Módulo 32

 IDEAL DO EU




Ideal do eu: expressão utilizada por Freud no quadro da sua segunda teoria do aparelho psíquico. Instância da personalidade resultante da convergência do narcisismo (idealização do ego) e das identificações com os pais, com os seus substitutos e com os ideais coletivos. Enquanto instância diferenciada, o ideal do ego constitui um modelo a que o sujeito procura conformar-se.

É difícil delimitar um sentido unívoco da expressão “ideal do ego” na obra de Freud. As variações deste conceito provêm do fato de que ele está estreitamente ligado à elaboração progressiva da noção de superego e, mais geralmente, da segunda teoria do aparelho psíquico. E assim que, em O ego e o id (Das Ich und das Es, 1923), ideal do ego e superego são apresentados como sinônimos, enquanto em outros textos a função do ideal é atribuída a uma instância diferenciada, ou pelo menos a uma subestrutura especial no seio do superego.

É em Sobre o narcisismo: uma introdução (Zur Einführung des Narzissmus, 1914) que aparece a expressão “ideal do ego” para designar uma formação intrapsíquica relativamente autônoma que serve de referência ao ego para apreciar as suas realizações efetivas. Sua origem é principalmente narcísica: “O que ele [o homem] projeta diante de si como seu ideal é o substituto do narcisismo perdido da sua infância; nesse tempo o seu próprio ideal era ele mesmo.” Este estado de narcisismo - que Freud compara a um verdadeiro delírio de grandeza - é abandonado principalmente em razão da crítica que os pais exercem em relação à criança. Note-se que esta crítica, interiorizada sob a forma de uma instância psíquica especial, instância de censura e de auto-observação, é, no conjunto do texto, distinta do ideal do ego: ela “... observa incessantemente o ego atual e compara-o com o ideal”.

Em Psicologia de grupo e análise do ego (Massenpsychologie und Ich Analyse, 1921), a função do ideal do ego é colocada em primeiro plano. Freud vê nele uma formação nitidamente diferenciada do ego, que permite principalmente explicar a fascinação amorosa, a dependência para com o hipnotizador e a submissão ao líder, casos em que uma pessoa estranha é colocada pelo sujeito no lugar do seu ideal do ego.

Esse processo está na base da constituição do grupo humano. O ideal coletivo retira a sua eficácia de uma convergência dos “ideais do ego” individuais: “... certos indivíduos puseram um só e mesmo objeto no lugar do seu ideal do ego, e em consequência disso identificaram-se uns com os outros no seu ego”-, inversamente, estes são os depositários, em consequência de identificações com os pais, com os educadores, etc., de um certo número de ideais coletivos: “Cada indivíduo faz parte de vários grupos, está ligado por identificação de vários lados e construiu o seu ideal do ego segundo os mais diversos modelos.”

Em O ego e o id, em que pela primeira vez figura o termo superego, este é considerado sinônimo de ideal do ego; é uma só instância, formada por identificação com os pais correlativamente ao declínio do Édipo, que reúne as funções de interdição e de ideal. “As relações [do superego] com o ego não se limitam ao preceito ‘você deve ser assim’ (como o pai); compreendem igualmente a interdição ‘você não tem o direito de ser assim’ (como o pai), quer dizer, de fazer tudo o que ele faz; há muitas coisas que são reservadas a ele.”

Em Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse, 1932), reaparece uma distinção: o superego surge como uma estrutura englobante que compreende três funções: “auto-observação, consciência moral e função de ideal”. A distinção entre estas duas últimas funções é particularmente ilustrada nas diferenças que Freud procura estabelecer entre sentimento de culpa e sentimento de inferioridade. Estes dois sentimentos são resultado de uma tensão entre o ego e o superego, mas o primeiro está relacionado com a consciência moral e o segundo com o ideal do ego, na medida em que é mais amado do que temido.

A literatura psicanalítica atesta que o termo superego não apagou o termo ideal do ego. A maior parte dos autores não utiliza um pelo outro.

Existe relativo acordo quanto ao que é designado por ideal do ego; em contrapartida, as concepções diferem quanto à sua relação com o superego e com a consciência moral. A questão torna-se ainda mais complicada pelo fato de os autores chamarem de superego, ora, como Freud em Novas conferências, a uma estrutura de conjunto que compreende diversas subestruturas, ora mais especificamente à “voz da consciência” na sua função interditora.

Para Nunberg, por exemplo, ideal do ego e instância interditora são coisas nitidamente separadas. Distingue-as quanto às motivações induzidas no ego - “Enquanto o ego obedece ao superego por medo do castigo, submete-se ao ideal do ego por amor” - e quanto à sua origem (o ideal do ego seria principalmente formado a partir da imagem dos objetos amados, e o superego a partir da imagem dos personagens temidos).

Esta distinção, embora pareça bem fundamentada ao nível descritivo, nem por isso é menos difícil de ser sustentada de forma rigorosa do ponto de vista metapsicológico. Por isso muitos autores, na linha da indicação dada por Freud em O ego e o id (texto acima citado), sublinham a íntima ligação dos dois aspectos, ou seja, o ideal e a interdição. É assim que D. Lagache fala de um sistema superego - ideal do ego dentro do qual estabelece uma relação estrutural: “...o superego corresponde à autoridade e o ideal do ego à forma como o sujeito deve comportar-se para corresponder à expectativa da autoridade”.

LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. Verbete: Ideal do Ego ou Ideal do Eu. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 222 a 224.


Sigmund Freud utilizou essa expressão para designar o modelo de referência do eu, simultaneamente substituto do narcisismo perdido da infância e produto da identificação com as figuras parentais e seus substitutos sociais. A noção de ideal do eu é um marco essencial na evolução do pensamento freudiano, desde as reformulações iniciais da primeira tópica até a definição do supereu. No Brasil também se usa “ideal do ego”.

A dimensão de um ideal como modalidade de referência do eu aparece explicitamente em Freud no texto de 1914 dedicado à introdução do conceito de narcisismo.

Para que se possa manifestar a idealidade, é preciso, com efeito, que a libido já não seja unicamente objetal e que se desenhe a perspectiva de uma relação do sujeito consigo mesmo, tomado como objeto amoroso. Primitivamente, diz Freud, a criança “era seu próprio ideal”. É a renúncia à onipotência infantil e ao delírio de grandeza, característicos do narcisismo infantil, que possibilita o surgimento de um outro ideal. Mas Freud se interroga sobre as modalidades dessa renúncia: ela é produto da submissão às proibições enunciadas pelas figuras parentais, instaladas na posição de modelo no momento em que a estrutura edipiana começa seu declínio. Essa renúncia, portanto, situa-se na vertente do recalque, processo que tem sua sede no eu e cuja realização exige um critério de avaliação: “A formação do ideal seria, do lado do eu”, escreve Freud, “a condição do recalque.”

Em 1917, nas Conferências introdutórias sobre psicanálise, Freud modifica sua concepção do ideal do eu. Este converte-se então numa instância do eu que se encarrega das funções até então atribuídas à “consciência moral” (Gewissen), que permitia ao eu avaliar suas relações com seu ideal. Além disso, o ideal do eu participa da formação do sonho, uma vez que é concebido como responsável pela censura dos sonhos.

Foi em 1921, em Psicologia das massas e análise do eu, que Freud atribuiu ao ideal do eu um lugar de primeiro plano. Fez dele uma instância bem distinta do eu, capaz de “se engajar em conflitos com ele”. A essa instância, recapitulou Freud, “chamamos ideal do eu, e lhe atribuímos como funções a auto-observação, a consciência moral, a censura onírica e o exercício da influência essencial no recalque. Dissemos que ela era herdeira do narcisismo primário, em cujo seio o eu da criança bastava a si mesmo”. É nesse lugar do ideal do eu que o sujeito instala o objeto de sua fascinação amorosa, bem como o hipnotizador ou o líder, assim se transformando o ideal do eu no esteio do principal eixo de constituição do coletivo como fenômeno, o que Freud já dera a entender no texto de 1914 sobre o narcisismo.

Observando essa mudança de estatuto do ideal do eu, transformado em instância, Paul Laurent Assoun comentou, em 1984, que se tratava de uma operação estranha, já que todas as características que acabavam de lhe ser atribuídas iriam, pouco tempo depois, caracterizar uma nova instância, o supereu. Em outras palavras, mal foi promovido, o ideal do eu já se viu destituído. “Sem dúvida não foi por acaso”, precisa o autor com humor, “que esse ‘discreto golpe de estado metapsicológico’ teve por cenário o texto constituído pelo ensaio sobre a psicologia das massas, cheio de ressonâncias políticas.”

De fato, dois anos depois, em O eu e o isso, assistimos a uma verdadeira transmissão do poder, à colocação entre parênteses do ideal do eu, como é indicado pelo título do terceiro capítulo: “O eu e o supereu (ideal do eu)”.

Em 1933, nas Novas conferências introdutórias sobre psicanálise, a mutação está definitivamente consumada. A trigésima primeira conferência dá ensejo a uma apresentação pormenorizada da gênese e das funções do supereu, a título das quais figura o ideal do eu “com que o eu se compara, ao qual ele aspira” e cuja “reivindicação ele se esforça por satisfazer, através de um aperfeiçoamento cada vez maior.” “Sem dúvida alguma”, esclarece ainda Freud, “esse ideal do eu é o precipitado da antiga representação parental, a expressão da admiração pela perfeição que a criança atribuía aos pais na época”.

Segundo Jean Laplanche e Jean-Bertrand Pontalis, não se encontra em Freud uma “distinção conceitual” entre o ideal do eu (Ichideal) e o eu ideal (Idealich). Todavia, como Freud emprega em diversas ocasiões esses dois termos, alguns autores os diferenciam. Em seu seminário de 1953-1954, Os escritos técnicos de Freud, Jacques Lacan sustenta que Freud de fato designa duas funções diferentes. Lacan inscreve essa distinção em sua tópica: “O Ich Ideal, o ideal do eu, é o outro como falante, o outro na medida em que mantém comigo uma relação simbólica, sublimada, a qual, em nosso manejo dinâmico, é ao mesmo tempo igual e diferente da libido imaginária.” O eu ideal, formação essencialmente narcísica, constrói-se, segundo Lacan, na dinâmica do estádio do espelho; decorre, pois, do registro do imaginário e se torna uma “aspiração” ou um “sonho”. Essa comparação é introduzida por Lacan em 1960, em sua Observação sobre o relatório de Daniel Lagache, onde ele responde à intervenção feita por este último no colóquio de Royaumont, em julho de 1958.

ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Verbete: Ideal do Eu. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 362 e 363.


       A noção de Ideal do Eu aparece em Sobre o narcisismo – uma introdução (1914). O sujeito forma-o projetando diante dele como seu ideal o substituto do narcisismo perdido de sua infância. O que caracteriza o Ideal do Eu é, portanto, a abertura que ele oferece ao narcisismo para uma realização possível num tempo futuro. O Ideal do Eu vai refundir outras noções anteriores, como a consciência moral, a censura, a autoestima, e permitir uma reflexão original sobre a formação das massas e sua relação com o líder (Psicologia das massas e análise do eu - 1921).

         O Ideal do Eu e o Supereu formam com o Eu ideal um agrupamento de instâncias que convém diferenciar claramente, embora Freud tenha confundido algumas vezes as duas primeiras. O termo Supereu só interveio mais tarde, em O ego e o id (1923), e permitiu distinguir o aspecto normativo (Supereu) do aspecto de motivação com vistas a uma finalidade (Ideal do Eu). Mas, no início, esses dois aspectos são confundidos no Ideal do Eu, o qual tampouco é diferenciado do Eu ideal. Essa confusão reaparecerá nas Novas conferências... (1933), onde o Ideal do Eu se converte numa função do Supereu.

         O Ideal do Eu forma-se quando a criança, por causa da influência crítica dos pais, dos educadores e de outras pessoas do meio ambiente, é obrigada a renunciar ao seu narcisismo infantil. Portanto, essa renúncia é viabilizada pela formação desse substituto, o Ideal do Eu, que deixa aberta a possibilidade de, num tempo futuro, ocorrer a reunião do Eu e do ideal. Essa formação do Ideal do Eu, confundida aqui com o Supereu, faz-se por identificação com os pais ou, mais precisamente, com o Supereu dos pais. Em O Ego e o Id (1923), Freud sublinhará que o Superego aparece por identificação com o modelo paterno (...).

         Na medida em que o Ideal do Eu é confundido com o Supereu, ele inclui a consciência moral, a qual compara permanentemente o Eu atual e o Ideal do Eu. Da mesma forma, a censura do sonho ou o recalque ligam-se ao Ideal do Eu. Com efeito, o Ideal do Eu compreende todas as restrições às quais o Eu deve submeter-se de maneira a concordar com essa imagem destacada do seu próprio narcisismo e projetada adiante dele. Mas o Ideal do Eu (...) pode também produzir, quando alguma coisa no Eu coincide com o Ideal do Eu, uma sensação de triunfo, onde é reencontrada a autoestima.

         O Ideal do Eu pode, por último, ver-se impedido de exercer a sua função de incitação para o Eu quando é substituído pela idealização do objeto. “Nas múltiplas formas de escolha amorosa”, escreve Freud, “salta aos olhos que o objeto serve para substituir um ideal não alcançado do próprio Eu” (Psicologia das massas e análise do eu). (...)

      Com o Ideal do Eu, Freud vai enriquecer consideravelmente a compreensão da psicologia do coletivo. Partindo da análise da relação entre o hipnotizador e o hipnotizado, veio a definir a formação da multidão como “uma soma de indivíduos que têm um só e mesmo objeto no lugar do seu Ideal do Eu e que estão, por consequência, no Eu de cada um deles, identificados uns com os outros” (Psicologia das massas e análise do eu). Todos são, pois, coletivamente suscetíveis de entrar num estado de sujeição em face daquele que se oferecer para representar esse Ideal do Eu que se tornou coletivo. As consequências são conhecidas: “A crítica exercida por esta instância [o Ideal do Eu] emudece; tudo o que o objeto faz e exige é bom e irrepreensível. A consciência moral não se aplica a nada do que sucede a favor do objeto; na cegueira do amor, o sujeito vira criminoso sem remorsos. Toda a situação se deixa resumir integralmente numa fórmula: o objeto é posto lugar do Ideal do Eu” (Psicologia das massas e análise do eu).  

MIJOLLA-MELLOR, Sophie de. Verbete: Ideal do Eu. In.: MIJOLLA, Alain (Org.) Dicionário Internacional da Psicanálise. Vol. A-L. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. 905 e 906.














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