Módulo 28

 BISSEXUALIDADE




Noção que Freud introduziu na psicanálise por influência de Wilhelm Fliess: todo ser humano teria constitucionalmente disposições sexuais simultaneamente masculinas e femininas que surgem nos conflitos que o sujeito enfrenta para assumir o seu próprio sexo.

É, sem dúvida nenhuma, na influência de Fliess que devemos buscar as origens da noção de bissexualidade no movimento psicanalítico. Ela estava presente na literatura filosófica e psiquiátrica dos anos 1890, mas foi Fliess que se fez seu defensor junto a Freud, como atesta a sua correspondência.

A teoria da bissexualidade fundamenta-se, em primeiro lugar, em dados da anatomia e da embriologia: “Um certo grau de hermafroditismo anatômico é normal. Em todo indivíduo, macho ou fêmea, encontram-se vestígios do aparelho genital do sexo oposto [...]. Desses fatos anatômicos, conhecidos já há muito tempo, decorre a noção de um organismo bissexual na sua origem, que, no decurso da evolução, orienta-se para a monossexualidade conservando alguns restos do sexo atrofiado.”

W. Fliess atribuía um grande significado aos fatos que indicam uma bissexualidade biológica; a bissexualidade é um fenômeno humano universal, que não se limita, por exemplo, ao caso patológico da homossexualidade; acarreta consequências psicológicas essenciais. É assim que Fliess interpreta a teoria freudiana do recalque invocando o conflito entre as tendências masculinas e femininas que existe em todos os indivíduos; Freud resume nestes termos a interpretação de Fliess: “O sexo [...] que domina na pessoa teria recalcado no inconsciente a representação psíquica do sexo vencido.”

Freud não definiu francamente a sua posição sobre o problema da bissexualidade; ele próprio reconhece em 1930 que “a teoria da bissexualidade contém ainda numerosas obscuridades e que não podemos deixar de estar seriamente embaraçados em psicanálise por não termos podido encontrar ainda a sua ligação com a teoria das pulsões”. Freud sempre manteve a importância psicológica da bissexualidade, mas o seu pensamento contém reservas e hesitações acerca do problema, as quais podem ser agrupadas do seguinte modo:

1. O conceito de bissexualidade suporia uma apreensão clara do par masculinidade-feminidade; ora, como Freud observou, estes conceitos apresentam uma significação diferente conforme sejam tomados nos níveis biológico, psicológico ou sociológico; estas significações estão muitas vezes misturadas e não permitem estabelecer equivalências termo a termo entre cada um desses níveis.

2. Freud critica a concepção de Fliess por sexualizar o mecanismo psicológico do recalque, entendendo por “sexualizar”, "fundamentar a sua origem em bases biológicas”. Efetivamente, essa concepção leva a determinar a priori a modalidade do conflito defensivo, pois a força recalcadora está do lado do sexo biológico e o recalcado é o sexo oposto. Ao que Freud objeta “... que existem nos indivíduos dos dois sexos moções pulsionais tanto masculinas como femininas que, umas e outras, podem tornar-se inconscientes por recalque”. Embora Freud, em Análise terminável e interminável (Die endliche und die unendliche Analyse, 1937), pareça, apesar de tudo, aproximar-se da concepção de Fliess ao admitir que é “... aquilo que vai contra o sexo do sujeito que sofre o recalque” (inveja do pênis na mulher, atitude feminina no homem), isso acontece num texto que insiste na importância do complexo de castração, cujos dados biológicos não são suficientes para justificá-lo.

3. Pode-se imaginar que Freud tenha tido uma grande dificuldade em conciliar a ideia de bissexualidade biológica com aquela que vai se afirmando com nitidez cada vez maior na sua obra: a da preponderância do falo para ambos os sexos.

LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 55 e 56.


BISSEXUALIDADE, FREUD E KINSEY

 

         Por mais que muitas figuras históricas tenham tido relacionamentos com mais de um gênero, “bissexual” é um rótulo moderno. Hoje, a definição mais comum é sentir atração pelo próprio e por outros sexos ou gêneros, independentemente de quaisquer preferências.

         A revista de São Francisco Anything that moves: beyond the myts of bisexuality publicou seu “Manifesto Bissexual” em 1990 – o primeiro documento de ativistas a conceituar a bissexualidade como a conhecemos. Consciente da diversidade de opiniões e experiências, o manifesto se recusou a oferecer uma única definição. Descreveu principalmente a bissexualidade em oposição aos estereótipos bifóbicos que se estendem até hoje: não é binária, não sugere que existem apenas dois gêneros e não se presta à promiscuidade ou infidelidade mais do que qualquer outra identidade.

         “Bissexual” já teve muitos significados. Sexólogos no fim do século XIX usavam amplamente a palavra para descrever o que hoje chamamos de “intersexo”. Alguns citavam a teoria da bissexualidade primordial, que defende que nossos ancestrais tinham características sexuais masculinas e femininas. A atração por múltiplos sexos foi colocada como um retrocesso a esse estado primordial.

         No início do século XX, os psicólogos começaram a usar “bissexual” para se referirem à psique em fez de a características físicas. Influenciado por seu amigo cirurgião Wilhelm Fliess, Sigmund Freud descreveu a “bissexualidade psíquica” como o estado natural de ter traços psicológicos masculinos e femininos e sugeriu que todas as pessoas nascem com uma multiplicidade de sentimentos sexuais.

         Em seus relatórios sobre desejo nas décadas de 1940 e 1950, o sexólogo americano Alfred Kinsey não usou o termo “bissexual” para descrever a sexualidade, mas hoje qualquer pessoa entre 2 e 5 em sua “escala Kinsey” pode se definir como tal. De fato, sua pesquisa mostrou a quantidade de americanos que se sentiam atraídos por mais de um gênero. (...)

         A pesquisa de Kinsey era na forma de entrevistas – primeiro com alunos em Indiana e depois com participantes nos Estados Unidos. Ele coletou pessoalmente histórias sexuais detalhadas, usando um questionário com mais de cem perguntas. Kinsey e sua equipe acabariam reunindo 18 mil histórias.

         Depois de fundar o Institue for Sex Research (ISR) em 1947, Kinsey publicou seu trabalho em dois livros inovadores: Sexual Behavior in the Human Male (1948) e Sexual Behavior in the Human Female (1953) – ambos escritos com os colaboradores Wardell Pomeroy e Clyde Martin.

         Juntos, os relatórios venderam quase 1 milhão de cópias e garantiram evidências de que a atração e os comportamentos homossexuais eram comuns – na verdade, a “maior proporção” dos homens que responderam às perguntas tinha alguma experiência homossexual.

         A equipe de Kinsey usou uma escala de sete pontos para catalogar as histórias sexuais coletadas. Um “0” era “exclusivamente heterossexual”, um “1” era “predominantemente heterossexual, apenas incidentalmente homossexual”. Essa escala foi publicada em Sexual Behavior in the Human Male junto com pesquisas mostrando que uma quantidade significativa de pessoas não se encaixava nas categorias de totalmente heterossexual ou homossexual.        

O livro da história LGBTQUAPEN+ Rio de Janeiro: Globo Livros, 2024. p. 164, 165, 262 e 263. 



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FREUD E SUA DIFICULDADE DE COMPREENDER A ALMA E A SEXUALIDADE FEMININA

 

         Ernst Jones escreve (Sigmund Freud: Life and Work. Vol. 2. Londres e Nova Iorque. p. 468): “Pouca dúvida existe de que Freud julgava a psicologia das mulheres mais enigmática que a dos homens. Disse uma vez a Marie Bonaparte: ‘A grande questão que jamais foi respondida e que ainda não fui capaz de responder, apesar de meus trinta anos de pesquisa da alma feminina, é: O que quer uma mulher?’”

Prefácio a Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In: Freud, Sigmund. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Vol. XIX. p. 276.

 

         Isto é tudo o que tinha a lhes dizer sobre a feminilidade. Certamente é incompleto e fragmentário, e nem sempre parece amigável. Mas não esqueçam que retratamos a mulher apenas na medida em que o seu ser é determinado por sua função sexual. Tal influência vai muito longe, é verdade, mas não perdemos de vista que uma mulher também há de ser um indivíduo humano em outros aspectos. Se quiserem saber mais sobre a feminilidade, interroguem suas próprias vivências, ou dirijam-se aos escritores, ou esperem até que a ciência possa lhes dar informação mais profunda e coerente.

FREUD, Sigmund. A feminilidade. In: Obras completas. Volume 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 293.

 

         Sabemos menos sobre a vida sexual da menina pequena do que sobre a do menino. Não precisamos nos envergonhar por essa diferença; afinal, também a vida sexual da mulher adulta é um dark continent [continente escuro] para a psicologia.

FREUD, Sigmund. A questão da análise leiga. In: Obras completas. Volume 17. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 164.


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