Módulo 4

 

"PULSÕES" OU "INSTINTOS" NA PSICANÁLISE DE FREUD


Pulsão: processo dinâmico que consiste numa pressão ou força (carga energética, fator de motricidade) que faz o organismo tender para um objetivo. Segundo Freud, uma pulsão tem a sua fonte numa excitação corporal (estado de tensão); o seu objetivo ou meta é suprimir o estado de tensão que reina na fonte pulsional; é no objeto ou graças a ele que a pulsão pode atingir a sua meta.

I - Do ponto de vista terminológico, o termo pulsion foi introduzido nas traduções francesas de Freud como equivalente do alemão Trieb e para evitar as implicações de termos de uso mais antigo como instinct (instinto) ou tendance (tendência). Esta convenção, que nem sempre se respeitou, é todavia justificada.

1. Na língua alemã existem os dois termos, Instinkt e Trieb. O termo Trieb é de raiz germânica, de uso muito antigo, e conserva sempre a nuança de impulsão (treiben = impelir); a ênfase se coloca menos numa finalidade definida do que numa orientação geral, e sublinha o caráter irreprimível da pressão mais do que a fixidez da meta e do objeto.

Certos autores parecem empregar indiferentemente os termos Instinkt ou Trieb; outros parecem fazer uma distinção implícita reservando Instinkt para designar, em zoologia por exemplo, um comportamento hereditariamente fixado e que aparece sob uma forma quase idêntica em todos os indivíduos de uma espécie.

2. Em Freud encontramos os dois termos em acepções nitidamente distintas. Quando Freud fala de Instinkt, qualifica um comportamento animal fixado por hereditariedade, característico da espécie, pré-formado no seu desenvolvimento e adaptado ao seu objeto.

Em francês, o termo instinct [assim como em português o termo instinto] tem as mesmas implicações que Instinkt tem em Freud e deve, portanto, na nossa opinião, ser reservado para traduzi-lo; se for utilizado para traduzir Trieb, falseia o uso da noção em Freud.

O termo pulsão, embora não faça parte da língua, como Trieb em alemão, tem contudo o mérito de pôr em evidência o sentido de impulsão. Note-se que a Standard Edition inglesa [O mesmo aconteceu com a Edição Stantard brasileira, bem como com grande parte das obras psicanalíticas traduzidas do inglês (N. E).] preferiu traduzir Trieb por instinct, afastando outras possibilidades como drive e urge). Esta questão é discutida na Introdução geral do primeiro volume da Standard Edition.

II — Embora o termo Trieb só apareça nos textos freudianos em 1905, ele tem a sua origem como noção energética na distinção que desde cedo Freud faz entre dois tipos de excitação (Reiz) a que o organismo está submetido e que tem de descarregar em conformidade com o princípio de constância. Ao lado das excitações externas a que o indivíduo pode fugir ou de que pode proteger-se, existem fontes internas portadoras constantes de um afluxo de excitação a que o organismo não pode escapar e que é o fator propulsor do funcionamento do aparelho psíquico.

Os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie, 1905) introduzem o termo Trieb, assim como as distinções, que a partir de então nunca mais deixarão de ser utilizadas por Freud, entre fonte, objeto e meta.

É na descrição da sexualidade humana que se esboça a noção freudiana da pulsão. Freud, baseando-se especialmente no estudo das perversões e das modalidades da sexualidade infantil, ataca a chamada concepção popular que atribui à pulsão uma meta e um objeto específico e a localiza nas excitações e no funcionamento do aparelho genital. Mostra, pelo contrário, como o objeto é variável, contingente, e como só é escolhido sob a sua forma definitiva em função das vicissitudes da história do sujeito. Mostra ainda como as metas são múltiplas, parcelares e estreitamente dependentes de fontes somáticas; estas são igualmente múltiplas e suscetíveis de assumirem e conservarem para o sujeito uma função predominante (zonas erógenas), pois que as pulsões parciais só se subordinam à zona genital e só se integram na realização do coito ao termo de uma evolução complexa que a maturidade biológica não é suficiente para garantir.

O último elemento que Freud introduz a propósito da noção de pulsão é pressão ou força, concebida como um fator quantitativo econômico, uma “exigência de trabalho imposta ao aparelho psíquico”. E em Pulsões e destinos das pulsões (Triebe und Triebschicksale, 1915) que Freud reúne esses quatro elementos - pressão, fonte, objeto, meta - e apresenta uma definição de conjunto da pulsão.

III - Como situar essa força que ataca o organismo a partir de dentro e o impele a realizar certas ações suscetíveis de provocarem uma descarga de excitação? A questão, colocada por Freud, recebe respostas diversas na exata medida em que a pulsão é definida como “um conceito-limite entre o psiquismo e o somático”. Ela está ligada, para Freud, à noção de “representante”, pela qual ele entende uma espécie de delegação enviada pelo somático ao psiquismo. (...)

IV — A noção de pulsão é, como já indicamos, analisada segundo o modelo da sexualidade, mas na teoria freudiana a pulsão sexual é desde o início contraposta a outras pulsões. Sabemos que a teoria das pulsões em Freud se mantém sempre dualista; o primeiro dualismo invocado é o das pulsões sexuais e das pulsões do ego ou de autoconservação; por estas últimas Freud entende as grandes necessidades ou as grandes funções indispensáveis à conservação do indivíduo, cujo modelo é a fome e a função de alimentação.

Segundo Freud, esse dualismo opera desde as origens da sexualidade, pois a pulsão sexual se destaca das funções de autoconservação em que a princípio se apoiava; ele procura explicar o conflito psíquico, pois o ego encontra na pulsão de autoconservação o essencial da energia necessária à defesa contra a sexualidade.

O dualismo pulsional introduzido por Além do princípio do prazer (Jenseits des Lustprinzips, 1920) contrapõe pulsões de vida e pulsões de morte e modifica a função e a situação das pulsões no conflito.

1. O conflito tópico (entre a instância defensiva e a instância recalcada) já não coincide com o conflito pulsional, pois o id é concebido como reservatório pulsional que inclui os dois tipos de pulsões. A energia utilizada pelo ego é retirada deste fundo comum, especialmente sob a forma de energia “dessexualizada e sublimada”.

2. Nesta última teoria, os dois grandes tipos de pulsões são propostos não tanto como motivações concretas do próprio funcionamento do organismo, mas sobretudo como princípios fundamentais que, em última análise, regulam a atividade deste. “Damos o nome de pulsões às forças que supomos existirem por trás das tensões geradoras de necessidades do id.” Esta mudança de acentuação é particularmente sensível no famoso texto: “A teoria das pulsões é, por assim dizer, a nossa mitologia. As pulsões são seres míticos, grandiosos na sua indeterminação.”

A concepção freudiana da pulsão conduz - e percebemo-lo apenas com este simples esboço - a uma explosão da noção clássica de instinto, e isto em duas direções opostas. Por um lado, o conceito de “pulsão parcial” acentua a ideia de que a pulsão sexual existe em primeiro lugar no estado “polimorfo” e visa principalmente suprimir a tensão a nível da fonte corporal; de que ela se liga na história do sujeito a representantes que especificam o objeto e o modo de satisfação: a pressão interna, de início indeterminada, sofrerá um destino que a marcará com traços altamente individualizados. Mas, por outro lado, Freud, longe de postular, por trás de cada tipo de atividade, uma força biológica correspondente (ao que são facilmente levados os teóricos do instinto), faz entrar o conjunto das manifestações pulsionais numa grande oposição fundamental, tirada, aliás, da tradição mítica; oposição da Fome e do Amor e, depois, do Amor e da Discórdia.

LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. Verbete: Pulsão. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 394 a 396.



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DOIS TIPOS FUNDAMENTAIS DE INSTINTOS SEGUNDO FREUD: INSTINTOS DE VIDA (EROS) E INSTINTOS DE MORTE

         Considerei uma nova solução do problema dos instintos [1]. Combinei os instintos para a autopreservação e para a preservação da espécie sob o conceito de Eros e contrastei com ele um instinto de morte ou destruição.

FREUD, Sigmund. Um estudo autobiográficoObras completas vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 60.

         De acordo com nossa hipótese, os instintos humanos são de apenas dois tipos: aqueles que tendem a preservar e unir - que denominamos "eróticos", exatamente no mesmo sentido em que Platão usa a palavra "Eros" (amor) em seu Banquete[2], ou "sexuais", com uma deliberada ampliação da concepção popular de "sexualidade" -; e aqueles que tendem a destruir e matar, os quais agrupamos como instinto agressivo ou destrutivo. (...)

         Isto não é senão uma formulação teórica da universalmente conhecida oposição entre amor e ódio (...). Entretanto, não devemos ser demasiado apressados em introduzir juízos morais de bem e mal.

         Nenhum desses dois instintos é menos essencial do que o outro; os fenômenos da vida surgem da ação confluente ou mutuamente contrária de ambos. Ora, é como se um instinto de um tipo dificilmente pudesse operar isolado; está sempre acompanhado - ou, como dizemos, amalgamado - por determinada quantidade do outro lado, que modifica o seu objetivo, ou, em determinados casos, possibilita a consecução desse objetivo. Assim, por exemplo, o instinto de autopreservação certamente é de natureza erótica[3]; não obstante, deve ter à sua disposição a agressividade, para atingir seu propósito.

         Dessa forma, também o instinto de amor, quando dirigido a um objeto, necessita de alguma contribuição do instinto de domínio, para que obtenha a posse desse objeto. (...) Muito raramente uma ação é obra de um impulso instintivo único (que deve estar composto de Eros e destrutividade). A fim de tornar possível uma ação, há de existir, via de regra, uma combinação desses motivos compostos. (...)

         Pudemos supor que (...) o instinto destrutivo (...) está em atividade em toda criatura viva e procura (...) reduzir a vida à condição original de matéria inanimada. Portanto, merece, com toda seriedade, ser denominado instinto de morte, ao posso que os instintos eróticos representam o esforço de viver[4].

FREUD, Sigmund. Um diálogo entre Freud e Einstein: por que a guerra? Santa Maria: Fadisma, 2005. p. 38 a 40.

         É assim possível distinguir (...) instintos, e, na prática comum, isto é realmente feito. Para nós, contudo, surge a importante questão de saber se não será possível fazer remontar todos esses numerosos instintos a uns poucos básicos. (...) Depois de muito hesitar e vacilar, decidimos presumir a existência de apenas dois instintos básicos, Eros e o instinto destrutivo(...) O objetivo do primeiro desses instintos básicos é (...) unir[5]; o objetivo do segundo, pelo contrário, é desfazer conexões e, assim, destruir coisas. No caso do instinto destrutivo, podemos supor que seu objetivo final é levar o que é vivo a um estado inorgânico. Por essa razão, chamamo-lo também de instinto de morte.

Nas funções biológicas, os dois instintos básicos operam um contra o outro ou combinam-se mutuamente. Assim, o ato de comer é uma destruição do objeto[6] com o objetivo final de incorporá-lo[7] (...) Modificações nas proporções da fusão entre os instintos apresentam os resultados mais tangíveis. Um excesso de agressividade sexual transformará um amante num criminoso sexual, enquanto uma nítida diminuição no fator agressivo torná-lo-á acanhado ou impotente. (...)

Quantidades consideráveis do instinto agressivo (...) operam autodestrutivamente. Este é um dos perigos para a saúde com que os seres humanos se defrontam em seu caminho para o desenvolvimento cultural. Conter a agressividade é, em geral, nocivo e conduz à doença (à mortificação). Uma pessoa num acesso de raiva com frequência demonstra como a transição da agressividade, que foi impedida, para a autodestrutividade, é ocasionada pelo desvio da agressividade contra si própria: arrancar os cabelos ou esmurrar a face, embora, evidentemente, tivesse preferido aplicar esse tratamento a outrem.

FREUD, Sigmund. Esboço de psicanáliseObras completas vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 159, 160 e 161.

 

INSTINTO DE VIDA (EROS): O AMOR EM SUAS DIVERSAS MODALIDADES: INSTINTO SEXUAL DESINIBIDO (AMOR ERÓTICO), INSTINTO SEXUAL INIBIDO OU SUBLIMADO (AMOR ESPIRITUAL) E INSTINTO AUTOPRESERVATIVO (AMOR A SI MESMO)

         Eros (...) abrange não apenas o instinto sexual desinibido propriamente dito e os impulsos instintuais de natureza inibida quanto ao objetivo ou sublimada que dele derivam, mas também o instinto autopreservativo.

FREUD, Sigmund. O ego e o idObras completas vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 55.

         Libido é (...) a energia (...) daqueles instintos que têm a ver com tudo o que pode ser abrangido sob a palavra ‘amor’. O núcleo do que queremos significar por amor consiste naturalmente (e é isso que comumente é chamado de amor e que os poetas cantam) no amor sexual, com a união sexual como objetivo. Mas não isolamos disso - que, em qualquer caso, tem sua parte no nome ‘amor’ -, por um lado, o amor próprio, e, por outro, o amor pelos pais e pelos filhos, a amizade e o amor pela humanidade em geral, bem como a devoção a objetos concretos e a ideias abstratas. Nossa justificativa reside no fato de que a pesquisa psicanalítica nos ensinou que todas essas tendências constituem expressão dos mesmos impulsos instintuais; nas relações entre os sexos, esses impulsos forçam seu caminho no sentido da união sexual, mas, em outras circunstâncias, são desviados desse objetivo ou impedidos de atingi-lo, embora sempre conservem o bastante de sua natureza original para manter reconhecível sua identidade. (...) Somos de opinião, pois, que a linguagem efetuou uma unificação inteiramente justificável ao criar a palavra ‘amor’ com seus numerosos usos, e que não podemos fazer nada melhor senão tomá-la também como base de nossas discussões e exposições científicas. Por chegar a essa decisão, a psicanálise desencadeou uma tormenta de indignação, como se fosse culpada de um ato de ultrajante inovação. Contudo, não fez nada de original em tomar o amor nesse sentido ‘mais amplo’. Em sua origem, função e relação com o amor sexual, o ‘Eros’ do filósofo Platão coincide exatamente com a força amorosa, a "libido"[8] da psicanálise (...) e, quando o apóstolo Paulo, em sua famosa Epístola aos Coríntios, louva o amor sobre tudo o mais, certamente o entende no mesmo sentido ‘mais amplo’. (...) A psicanálise, portanto, (...) considera (...) que as relações amorosas (ou, para empregar expressão mais neutra, os laços emocionais) constituem também a essência da mente grupal.

FREUD, Sigmund. Psicologia de grupo e análise do egoObras completas vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 101 e 102.


[1] A palavra alemã Trieb, utilizada por Freud, é traduzida para o português às vezes como "instinto" (humano), às vezes como "pulsão".

[2] No Banquete, livro em que Platão explica o que é o Amor (Eros), encontra-se uma concepção de amor que abrange o "amor erótico", o "amor espiritual" (que engloba o amor romântico e o amor fraternal), e o "amor ético pelas belas ideias", isto é, as ideias éticas que viabilizam a boa sociabilidade humana. O Eros de Freud, inspirado no Eros de Platão, traz este mesmo alargamento e multidimensionalidade da palavra "amor".

[3] Autopreservação é um instinto de natureza erótica, segundo Freud, porque envolve "amor a si mesmo".

[4] E de propagar a vida através da perpetuação da espécie.

[5] Unir em todas as possibilidades da expressão "união amorosa". Assim, para Freud, Eros é não só a força que une sexualmente um casal amoroso, mas também a força que une qualquer relação social de amizade, afeto ou companheirismo; em síntese, Eros é um instinto que busca qualquer forma de amor.

[6] A ação destrutiva é impulsionada pelo instinto de morte.

[7] O instinto de sobrevivência realizado pela alimentação faz parte de Eros, ou instinto de vida. Neste caso, a busca da sobrevivência revela a existência de um amor a si mesmo.

[8] "Libido": energia do instinto sexual, segundo a psicanálise.

[9] Civilização: cultura ou maneira de ser das sociedades complexas, que vêm se desenvolvendo há séculos e atingiram seu ápice nas sociedades modernas globalizadas. 


PULSÃO DE MORTE

 

Freud detectava na alma humana (...) outro problema: (...) a capacidade de destruição. (...) Por este tempo corria a 1ª Guerra Mundial, uma carnificina sem fim, por razões que pareciam injustificáveis, mas que ele via empolgar as pessoas mais esclarecidas à sua volta. Fatos como o suicídio, o masoquismo e o sadismo sugeriam haver uma força além do princípio do prazer, uma contradição ao impulso sexual, buscador do prazer construtor, agregador. Uma força que desse conta da agressividade, do ódio, da capacidade desagregadora e destrutiva existente no ser humano.

Freud toma a própria natureza, a física, a química e a biologia para nomear esta força como sendo um IMPULSO DE MORTE. O que tem a natureza a ver com isto? É que tanto na física quanto na química há um movimento constante das substâncias complexas tornarem-se simples e as simples novamente complexas, por outras ligações físico-químicas. Na biologia se passa o mesmo, havendo um ciclo agregador (nascimento, crescimento, acasalamento) e outro desagregador (envelhecimento, morte e decomposição). Os ecossistemas, que hoje se tornaram familiares, se mantêm constantemente assim, a agregação vivendo da desagregação, animais grandes vivendo de animais pequenos, e estes vivendo dos dejetos daqueles. Anabolismo (a construção) e catabolismo (a destruição) numa política de boa vizinhança, um necessário ao outro.

Esta constante destruição e construção permitiu que, ao longo dos milênios, a seleção natural fosse testando construções mais hábeis à sobrevivência, aquilo que os sociobiólogos chamam de “estratégia evolutivamente estável”. (...) Os seres vivos que existem são construções mais hábeis em poder existir, como as girafas de pescoço comprido: Assim é, de maneira ultrassintética, a teoria da seleção natural das espécies de Darwin.

Com o homo sapiens se passou o mesmo. Quantos hominídeos, antropoides, projetos intermediários de homem se extinguiram por terem estratégias evolutivamente instáveis, incapazes de sobreviver ao meio hostil. (...) Muitos desses projetos de homem devem ter se extinguido no meio do caminho e muitos outros se construíram. É este o ciclo de vida-morte que Freud enunciou em sua nova formulação da teoria dos impulsos: a existência de um IMPULSO DE VIDA, também chamado EROS, e um IMPULSO DE MORTE (...). A energia  psíquica de Eros é a libido. Freud não deu nenhum nome à energia do impulso de morte (...).

Aí está um par dialético, sem atribuição de valor de que um é bom e o outro ruim, muito menos de que um seja o bem e o outro o mal. O que acontece é que, como em muitos outros casos, Freud descobriu o funcionamento da alma a partir de seus exageros, de suas doenças. O inconsciente foi descoberto através dos sintomas de histeria de uma moça.  O impulso de morte, através de um surto de destrutividade de uma sociedade inteira. E de fato, quando há um desequilíbrio do funcionamento harmônico deste agregador-desagregador, nas palavras de Freud, quando há uma DESFUSÃO dos impulsos (numa referência de que eles são para trabalhar fundidos), vamos ter problemas.

Mas isso se dá nos ecossistemas também. No início deste século, um agricultor francês irritado com as raposas que andavam predando seu galinheiro, conseguiu inocular em uma delas um vírus de gripe que desencadeou uma epidemia fatal entre elas. Como consequência da diminuição da população de raposas, as lebres, presa natural das raposas, viraram uma praga descomunal para a lavoura, contida a custo. O surto agregador-construtor das lebres, pode-se dizer, seu impulso de vida deixado à solta, redundou num surto desagregador da lavoura francesa.

O equilíbrio destruição-construção se dá o tempo todo. Um homem mata uma vaca, retalha um bife, põe no fogo, depois destroça com os dentes, em seguida os ácidos do estômago dissolvem (até agora funcionou a destruição), os aminoácidos resultantes são absorvidos pelo intestino, passam à corrente sanguínea, daí às células onde vão construir as proteínas musculares deste homem, um pecuarista, por exemplo, que fortalecido pelo alimento, vai criar novas vacas (o ciclo construtivo). Isto sem mencionar o fato que estes ciclos são possibilitados por uma fonte em permanente desagregação, de onde nos vem toda a energia que usamos: o Sol.

O ciclo agregador-desagregador vale também para as coisas abstratas. Se em minha exposição do aparelho psíquico surge algo que possa suscitar em mim a ideia de que o leitor não vá assimilar, discordar ou questionar, sou obrigado a desagregar a minha construção (...) e a reagregá-la em uma construção mais habilitada à sobrevivência. Você pode ficar sabendo que este trabalho de Eros (a construção do livro) está permanentemente mediado pelo impulso desagregador da crítica imaginada. Na verdade, é fruto de uma crítica desagregadora que eu fiz sobre outros trabalhos, sobretudo ao trabalho de Freud. Sim, porque a assimilação da teoria freudiana que gerou este livro passou obrigatoriamente por um processo parecido com o do bife: foi mastigada, desagregada e reagregada segundo o que eu sou, e tornou-se minha, que nem as proteínas da carne. Por isso é que eu disse que era impossível haver a “verdadeira” teoria freudiana, e sim leituras pessoais. E continuo pensando que é a melhor maneira de se estudar alguma coisa, mastigá-la, criticá-la e digeri-la ao ponto de torná-la sua no que ela tem de compatível com você, defecando o resto. (...)

Então Eros e o impulso de morte não são apenas um par antitético (de antíteses, de ideias opostas), são realmente um par dialético (opostos que dialogam entre si, que se necessitam para a produção de um resultado mais eficaz, sem que nenhum prepondere como um tirano sem oposições). O ser humano como espécie ainda é um aprendiz do bom tempero desse par. Basta pensar que a dialética, sistematizada como instrumento de regulação do poder público, só tem 2400 anos. Ela surge com a democracia na Grécia clássica. (...)

Tudo isto parece claro, mas o aparecimento dessa formulação de Freud para a teoria dos impulsos causou enorme celeuma. Uns não podiam aceitar uma coisa tão horrível como um impulso à destruição e morte no ser humano (talvez os mesmos que não aceitavam a existência da sexualidade infantil). (...)

É curioso, porque o verbo “agredir” (agredire, em latim) significava originalmente “chegar-se a”, “aproximar-se”. Em inglês, “agressive” significa “ativo, energético”, que tem garra, a pessoa que vai e faz. Desta forma, a agressividade faz parte das forças impulsoras da criança, em operação desde seu nascimento (de fato, desde antes, mas só depois de nascer é que essas forças se põem em diálogo com as outras pessoas) e da resposta do mundo a elas dependerá seu destino, ou, como disse Freud, as vicissitudes que elas vão sofrer. Em O problema econômico do masoquismo (...), Freud disse que a origem do masoquismo era a impossibilidade de dirigir ao mundo o impulso agressivo, que assim se voltava contra a própria pessoa.

Um choro de bebê, por exemplo, tem um efeito desagregador, “agressivo”. Ele nos tira do sono, nos aborrece, mas é vital para sabermos que algo vai mal no estado da criança. Se respondemos a ele, gradualmente ele se sofistica, ganha em eficiência e o efeito desagregador que causa passa a ser mínimo, dando efeito rápido ao que precisa ser corrigido. (...)

Mais tarde a agressividade manterá a espécie. Um dia desses um agressivo rapaz desagregará a tão prezada construção da minha família e carregará minha filha com ele para construir sua própria família. Mas não tem nada não, que o dia dele chegará.

DAUDT, Francisco. A criação original: a teoria da mente segundo Freud. Rio de Janeiro: 7Letras, 2017. p. 51 a 56.

 

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