Módulo 49

 ROMANCE FAMILIAR




Romance familiar: Expressão criada por Sigmund Freud e Otto Rank para designar a maneira como um sujeito modifica seus laços genealógicos, inventando para si, através de um relato ou uma fantasia, uma outra família que não a sua.

Desde 1898, Sigmund Freud havia observado que os neuróticos tendiam, em sua infância, a idealizar os pais e a querer se parecer com eles. A essa primeira identificação seguiam-se o discernimento crítico e a rivalidade sexual. Nessa etapa, a imaginação infantil era mobilizada por uma nova tarefa, que consistia em desvalorizar os pais reais e em substituí-los por outros, fantasísticos, de maior prestígio.

Em 1909, num artigo escrito especialmente para o livro de Otto Rank, O mito do nascimento do herói, Freud utilizou a expressão “romance familiar” para designar uma construção inconsciente, na qual a família inventada ou adotada pelo sujeito é adornada de todos os elementos de prestígio fornecidos pela lembrança dos pais idealizados da infância.

Apoiando-se nessa noção, Rank estudou as lendas típicas das grandes mitologias ocidentais sobre o nascimento dos reis e dos fundadores de religiões. Assim, observou que Rômulo, Moisés, Édipo, Páris, Lohengrin e até Jesus Cristo são crianças achadas, abandonadas ou “expostas” a um curso d’água por pais reais em razão de alguma previsão sombria. Destinados a morrer, em geral são recolhidos por uma família nutriz de classe social inferior. Na idade adulta, recuperam sua identidade originária, vingam-se do pai e reconquistam seus reinos.

Essa lenda típica, frisou Rank, deu origem a toda sorte de variações. No caso de Rômulo, a ama-de-leite é uma loba, no de Moisés, a família de origem é modesta e a de adoção é da realeza. Na história de Édipo, as duas famílias são nobres. Quanto a Jesus, seu destino é singular, uma vez que o filho proveio do acasalamento de um deus com uma virgem, a qual é esposa do pai adotivo. No caso de Páris, a figura mítica do animal protetor está associada à ideia da realização de uma previsão desastrosa. Príamo abandona seu segundo filho no nascimento, porque sua mulher, Hécuba, sonhou que trazia ao mundo uma tocha ardente. O menino, alimentado por uma ursa, é recolhido por um pastor de ovelhas, que lhe dá o nome de Páris (filho da ursa). Estando na origem da guerra de Tróia, Páris provocaria a ruína de sua família. Na história de Lohengrin, o tema do segredo patogênico, tão caro a Moriz Benedikt, caminha de mãos dadas com o do animal protetor e da mulher curiosa. Um cavalheiro errante, singrando as águas, salva a heroína, casa-se com ela e lhe dá filhos. Promete-lhe felicidade eterna, desde que ela renuncie a saber quem ele é e de onde vem. Em pouco tempo, entretanto, a rainha não resiste ao prazer de interrogar o marido. Lohengrin proclama então publicamente que é filho de Parsifal e abandona o reino para sempre para se colocar outra vez a serviço do Graal em sua embarcação puxada por um cisne.

Aproximando a lenda típica do mecanismo descrito por Freud, Rank mostrou que os relatos míticos podem ser lidos como fantasias em que as situações reais se invertem. No romance familiar comum à maioria dos indivíduos, neuróticos ou não, é a criança, de fato, quem se livra da família de origem para adotar outra mais conforme a seu desejo, ao passo que, no mito, é o pai que abandona o herói, que é então acolhido por uma família adotiva, em geral (salvo algumas exceções) menos prestigiosa.

A ideia de romance familiar foi utilizada por Freud em suas principais obras de psicanálise aplicada, em especial em Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância, Totem e tabu e Moisés e o monoteísmo. Ela abriu caminho para um amplo debate entre a psicanálise e a antropologia, a psicanálise e a literatura, e ainda entre a psicanálise e a religião, na medida em que evidenciou uma analogia entre os mitos fundadores, os relatos romanceados modernos, os sistemas delirantes ou religiosos e um mecanismo fantasístico de natureza subjetiva.

ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Verbete: Romance familiar. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 668 e 669.

 

         O romance familiar é uma fantasia consciente, ulteriormente recalcada, na qual a criança imagina ser fruto de um outro leito (infidelidade materna) ou adotada.

         O status do romance familiar difere das teorias sexuais infantis pelo fato de não responder a uma indagação sobre a origem da vida em geral, mas sobre a do próprio sujeito, se entendermos por esse termo não só uma instância do Eu, mas o resultado de uma auto-historicização que fundamenta um saber.

         É múltiplo o objetivo dessa construção fantasmática: vingança contra os pais frustradores, rivalidade com o genitor do mesmo sexo, separação dos pais idealizados e sua transposição para pais fantasmáticos, e, por fim, eliminação dos irmãos e irmãs para fins de concorrência e também de possível realização do incesto com eles.

         A construção do romance familiar assenta no saber intuitivo da criança quanto aos sentimentos de seus pais, ainda que estes acreditem fazer todo o possível por escondê-los. (Totem e tabu, e, a propósito da perspicácia do paranoico, Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e no homossexualismo).

         Outras operações intelectuais são necessárias a essa construção, entre elas a comparação (comparação das origens familiares) e a relativização. O romance familiar apresenta-se, portanto, como um dos resultados da aquisição fundamental para a psique de um direito de “duvidar”, neste caso duvidar do caráter absoluto dos personagens parentais (“Pater semper incertus”, “O pai é sempre incerto”). (...)

         Esse primeiro romance da infância pode se prolongar em devaneios diurnos muito para além da puberdade, podendo também estar ligado ao gosto literário pelos romances que permitem, através de identificação com o herói, desfrutar de múltiplas identidades.

MIJOLLA-MELLOR, Sophie de. Verbete: Romance familiar. In.: MIJOLLA, Alain (Org.) Dicionário Internacional da Psicanálise. Vol. M-Z. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. 1650 e 1651.

 

O ROMANCE FAMILIAR DOS NEURÓTICOS

(1909)

TÍTULO ORIGINAL: “DER FAMILIENROMAN DER NEUROTIKER”. PUBLICADO PRIMEIRAMENTE NO LIVRO DER MYTHUS VON DER GEBURT DES HELDEN [O MITO DO NASCIMENTO DO HERÓI], DE OTTO RANK

Desprender-se da autoridade dos pais é uma das realizações mais necessárias e também mais dolorosas do indivíduo em crescimento. É absolutamente necessário que ele o faça, e podemos presumir que isso foi alcançado, em alguma medida, por todo aquele que se tornou normal. De fato, o progresso da sociedade baseia-se nessa oposição entre as duas gerações. Por outro lado, há uma classe de neuróticos cuja condição, percebemos, foi determinada pelo fracasso nessa tarefa.

Para a criança pequena, os pais são inicialmente a única autoridade e a fonte de toda crença. Tornar-se como ele ou ela - como o genitor de seu próprio sexo -, ser grande como o pai e a mãe, é o desejo mais intenso e de mais graves consequências dessa época da vida. Com o progressivo desenvolvimento intelectual, porém, torna-se inevitável que a criança perceba gradualmente a que categorias pertencem os pais. Ela conhece outros pais, compara-os com os seus, e pode assim duvidar da natureza única e incomparável que lhes atribuiu. Pequenos acontecimentos na vida da criança, que nela provocam insatisfação, fornecem-lhe o ensejo para iniciar a crítica aos pais e empregar, nessa atitude contrária a eles, o recém-adquirido conhecimento de que outros pais são preferíveis em vários aspectos. Sabemos, com a psicologia das neuroses, que os mais fortes impulsos de rivalidade sexual, entre outros fatores, contribuem para isso. O que constitui a matéria desses ensejos é claramente o sentimento de ser preterido. Não são raras as ocasiões em que a criança é preterida, ou pelo menos sente que o é, que não recebe o inteiro amor dos pais e, sobretudo, em que lamenta precisar dividi-lo com os outros irmãos. A sensação de que os seus afetos não são correspondidos acha então desafogo na ideia, muitas vezes conscientemente lembrada da primeira infância, de que é um enteado ou um adotado. Inúmeras pessoas que não se tornaram neuróticas se recordam frequentemente de ocasiões assim, em que - geralmente influenciadas por leituras - compreenderam e responderam dessa forma ao comportamento hostil dos pais. Mas aqui já se mostra a influência do sexo, pois o garoto se inclina bem mais a ter impulsos hostis para com o pai do que com a mãe, e deseja muito mais livrar-se dele que dela. A atividade fantasiosa da garota pode mostrar-se bem mais fraca nesse ponto. Em tais impulsos psíquicos infantis conscientemente lembrados encontramos o fator que nos possibilita compreender os mitos.

Raramente lembrado de forma consciente, mas quase sempre revelado pela psicanálise é o estágio seguinte na evolução desse afastamento em relação aos pais, que podemos designar como o romance familiar dos neuróticos. Com efeito, é da natureza da neurose, e também de todo talento superior, uma atividade frequente bastante peculiar, que se manifesta primeiramente nos jogos infantis e depois, aproximadamente a partir da pré-puberdade, apodera-se do tema das relações familiares. Um exemplo característico dessa atividade imaginativa especial são os conhecidos devaneios,[1] que prosseguem muito além da puberdade.[2] Uma observação cuidadosa desses devaneios mostra que eles servem à realização de desejos, à correção da vida, e têm dois objetivos sobretudo: um erótico e um relacionado à ambição (atrás do qual, no entanto, geralmente se esconde o objetivo erótico). Na época mencionada, a imaginação da criança se dedica à tarefa de livrar-se dos pais menosprezados e substituí-los por outros, normalmente de posição social mais elevada. Nisso ela se aproveita de coincidências trazidas por experiências reais (conhecer o senhor do castelo ou o proprietário das terras, se vive no campo, ou um membro da aristocracia, na cidade). Essas vivências casuais provocam a inveja da criança, que acha expressão numa fantasia que substitui os genitores por outros mais nobres. Na técnica de construção dessas fantasias - que naturalmente são conscientes nessa época - entram em conta a habilidade e o material de que a criança dispõe. Há também a questão de as fantasias serem elaboradas com maior ou menor empenho em obter a verossimilhança. Esse estágio é alcançado num momento em que a criança ainda não possui o conhecimento dos determinantes sexuais da procriação.

Depois, quando a criança vem a saber das diferentes funções sexuais do pai e da mãe, e compreende que pater semper incertus est, enquanto a mãe é certíssima, o romance familiar experimenta uma restrição peculiar: contenta-se em elevar o pai, já não põe em dúvida a origem pelo lado da mãe, que não pode ser alterada. Esse segundo estágio (sexual) do romance familiar é sustentado por um segundo motivo, que faltava no primeiro estágio (assexual). Com o conhecimento dos fatos sexuais, surge o pendor a imaginar situações e relações eróticas, em que a força motriz é o desejo de colocar a mãe, o objeto da mais intensa curiosidade sexual, na situação de secreta infidelidade e secretos casos amorosos. Desse modo, aquelas primeiras fantasias assexuais, por assim dizer, são levadas à altura do conhecimento de então.

De resto, também se apresenta aqui o motivo da vingança e retaliação, que antes estava em primeiro plano. São geralmente essas crianças neuróticas as que foram castigadas pelos pais, devido a um mau comportamento sexual, e que mediante essas fantasias se vingam dos pais.

São particularmente as crianças mais jovens que buscam tirar de seus antecessores a prerrogativa mediante essas invenções (exatamente como nas intrigas históricas), que inclusive não se pejam de atribuir à mãe tantos casos amorosos quantos são seus próprios concorrentes. Uma variante interessante desse romance familiar ocorre quando o herói fantasiador reclama para si a legitimidade, enquanto afasta como ilegítimos seus irmãos e irmãs. Também algum interesse especial pode guiar o romance familiar, pois suas várias facetas e muitas possibilidades de aplicação o tornam receptivo a toda espécie de empenhos. Assim, por exemplo, o pequeno fantasiador elimina a relação de parentesco com uma irmãzinha que o atrai sexualmente.

Se alguém rejeitar horrorizado essa depravação do espírito infantil, ou mesmo contestar a possibilidade de que existam essas coisas, deve levar em conta que essas invenções, aparentemente tão hostis, não têm intenção verdadeiramente má, e conservam, sob ligeiro disfarce, a afeição original da criança por seus pais. Trata-se de aparente ingratidão e infidelidade; pois, ao examinar detidamente a mais frequente dessas fantasias romanescas - a substituição dos dois genitores, ou somente do pai, por indivíduos mais formidáveis - descobrimos que esses genitores novos, nobres, são dotados de traços que vêm de lembranças verdadeiras do pai e da mãe reais, inferiores, de modo que a criança não elimina propriamente o pai, e sim o eleva. Todo o empenho em substituir o pai verdadeiro por um mais nobre é apenas expressão da nostalgia da criança pelo tempo feliz perdido, em que o pai lhe parecia o homem mais forte e mais nobre, e a mãe, a mulher mais bela e adorável. O menino se afasta do pai que agora conhece, volta-se para aquele no qual acreditava nos primeiros anos da infância, e a fantasia é, na verdade, apenas expressão do lamento de que aqueles tempos felizes tenham passado. Portanto, a superestimação dos primeiros anos da infância vigora de novo nessas fantasias. Uma contribuição interessante a esse tema nos é dada pelo estudo dos sonhos. A interpretação destes ensina que, mesmo em anos posteriores, quando se sonha com o imperador e a imperatriz, essas augustas personagens representam o pai e a mãe.[3] Assim, a superestimação infantil dos pais também é conservada nos sonhos do adulto normal.

FREUD, Sigmund. Obras completas vol. 8. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 419 a 424.



[1] Ou, literalmente, “sonhos diurnos”.

[2] Cf. “As fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade” [1908], onde também se faz referência à literatura sobre o tema.

[3] Cf. Interpretação dos sonhos, [1900], 8a ed., p. 242 [cap. VI, “O trabalho do sonho”, seção E].


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