BISSEXUALIDADE
Noção que Freud introduziu na psicanálise
por influência de Wilhelm Fliess: todo ser humano teria constitucionalmente
disposições sexuais simultaneamente masculinas e femininas que surgem nos
conflitos que o sujeito enfrenta para assumir o seu próprio sexo.
É, sem dúvida nenhuma, na influência de
Fliess que devemos buscar as origens da noção de bissexualidade no movimento
psicanalítico. Ela estava presente na literatura filosófica e psiquiátrica dos
anos 1890, mas foi Fliess que se fez seu defensor junto a Freud, como atesta a
sua correspondência.
A teoria da bissexualidade fundamenta-se,
em primeiro lugar, em dados da anatomia e da embriologia: “Um certo grau de
hermafroditismo anatômico é normal. Em todo indivíduo, macho ou fêmea,
encontram-se vestígios do aparelho genital do sexo oposto [...]. Desses fatos
anatômicos, conhecidos já há muito tempo, decorre a noção de um organismo
bissexual na sua origem, que, no decurso da evolução, orienta-se para a
monossexualidade conservando alguns restos do sexo atrofiado.”
W. Fliess atribuía um grande significado
aos fatos que indicam uma bissexualidade biológica; a bissexualidade é um
fenômeno humano universal, que não se limita, por exemplo, ao caso patológico
da homossexualidade; acarreta consequências psicológicas essenciais. É assim
que Fliess interpreta a teoria freudiana do recalque invocando o conflito entre
as tendências masculinas e femininas que existe em todos os indivíduos; Freud
resume nestes termos a interpretação de Fliess: “O sexo [...] que domina na
pessoa teria recalcado no inconsciente a representação psíquica do sexo
vencido.”
Freud não definiu francamente a sua
posição sobre o problema da bissexualidade; ele próprio reconhece em 1930 que “a
teoria da bissexualidade contém ainda numerosas obscuridades e que não podemos
deixar de estar seriamente embaraçados em psicanálise por não termos podido
encontrar ainda a sua ligação com a teoria das pulsões”. Freud sempre manteve a
importância psicológica da bissexualidade, mas o seu pensamento contém reservas
e hesitações acerca do problema, as quais podem ser agrupadas do seguinte modo:
1. O conceito de bissexualidade suporia
uma apreensão clara do par masculinidade-feminidade; ora, como Freud observou,
estes conceitos apresentam uma significação diferente conforme sejam tomados
nos níveis biológico, psicológico ou sociológico; estas significações estão
muitas vezes misturadas e não permitem estabelecer equivalências termo a termo
entre cada um desses níveis.
2. Freud critica a concepção de Fliess por
sexualizar o mecanismo psicológico do recalque, entendendo por “sexualizar”, "fundamentar a sua origem em bases biológicas”. Efetivamente, essa concepção
leva a determinar a priori a modalidade do conflito defensivo, pois a
força recalcadora está do lado do sexo biológico e o recalcado é o sexo oposto.
Ao que Freud objeta “... que existem nos indivíduos dos dois sexos moções
pulsionais tanto masculinas como femininas que, umas e outras, podem tornar-se
inconscientes por recalque”. Embora Freud, em Análise terminável e
interminável (Die endliche und die unendliche Analyse, 1937),
pareça, apesar de tudo, aproximar-se da concepção de Fliess ao admitir que é
“... aquilo que vai contra o sexo do sujeito que sofre o recalque” (inveja do
pênis na mulher, atitude feminina no homem), isso acontece num texto que
insiste na importância do complexo de castração, cujos dados biológicos não são
suficientes para justificá-lo.
3. Pode-se imaginar que Freud tenha tido
uma grande dificuldade em conciliar a ideia de bissexualidade biológica com
aquela que vai se afirmando com nitidez cada vez maior na sua obra: a da
preponderância do falo para ambos os sexos.
LAPLANCHE
e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise.
São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 55 e 56.
BISSEXUALIDADE, FREUD E KINSEY
Por mais que muitas figuras históricas
tenham tido relacionamentos com mais de um gênero, “bissexual” é um rótulo
moderno. Hoje, a definição mais comum é sentir atração pelo próprio e por
outros sexos ou gêneros, independentemente de quaisquer preferências.
A revista de São Francisco Anything
that moves: beyond the myts of bisexuality publicou seu “Manifesto
Bissexual” em 1990 – o primeiro documento de ativistas a conceituar a
bissexualidade como a conhecemos. Consciente da diversidade de opiniões e
experiências, o manifesto se recusou a oferecer uma única definição. Descreveu
principalmente a bissexualidade em oposição aos estereótipos bifóbicos que se
estendem até hoje: não é binária, não sugere que existem apenas dois gêneros e
não se presta à promiscuidade ou infidelidade mais do que qualquer outra
identidade.
“Bissexual” já teve muitos
significados. Sexólogos no fim do século XIX usavam amplamente a palavra para
descrever o que hoje chamamos de “intersexo”. Alguns citavam a teoria da
bissexualidade primordial, que defende que nossos ancestrais tinham características
sexuais masculinas e femininas. A atração por múltiplos sexos foi colocada como
um retrocesso a esse estado primordial.
No início do século XX, os psicólogos
começaram a usar “bissexual” para se referirem à psique em fez de a
características físicas. Influenciado por seu amigo cirurgião Wilhelm Fliess,
Sigmund Freud descreveu a “bissexualidade psíquica” como o estado natural de
ter traços psicológicos masculinos e femininos e sugeriu que todas as pessoas
nascem com uma multiplicidade de sentimentos sexuais.
Em seus relatórios sobre desejo nas
décadas de 1940 e 1950, o sexólogo americano Alfred Kinsey não usou o termo
“bissexual” para descrever a sexualidade, mas hoje qualquer pessoa entre 2 e 5
em sua “escala Kinsey” pode se definir como tal. De fato, sua pesquisa mostrou
a quantidade de americanos que se sentiam atraídos por mais de um gênero. (...)
A pesquisa de Kinsey era na forma de
entrevistas – primeiro com alunos em Indiana e depois com participantes nos
Estados Unidos. Ele coletou pessoalmente histórias sexuais detalhadas, usando
um questionário com mais de cem perguntas. Kinsey e sua equipe acabariam
reunindo 18 mil histórias.
Depois de fundar o Institue for Sex
Research (ISR) em 1947, Kinsey publicou seu trabalho em dois livros
inovadores: Sexual Behavior in the Human Male (1948) e Sexual
Behavior in the Human Female (1953) – ambos escritos com os colaboradores
Wardell Pomeroy e Clyde Martin.
Juntos, os relatórios venderam quase 1
milhão de cópias e garantiram evidências de que a atração e os comportamentos
homossexuais eram comuns – na verdade, a “maior proporção” dos homens que
responderam às perguntas tinha alguma experiência homossexual.
A equipe de Kinsey usou uma escala de
sete pontos para catalogar as histórias sexuais coletadas. Um “0” era
“exclusivamente heterossexual”, um “1” era “predominantemente heterossexual,
apenas incidentalmente homossexual”. Essa escala foi publicada em Sexual
Behavior in the Human Male junto com pesquisas mostrando que uma quantidade
significativa de pessoas não se encaixava nas categorias de totalmente
heterossexual ou homossexual.
O
livro da história LGBTQUAPEN+ Rio de Janeiro: Globo
Livros, 2024. p. 164, 165, 262 e 263.
FREUD E SUA DIFICULDADE DE COMPREENDER A ALMA E A SEXUALIDADE
FEMININA
Ernst Jones escreve (Sigmund Freud:
Life and Work. Vol. 2. Londres e Nova Iorque. p. 468): “Pouca dúvida existe
de que Freud julgava a psicologia das mulheres mais enigmática que a dos
homens. Disse uma vez a Marie Bonaparte: ‘A grande questão que jamais foi
respondida e que ainda não fui capaz de responder, apesar de meus trinta anos
de pesquisa da alma feminina, é: O que quer uma mulher?’”
Prefácio
a Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos.
In: Freud, Sigmund. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Vol.
XIX. p. 276.
Isto é tudo o que tinha a lhes dizer
sobre a feminilidade. Certamente é incompleto e fragmentário, e nem sempre
parece amigável. Mas não esqueçam que retratamos a mulher apenas na medida em
que o seu ser é determinado por sua função sexual. Tal influência vai muito
longe, é verdade, mas não perdemos de vista que uma mulher também há de ser um
indivíduo humano em outros aspectos. Se quiserem saber mais sobre a
feminilidade, interroguem suas próprias vivências, ou dirijam-se aos
escritores, ou esperem até que a ciência possa lhes dar informação mais
profunda e coerente.
FREUD,
Sigmund. A feminilidade. In: Obras completas. Volume 18. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 293.
Sabemos menos sobre a vida sexual da
menina pequena do que sobre a do menino. Não precisamos nos envergonhar por
essa diferença; afinal, também a vida sexual da mulher adulta é um dark
continent [continente escuro] para a psicologia.
FREUD,
Sigmund. A questão da análise leiga. In: Obras completas. Volume 17. São
Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 164.
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