uma mãe, e estes tiveram igualmente um pai e uma mãe... Todos os pais fazem um filho pequeno reviver o mundo da própria infância deles tal como ficou gravado no inconsciente e nas fantasias pré-conscientes de ambos, além das versões de lembranças conscientes que eles lhe comunicam ou conservam secretas. É esse universo das origens que a pulsão de investigação de cada criança explora para descobrir aí os segredos de seu nascimento e de sua identidade. Pois sua personalidade se constitui com esse material de imagens compósitas que voltarão talvez um dia para a invadir, sob a forma de “visitantes do Eu”.

A noção de identificação não deixou de suscitar numerosos trabalhos, a tal ponto ela é original e fecunda para a compreensão dos processos psíquicos normais e patológicos. Os autores pós-freudianos deram maior ênfase à situação psicanalítica, cujo estudo Freud não tinha abordado sob o ângulo da identificação, para insistir na necessidade e nos limites a estabelecer para a identificação transferencial com o seu analista, assim como para sublinhar que este último deve possuir uma certa qualidade de “empatia” (Einfühlung), essa faculdade “que desempenha o maior papel em nossa compreensão do que nas outras pessoas existe de estranho ao nosso Eu” (Psicologia das massas e análise do eu, 1921), a fim de estar apto a entender e interpretar o Inconsciente do seu analisado. A identificação com Freud, o pai fundador, se foi mais viva e a causa de numerosas querelas entre os seus contemporâneos e sucessores imediatos, nem por isso deixou de ser um dos setores vigorosos e perseverantes do “ser-analista”. As fantasias de identificação, com Freud e com personagens da “genealogia psicanalítica”, representam um dos eixos fecundos da compreensão de certas proposições teóricos e de muitos acontecimentos na história da psicanálise.

A identificação com o agressor, isolada por Anna Freud (1936), depois a identificação projetiva elaborada por Melanie Klein (1952), abriram o caminho para múltiplas descrições de modalidades identificatórias que confirmam o interesse heurístico dessa noção tão difícil de definir. A ênfase dada às relações com a mãe resultou num desvio do sentido da “identificação primária” com que Freud tinha marcado o caráter paterno-fálico e, na esteira de Edith Jacobson (1954), os autores se empenharam em apresentar essa identificação como uma relação mãe-filho arcaica pré-objetal, situada num estado de fusão/confusão entre o Self e o não-Self, e em distingui-la da noção de “imitação” adotada pelos modelos psicológicos. (...)

         O interesse dispensado pelos psicanalistas às patologias mais pesadas fez com que desviassem suas atenções para os males que atingem a identidade, quer se trate de transtornos comportamentais da adolescência ou de despersonalizações observáveis em pacientes borderlines ou psicóticos. Freud, muito antes de voltar ao problema no estudo do presidente Schreber (1912), não tinha já assinalado precocemente (carta a Wilhelm Fliess de 9 de dezembro de 1809) que “a paranoia redefine as identificações, restaura todas as figuras amadas da infância que foram abandonadas e cinde o Eu em várias personalidades estranhas”?

MIJOLLA, Alain de. Dicionário internacional de psicanálise. Vol. 1. Verbete Identificação. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. 913, 914, 915, 916 e 917.

 

         O processo de identificação é fundamental para a construção da personalidade. É por meio dele que o sujeito se constitui e se transforma ao longo da vida, formando seus padrões básicos de relação objetal que determinarão as escolhas de seus objetos de amor.

         Ferenczi definiu o processo de identificação nos seguintes termos:

“Paralelamente a essa etapa evolutiva do ego, existe um processo libidinal específico que vai integrar-se agora, enquanto fase particular do desenvolvimento, entre o narcisismo e o amor objetal (mais exatamente, entre as fases de organização oral e sádico-anal que ainda são predominantemente narcísicas e o amor objetal propriamente dito). Este processo libidinal é a identificação. No decorrer desse processo os objetos do mundo externo não são realmente ‘incorporados’ como na fase canibal, mas tão somente na imaginação, como se diz, eles são introjetados, suas propriedades são anexadas e atribuídas ao próprio ego. Ao identificar-se assim com um objeto (pessoa), cria-se de certo modo uma ponte entre o ego e o mundo externo, e esse vínculo permite em seguida deslocar a ênfase do ‘ser’ intransitivo para o ‘ter’ transitivo; portanto, permite à identificação evoluir para o verdadeiro amor objetal.” (Psicologia de grupo e análise do ego, de Freud. In: Obras completas, vol. III.  p. 195 e 196)

         A identificação consiste num processo psicológico majoritariamente inconsciente, operante desde o início da vida, no qual o sujeito assimila parcial ou totalmente aspectos, características, traços e valores de pessoas significativas de sua estreita convivência.

         O conceito de identificação é essencial à compreensão dos fenômenos ligados ao complexo de Édipo, especialmente em relação ao processo de identificação com as imagos paterna e materna, que vão definir a identidade de gênero do sujeito. (...)

         É pela introjeção da relação de autoridade das figuras parentais ambivalentemente amadas e odiadas que o sujeito formará o núcleo fundamental do superego. A partir das sucessivas identificações com essas figuras, durante todo o desenvolvimento, a personalidade individual irá se compondo, variação de saúde mental que vai desde o modo mais salutar até o mais patológico.

         A identificação é um fenômeno psicológico que se encontra também na base de todas as experiências de aprendizado, em que o aluno identifica-se com seu professor ao internalizar não apenas seus ensinamentos, mas também a relação do educador com o próprio conhecimento.

         Nos processos de formação psicanalítica, podemos observar esse mesmo fenômeno na medida em que os candidatos tendem a identificar-se com seus professores, analistas e supervisores construindo, assim sua identidade profissional. É desse modo que se forma também o superego técnico psicanalítico.

KAHTUNI, Haydée Christinne e SANCHES, Gisela Paraná. Dicionário sobre o pensamento de Sándor Ferenczi: uma contribuição à clínica psicanalítica contemporânea. Verbete: Identificação. Rio de Janeiro: Elsevier; São Paulo: FAPESP; 2009.  p. 209 e 210.



[1] A mulher do açougueiro, paciente de Freud, sonha que queria oferecer um jantar para convidados, mas não consegue, por não ter comida suficiente em casa. Apaixonada pelo marido, sente ciúmes de uma amiga que recebera elogios dele. Contudo, sente-se segura pelo fato de que o corpo muito magro da mulher não suscitava interesse no marido. Algum tempo antes do sonho, tal amiga comenta que gostaria de jantar com o casal. Segundo Freud, o sonho realiza o desejo de não ter a amiga “rival” por perto, e não “alimentá-la” para que não engorde. Ao mesmo tempo, Freud sugere que a sua paciente havia se identificado com a amiga, pois desejava também possuir as outras características da moça que eram elogiadas pelo marido. Tal identificação faz com que o sonho torne-se uma manifestação de desejo, mas apenas indireta: o sonho assume a forma de “frustração”, pois a paciente de Freud (que é também a amiga, através do processo de identificação) sente-se “frustrada” por não conseguir oferecer o jantar.

[2] Tal comentário de Freud, formulado em sua explanação sobre o “contágio psíquico” de sintomas, tão comum na histeria, acena também para uma experiência frequente do leitor de romances, ou expectador de filmes e peças: sua identificação simultânea com diversos personagens.

[3] A identificação de Dora com o pai manifesta-se unicamente na maneira semelhante de tossir.

[4] Fobogênico: que provoca fobia. Era o cavalo, para o “pequeno Hans”, ou o galo para Arpad.

[5] Em Um pequeno homem-galo (Vol. II das Obras completas), Ferenczi descreve o menino Arpad, obcecado imitador de galos, e ao mesmo tempo fóbico diante do animal. Em uma determinada viagem, o menino tinha fantasiado que um galo havia atacado seu órgão genital. Ao mesmo tempo, suas atividades masturbatórias precoces eram duramente repreendidas pelo seu pai. Segundo Ferenczi, a ambivalência dos sentimentos do menino pelos galos (amor, ódio e medo) eram semelhantes aos sentimentos contraditórios que sentia pelo pai, de quem temia a castração.

[6] “Chamaremos de pré-genitais as organizações da vida sexual em que as zonas genitais ainda não assumiram o papel predominante. (...) A primeira de tais organizações sexuais pré-genitais é a oral ou, se assim preferirmos, canibal. Nela a atividade sexual ainda não se encontra separada da ingestão de alimentos, correntes opostas ainda não estão diferenciadas em seu interior. O objeto das duas atividades é o mesmo, a meta sexual consiste na incorporação do objeto, no modelo daquilo que depois terá, como identificação, um papel psíquico relevante. Um resíduo dessa fase de organização que a patologia nos leva a supor pode ser o ato de chupar o dedo, no qual a atividade sexual, desprendida da atividade da alimentação, trocou o objeto externo por um do próprio corpo”. FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Obras completas, volume 6. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 108.

[7] Trata-se da “identificação primária”, que será exposta de maneira mais minuciosa abaixo. Trata-se de uma identificação que antecede a “relação objetal” propriamente dita, partindo de uma incorporação “canibálica” do pai (por ocasião do complexo de Édipo normal do menino, em Freud) ou da mãe (em todos os seres humanos, na psicanálise pós-freudiana).

[8] Trata-se de uma identificação que sucede o investimento libidinal objetal, uma “identificação secundária”, seja por causa da perda do objeto (como ocorre, por exemplo, na melancolia), seja como uma regressão identificatória provocada pelo recalque do investimento libidinal (como ocorre, por exemplo, no adolescente masculino identificando-se com a mãe antes desejada e assumindo, portanto, a orientação homossexual).

[9] Trata-se de uma identificação parcial, que não envolve um investimento libidinal mais intenso. Compartilha-se com o outro, por exemplo, apenas um comportamento; no caso muito comum dos processos de “contágio histérico”, compartilha-se apenas um sintoma. Para Freud, a vida comunal nasce de processos de identificação deste tipo: todos os membros do grupo identificam-se por compartilharem, por exemplo, valores comuns ou o mesmo líder.

[10] “Transgeracionalidade” é um termo bastante empregado na psicanálise contemporânea. Representações inconscientes - traumas, fantasias, prescrições morais, ideais, conflitos etc. - das antigas gerações são legadas e transmitidas para as gerações atuais. A transmissão ocorre por meio de identificações inconscientes com pais e cuidadores. Assim, todo este passado torna-se um “enigma” que, caso não seja resolvido (relembrado, conscientizado), continua a se propagar para as gerações seguintes.


IDENTIFICAÇÃO PRIMÁRIA

 

Modo primitivo de constituição do sujeito segundo o modelo do outro, que não é secundário a uma relação previamente estabelecida em que o objeto seria inicialmente colocado como independente. A identificação primária está em estreita correlação com a chamada relação de incorporação oral.

Embora faça agora parte da terminologia analítica, a noção de identificação primária reveste-se de acepções muito diferentes conforme as reconstruções feitas pelos autores dos primeiros tempos da existência individual.

A identificação primária opõe-se às identificações secundárias que vêm se sobrepor a ela, não apenas na medida em que ela é a primeira cronologicamente, mas também na medida em que não se teria estabelecido consecutivamente a uma relação de objeto propriamente dita e seria “a forma mais originária do laço afetivo com um objeto”. “Logo no início da fase oral primitiva do indivíduo, o investimento de objeto e a identificação talvez não se devam distinguir um da outra.”

Esta modalidade do laço da criança com outra pessoa foi descrita principalmente como primeira relação com a mãe, antes da diferenciação entre ego e alter ego estabelecer-se solidamente. Esta relação seria evidentemente marcada pelo processo da incorporação. Convém, no entanto, notar que, a rigor, é difícil ligar a identificação primária a um estado absolutamente indiferenciado e anobjetal.

É interessante notar que Freud, que aliás só raramente usa a expressão identificação primária, designa assim uma identificação com o pai “da pré-história pessoal”, tomado pelo menino como ideal ou protótipo (Vorbild). Tratar-se-ia “de uma identificação direta e imediata que se situa anteriormente a qualquer investimento de objeto”.

 LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. Verbete: Identificação primária. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 231 e 232.


IDENTIFICAÇÃO COM O AGRESSOR

 

Anna Freud foi a primeira a descrever a identificação com o agressor em seu livro O ego e os mecanismos de defesa, publicado inicialmente em alemão (1936). (...)

Anna Freud (...) sublinhou (...) como (...) a identificação com o agressor chama a atenção para uma fase particular no desenvolvimento do funcionamento do Supereu. Com efeito, embora a crítica exterior tenha sido introjetada, a ligação entre o medo de punição e a falta cometida ainda não está estabelecida no espírito do paciente. Tão logo a crítica é interiorizada, a falta é, portanto, exteriorizada – segundo uma manobra que envolve um outro mecanismo, a projeção da culpa. De acordo com a fórmula de Anna Freud, a intolerância com os outros precede a severidade em relação a si mesmo.

MIJOLLA, Alain de. Dicionário internacional de psicanálise. Vol. 1. Verbete Identificação com o agressor. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. 920.

 

Mecanismo de defesa isolado e descrito por Anna Freud (1936). O sujeito, confrontado com um perigo exterior (representado tipicamente por uma crítica emanada de uma autoridade), identifica-se com o seu agressor, ou assumindo por sua própria conta a agressão enquanto tal, ou imitando física ou moralmente a pessoa do agressor, ou adotando certos símbolos de poder que o caracterizam. Segundo Anna Freud, esse mecanismo seria predominante na construção da fase preliminar do superego, pois a agressão mantém-se então dirigida para o exterior e não se voltou ainda contra o sujeito sob a forma de autocrítica.

A expressão identificação com o agressor não figura nos escritos de Freud, mas houve quem observasse que ele descreveu o seu mecanismo, particularmente a propósito de certas brincadeiras de criança, no capítulo III de Além do princípio do prazer (Jenseits des Lustprinzips, 1920). Ferenczi recorre à expressão identificação com o agressor num sentido muito especial: a agressão considerada é o atentado sexual do adulto, que vive num mundo de paixão e culpa, à criança supostamente inocente. O comportamento descrito como resultado do medo é uma submissão total à vontade do agressor; a mudança provocada na personalidade é “a introjeção do sentimento de culpa do adulto”. (...) Toda a questão está em saber se devemos considerar a fantasia de sedução como uma simples deformação defensiva e projetiva da componente positiva do complexo de Édipo, ou se se deve ver nela a tradução de um dado fundamental: o fato de a sexualidade da criança ser inteiramente estruturada por algo que lhe vem como que do exterior - a relação entre os pais, o desejo dos pais que preexiste ao desejo do sujeito e lhe dá forma. Neste sentido, a sedução realmente vivida, tal como a fantasia de sedução, não seriam mais do que a atualização desse dado. Na mesma linha de pensamento, Ferenczi, adotando em 1932 a teoria da sedução, descreveu como a sexualidade adulta (“a linguagem da paixão”) realizava verdadeiramente uma efração no mundo infantil (“a linguagem da ternura”). O perigo desta renovação da teoria da sedução estaria em voltar à noção pré-analítica de uma inocência sexual da criança que a sexualidade adulta viria perverter. (...)

Anna Freud vê em ação a identificação com o agressor em contextos variados (agressão física, crítica, etc.) e a identificação pode intervir antes ou depois da agressão temida. O comportamento observado é o resultado de uma inversão de papéis: o agredido faz-se agressor.

Os autores que atribuem a este mecanismo um papel importante no desenvolvimento da pessoa apreciam de modo diferente o seu alcance, particularmente na constituição do superego. Para Anna Freud, o sujeito passa por uma primeira fase em que o conjunto da relação agressiva se inverte: o agressor é introjetado, enquanto a pessoa atacada, criticada, culpada, é projetada para o exterior. Só num segundo momento a agressão se voltará para o interior, e a relação é no seu conjunto interiorizada.

LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. Verbetes Sedução e Identificação com o agressor. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 230, 231 e 472.

 

         A identificação é o processo psicológico pelo qual um indivíduo assimila certos aspectos, propriedades e características de outrem, e se transforma total ou parcialmente moldando a própria personalidade de acordo com o modelo dessa pessoa.

         Estudos antropológicos nos mostram exemplos concretos desse processo, como os casos de certas culturas onde são praticados costumes antropofágicos tais como o canibalismo, por exemplo, praticado com o intuito de assimilar aspectos positivos da vítima.

         A identificação é o principal mecanismo psíquico responsável pela formação da personalidade. É por meio das várias identificações que o indivíduo vai transformando seu ego, formando e diferenciando sua personalidade à imagem e à semelhança dos modelos identificatórios.

         O superego, como uma extensão diferenciada do ego, também vai se formando a partir das identificações e heranças parentais, sendo que o complexo de Édipo – mais prematuro, de acordo com a Escola de Relações Objetais, ou mais tardio, de acordo com a Escola Freudiana – ocupará um lugar central no cenário das identificações.

         A identificação com o agressor, por sua vez, é um mecanismo defensivo que foi inicialmente descrito por Ferenczi (1932/1933) e posteriormente discutido por Anna Freud (1936).

         Sendo um dos possíveis efeitos do trauma na criança, a identificação com o agressor é um tipo de defesa psíquica no qual o sujeito confrontado com o objeto traumatogênico – normalmente uma figura de autoridade significativa -, identifica-se com seu agressor, compreendendo suas razões e introjetando sua culpa. Isso explicaria o fato surpreendente e comum de o sujeito traumatizado comumente sair em defesa de seu agressor.

         O que acontece com o sujeito identificado com seu agressor é que ele, quando adulto, tenderá a se comportar com os objetos com os quais se relaciona do mesmo modo que os objetos agressores se comportaram com ele, quando ele era ainda uma criança indefesa.

         Esse é um fenômeno de inversão de papéis pela identificação com o agressor. O fato de o adulto agressor ter sido alvo de frequentes violências e abusos na infância por parte de pessoas significativas e ter se identificado com elas é o que explica o fato de todo o adulto perverso ter sido, em algum momento de sua história, vítima de abuso.

         Caso esse ciclo identificatório transgeracional não seja interrompido e modificado por meio de psicoterapia ou algum outro meio de elaboração, o adulto, por estar identificado com seu agressor e ter o ego e superego cindidos, tenderá a se comportar do mesmo modo que seus agressores antepassados, aparentando ser uma maldição familiar.

         Para Ferenczi, no contexto da traumatogênese, a agressão é o atentado sexual, físico ou psicológico do adulto contra a criança inocente e desprotegida, vivido com paixão intensa e culpa por parte do adulto agressor. Por sua dependência e indefensabilidade em relação ao adulto e por temê-lo, a criança se submete totalmente a vontade do agressor. Ao identificar-se com o agressor, ela introjeta também o sentimento de culpa do adulto, mantendo esses elementos identificatórios como base de sua personalidade.

         Ao descrever o modo de ocorrência das seduções incestuosas, Ferenczi esclareceu:

“É difícil adivinhar quais são o comportamento e os sentimentos das crianças após a perpetuação de tais atos. Seu primeiro movimento seria a recusa, o ódio, a repugnância, uma resistência violenta: “Não, não, eu não quero, está me machucando, deixe-me!” Isto, ou algo muito semelhante, seria a reação imediata se esta não fosse inibida por um medo intenso. As crianças sentem-se física e moralmente sem defesa, sua personalidade é ainda frágil demais para poder protestar, mesmo em pensamento, contra a força e a autoridade esmagadora dos adultos que as emudecem, podendo até fazê-las perder a consciência. Mas esse medo, quando atinge seu ponto culminante, obriga-as a submeter-se automaticamente à vontade do agressor, a adivinhar o menor de seus desejos, a obedecer esquecendo-se de si mesmas e a identificar-se totalmente com o agressor. Por identificação, digamos, introjeção do agressor, este desaparece enquanto realidade exterior, e torna-se intrapsíquico; mas o que é intrapsíquico vai ser submetido, num estado próximo do sonho – como é o transe traumático -, ao processo primário, ou seja, o que é intrapsíquico pode, segundo o princípio do prazer, ser modelado e transformado de maneira alucinatória, positiva ou negativa. Seja como for, a agressão deixa de existir enquanto realidade exterior e estereotipada, e, no decorrer do transe traumático, a criança consegue manter a situação de ternura anterior”. (Confusão de línguas entre o adulto e as crianças; Obras completas, vol. IV, p. 116 e 117.)

         E Ferenczi prossegue:

“Mas a mudança significativa, provocada no espírito da criança pela identificação ansiosa com o parceiro adulto, é a introjeção do sentimento de culpa do adulto; o jogo, até então anódino, apresenta-se agora como um ato merecedor de punição. Se a criança se recupera de tal agressão, ficará sentindo, no entanto, uma enorme confusão; a bem dizer, já está dividida, ao mesmo tempo inocente e culpada, e sua confiança no testemunho de seus próprios sentidos está desfeita.” (Confusão de línguas entre o adulto e as crianças; Obras completas, vol. IV, p. 117.)

         Quanto à culpa do adulto agressor, é importante lembrar que, sob a aparente ausência de culpa do perverso, se oculta um superego excessivamente cruel e perseguidor que precisa manter-se encoberto a todo custo. Este trabalho de encobrir o superego severo reforça ainda mais a cisão do ego e do superego. Entretanto, em alguma medida, o agressor sabe que está fazendo “algo errado”, mas em seu superego (igualmente cindido) predomina o caráter perverso que permite que ele disponha do corpo e do psiquismo alheio a seu bel-prazer, desconsiderando os sentimentos do outro.

         Deste modo, a criança introjeta um superego perverso e retaliador – que provoca culpa -, mas cuja cisão a impede de aceitar a interdição do incesto, assim como de outras leis.

         Ferenczi evidenciou que, na formação do trauma, a criança fica confuso, seu ego, ainda frágil, está dividido. Ela sente-se simultaneamente inocente e culpada. Sua personalidade clivada constitui-se agora em uma parte criança – que sofre calada e solitária – e em uma parte adulta – que sabe tudo, mas não pode sentir nem fazer nada. (...)

         A identificação com o agressor foi apontada por Ferenczi como um dos resultados devastadores do trauma. Numa nota de seu Diário, denominada Identification x hatred, ele escreveu:

“É porque me identifico (tudo compreender = tudo perdoar) que não posso odiar. Mas o que acontece à nossa emoção mobilizada quando qualquer descarga psíquica sobre o objeto é impedida? Permanece no corpo sob a forma de tensão que procura descarregar-se em objetos deslocados (com exclusão dos objetos reais). Punir-se a si mesmo (matar-se, suicídio) é mais suportável do que ser morto.” (...)

         Outro exemplo de identificação com o agressor é o fenômeno que ocorre com algumas pessoas vítimas de sequestro ou de aprisionamento, denominado Síndrome de Estocolmo. Como mecanismo defensivo inconsciente e estratégia de sobrevivência, essas pessoas, submetidas a um intenso nível de estresse, se identificam com seus raptores e passam a gostar deles, afastando-se de uma realidade extremamente assustadora e ameaçadora de sua integridade física e emocional.

         O nome Síndrome de Estocolmo se deve ao fato de que, em agosto de 1973, houve um assalto a um banco na cidade de Estocolmo e, durante seis dias, quatro pessoas foram mantidas reféns pelos bandidos. Surpreendentemente, elas desenvolveram uma relação afetuosa com seus sequestradores e duas das mulheres prisioneiras acabaram se casando com eles. O psicólogo e criminólogo Nils Bejerot, integrante da equipe de polícia responsável pela solução do assalto, utilizou o termo Síndrome de Estocolmo em uma entrevista e, a partir de então, o termo passou a ser utilizado pelos psicólogos em todo o mundo. Um caso que ficou conhecido foi a da milionária Patrícia Campbell Hearst, que desenvolveu a síndrome em 1974, depois de ter sido sequestrada em um banco por uma organização paramilitar. Após ter sido libertada, Patrícia Hearst passou a viver com as pessoas que a haviam sequestrado, tornando-se cúmplice de outros assaltos a bancos.

         O mecanismo psíquico da identificação com o agressor, descoberto por Ferenczi, também nos ajuda a compreender intrigantes fatos e fenômenos de massa, até então de difícil explicação como a identificação nos âmbitos racial, étnico, econômico etc., de grupos sociais desfavorecidos com seus respectivos exploradores (negros com brancos, pobres com ricos, colonizados com colonizadores etc.)

KAHTUNI, Haydée Christinne e SANCHES, Gisela Paraná. Dicionário sobre o pensamento de Sándor Ferenczi: uma contribuição à clínica psicanalítica contemporânea. Verbetes: Identificação e Identificação com o agressor. Rio de Janeiro: Elsevier; São Paulo: FAPESP; 2009.  p. 210, 211, 212 e 213.

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