Módulo 38

 DESMENTIDO



   DESMENTIDO EM FERENCZI


     Na literatura brasileira sobre a teoria de Ferenczi, encontramos comumente os termos negação e desmentido. Adotamos o termo desmentido (Verleugnung) em contraste com a palavra negação, para diferenciar o desmentido do mecanismo defensivo chamado negação (Verneinung), também empregado por Freud.

         No artigo de Freud (1925) A negativa (em alemão, die Verneinung), ele faz alusão a um mecanismo de defesa utilizado quando o sujeito inconscientemente não quer reconhecer um desejo, uma fantasia, um sentimento ou um pensamento próprio dele. A negação trata-se, nesse caso, da recusa do sujeito de tomar conhecimento de uma realidade interna ou externa que lhe causa muita dor.

Anna Freud[1] afirma que este é um mecanismo defensivo tipicamente utilizado por (...) quem o ego não está capacitado a reconhecer e comprovar criticamente a realidade dos fatos. Portanto, ao se defrontar com a realidade insuportável, negam-na, e a substituem por alguma fantasia agradável.

Este, certamente, não é o caso da negação que o adulto faz da realidade à criança, nas situações traumáticas expostas por Ferenczi. O desmentido aqui corresponde ao termo alemão Verleugnung, mais próximo ao radical lügen, que significa mentir. Verleugnung foi traduzido por Hans como:

"(...) um tipo específico de 'negação' que se aproxima de 'desmentir' e 'renegar'. A palavra alemã Verleugnung permanece ambígua entre a verdade e a mentira. Seus significados podem referir-se a: 1) desmentir algo; 2) agir contra a própria natureza; 3) negar a própria presença (quando usado na forma reflexiva significa 'mandar dizer que não está presente'). O termo quase sempre se refere a uma tentativa de negar algo afirmado ou admitido antes."[2]

O desmentido é a desconfirmação decisiva por parte de um adulto significativo à criança, que, após ter sofrido uma violência perpetrada por outrem, o procura ansiosa, num esforço último de ter legitimada a sua percepção da realidade.

O desmentido é um acontecimento-chave na teoria do trauma porque, mais grave do que os abusos sexuais, o abuso psicológico ou os abusos físicos propriamente ditos, ele faz com que a inscrição psíquica do acontecimento fique registrada apenas em uma das partes clivadas de seu ego, tornando impraticável à criança acreditar nos fatos que realmente ocorreram.

Consequentemente, a criança desenvolve um padrão de funcionamento deficitário de percepção da realidade que faz com que ela passe a duvidar também de seus próprios sentimentos penosos e ambivalentes. Ferenczi esclareceu:

"O pior [em comparação aos choques emocionais da criança frente às violências cometidas pelos adultos] é realmente a negação, a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento ou até mesmo ser espancado e repreendido quando se manifesta a paralisia traumática do pensamento ou dos movimentos; é isso, sobretudo, o que torna o traumatismo patogénico."[3]

Para Ferenczi, quando a criança encontra no ambiente, geralmente representado por um adulto significativo para ela - isto é, alguém amado, de confiança e de quem ela dependa -, a proteção, a compreensão e a continência para lidar com o acontecimento doloroso, ela consegue o apoio necessário de que precisa para elaborar a experiência psiquicamente, superando seu choque e sem ter de clivar o seu ego (reação aloplástica).

A respeito dos efeitos reparadores suscitados pelo suporte acolhedor após os ataques perturbadores, Ferenczi afirmou:

“Tem-se mesmo a impressão de que esses choques graves são superados, sem amnésia nem sequelas neuróticas, se a mãe estiver presente, com toda sua compreensão, ternura e, o que é mais raro, uma total sinceridade.”[4]

Vemos, portanto, que na concepção ferencziana, é o desmentido, ou seja, a negação da realidade no momento em que a criança anseia desesperadamente por apoio e conforto, e se depara com a recusa de reconhecimento dos fatos por parte dos adultos, o agente que efetiva o trauma.

Essa efetivação do trauma em função do desmentido tem como consequências:

1) a inscrição psíquica da violência apenas em uma parte do ego que fica dissociada de sua totalidade. Nesse ponto é importante lembrar que se a vítima da agressão for um bebê cujas funções egóicas ainda não se desenvolveram a ponto de que ela possa registrar em sua memória os fatos, os sentimentos e as suas impressões a respeito dos acontecimentos, o registro do evento traumático é feito em seu corpo, como uma espécie de memória corporal, tipicamente presente nos pacientes psicossomáticos;

2) o fato de o adulto transformar as sensações e os sentimentos reais da criança abusada em fantasias confusas e intoleráveis;

3) a identificação da criança com o agressor - o que reforça a culpa que ela já se sente, em função de seus sentimentos edípicos ambivalentes em relação ao adulto e às experiências impactantes;

4) o enfraquecimento da crença da criança em suas próprias percepções da realidade; e finalmente

5) a ocorrência da(s) cisão(ões) do ego como meio de defesa diante do cenário intolerável (reação autoplástica).

Transpondo essa conjuntura para a situação relacional entre o analista e o analisando, Ferenczi observou que o desmentido pode facilmente ocorrer na situação analítica, muitas vezes de modo sutil. Ele explicou:

"O que é traumático?: uma agressão ou suas consequências? A ‘response’ por uma capacidade de adaptação das crianças, mesmo muito pequenas, às agressões sexuais ou outras passionais é muito maior do que [se] imagina. A confusão traumática sobrevém, na maioria das vezes, em consequência de a agressão e a reação serem desmentidas pelos adultos, sob o peso da má consciência, e tratadas até como merecedoras de punição. Brincadeira cruel com os pacientes. A maneira como a psicanálise age na relação entre médico e paciente deve causar, neste último, o efeito de uma crueldade deliberada. Acolhemos o paciente com amabilidade, procuramos assegurar a transferência e, enquanto o paciente se atormenta, fumamos tranquilamente nosso charuto numa poltrona, fazemos num tom entediado observações convencionais que produzem o efeito de frases feitas e, ocasionalmente, tiramos um cochilo. No melhor dos casos, fazemos esforços enormes para vencer os bocejos de tédio e para nos mostrar amáveis e compassivos."[5]

Assim:

"... é imprescindível que o analista considere como uma realidade os episódios traumáticos delatados por seus pacientes, sob pena de, ao duvidar de sua veracidade, incorrer em um retraumatismo."[6]

Na análise dos pacientes traumatizados, é o ato de o analista acreditar nas experiências reais relatadas pelo paciente - independentemente das experiências fantasísticas correlatas - o que facultará a integração dos registros traumáticos clivados que ficaram apartados em decorrência do desmentido.

É importante observar o que Ferenczi acentuou em sua teorização sobre o trauma: o desmentido é uma negação relacional que envolve duas ou mais pessoas numa rede perversa de sofrimento em que o agressor desmente a criança, atacando sua percepção da realidade. O adulto a contradiz e contesta sua afirmação ou insinuação substituindo-a por sua versão mentirosa e contrária à realidade (mentir é afirmar alguma coisa que se sabe ser contrária à verdade).

E é exatamente essa mentira, sem a reparação posterior, o que torna o trauma efetivo:

"... a menina sente-se emporcalhada, tratada de maneira inconveniente, quereria queixar-se à mãe, mas é impedida pelo homem (intimidação, desmentido). A criança fica sem recursos e confusa, deveria lutar para vencer a vontade da autoridade adulta, a incredulidade da mãe etc. Não consegue, naturalmente, e encontra-se diante da alternativa: o mundo é inteiro perverso, ou sou eu que estou errada? E escolhe esta última solução. Feito isso, sobrevêm os deslocamentos e as falsas interpretações de sensações, que culminam finalmente nos sintomas descritos."[7]

Frente à negação perversa da realidade, por parte do suposto adulto de confiança, a criança indefesa se vê desamparada, confusa, com medo e impossibilitada de elaborar os acontecimentos aterrorizadores e incompreensíveis.

Em decorrência, se o desmentido não for desmascarado, ela acaba por se identificar com seu agressor e desenvolve uma forte tendência de repetir no futuro, com outros objetos, o mesmo padrão de comportamento cindido e perverso.      

KAHTUNI, Haydée Christinne e SANCHES, Gisela Paraná. Dicionário do pensamento de Sándor Ferenczi: uma contribuição para a clínica psicanalítica contemporânea. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 118 a 122. 

 

DESMENTIDO EM FREUD

 

O desmentido da realidade é uma ação psíquica que consiste em rejeitar a realidade de uma percepção em virtude das significações traumatizantes que ela pode comportar. O vocábulo alemão Verleugnung foi igualmente traduzido em francês pela palavra desaveu (renegação).

         O desmentido da realidade só veio a ocupar tardiamente o seu lugar como conceito na obra de Freud, que se contentou por muito tempo em descrever clinicamente a recusa pelo menino em reconhecer a ausência de pênis na menina, sem recorrer à escolha de um termo específico para a designar. Assim, em Sobre as teorias sexuais das crianças (1908) e em O pequeno Hans (1909), ele observa esse fenômeno, que ele considera ser a rejeição de uma evidência perceptiva. “Os meninos”, escreve ele, “não duvidam de que todas as pessoas com quem convivem têm um aparelho genital semelhante ao deles; inclusive, sustentam com tenacidade essa convicção, defendendo-a  contra os fatos contraditórios que a observação não tarda em revelar-lhes, e só a abandonam, com frequência, depois de ter passado por graves lutas internas”. Freud qualifica esse período de três a cinco anos de “fálico”, dado o superinvestimento narcísico da representação do pênis que constitui a sua característica ordinária – sobretudo, é claro, no menino, que considera impensável que um semelhante digno da maior estima seja desprovido de um, a fortiori, a mãe dele.

         Quanto à menina, não tinha como rejeitar da mesma maneira a percepção de sua própria ausência de pênis. Em algumas, entretanto, observa Freud, “a esperança de, apesar de tudo, obterem um dia um pênis e assim virem a ser semelhantes aos homens pode manter-se até uma época inacreditavelmente tardia e tornar-se o motivo de atos estranhos que, sem isso, seriam incompreensíveis”.

         A partir de suas Conferências introdutórias sobre psicanálise (1916-17), Freud passa a utilizar sistematicamente o verbo verleugnen para designar o ato psíquico que consiste em rejeitar uma percepção como impensável – o que James Strachey traduziu, a partir de então, por disavow. A forma substantiva – die Verleugnung (disavowal) só virá a designar um pouco mais tarde (1925) o conceito metapsicológico. É sobretudo nos últimos anos de sua obra, com o Esboço de psicanálise e A divisão do ego no processo de defesa (1938), que Freud vai esforçar-se por estabelecer a especificidade do desmentido, situando-o na tópica particular do Eu clivado.

         Em A organização genital infantil (1923), Freud reafirma que só o órgão masculino desempenha um papel significativo no espírito das crianças de ambos os sexos por volta dos três anos de idade. Elas não podem deixar de considerar a ausência do pênis como resultado de uma castração. São, portanto, as modalidades de superação do desmentido inicial que vão determinar o complexo de castração onde o sujeito se situa. Ao retomar essa consideração crucial em Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (1925), Freud postula a castração como um efeito a posteriori: o caráter ameaçador da ausência possível do pênis só adquire todo o seu poder psíquico após um período mais ou menos extenso de desmentido.

         Ele observa igualmente que a persistência de tal desmentido para além da idade fálica, na adolescência e na idade adulta, pode gerar uma forma de doença mental: “O processo que gostaria de descrever como desmentido (Verleugnung)”, escreve ele, “(...) não parece nem raro nem muito perigoso para a vida mental da criança. Mas nos adultos introduziria uma psicose.” Aliás, Freud tinha publicado duas observações relativas a homens jovens, nos quais o desmentido da ausência do pênis parecia determinar o surgimento de sintomas psicóticos. O primeiro era o famoso “Homem dos lobos”, sobre o qual Freud afirma que ele “rejeitou” (verwarf) a “realidade da castração”, que “não queria saber de nada disso (...). Nenhum juízo era formulado a respeito da questão da existência (da castração), mas as coisas passavam-se como se ela não existisse.” É a rejeição como impensável da ausência possível do pênis que engendra nesse paciente o retorno alucinatório do dedo mindinho cortado[8]. Assim é que, para Freud, o Eu psicótico opera um desmentido da realidade perceptiva, assim como o do neurótico rechaça determinadas exigências pulsionais.

         Mas Freud vai ampliar (...) a noção de clivagem do Eu (já mencionada a respeito do “Homem dos Lobos”) para a apresentar como o corolário tópico do mecanismo do desmentido: é a justaposição possível no psiquismo de pelo menos duas disposições mentais incompatíveis e que parecem estar sob a influência uma da outra. Trata-se menos, portanto, de considerar o desmentido como desmentido “de” alguma coisa do que como desmentido mútuo, desqualificação “entre” dois registros do Eu clivado: um que leva em conta a ordem simbólica da castração e concebe a diferença dos sexos, enquanto que o outro permanece a serviço do tudo-ou-nada narcísico-fálico. “Semelhantes desmentidos produzem-se com frequência”, observa Freud, “e não somente entre os fetichistas.         

MIJOLLA, Alain (Org.) Dicionário Internacional da Psicanálise. Vol. A-L. Rio de Janeiro: Imago, 2005. Verbete: Desmentido (da realidade). p. 478 a 480.

 



[1] FREUD, Anna. O ego e os mecanismos de defesa (1936). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990.

[2] HANS, Luiz. Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 302.

[3] FERENCZI, Sándor. Análises de crianças com adultos (1931). In: Obras Completas, v. 4. São Paulo: Martins Fontes.  p. 79.

[4] FERENCZI, Sándor. Análises de crianças com adultos (1931). In: Obras Completas, v. 4. São Paulo: Martins Fontes. p. 78 - 80.

[5] FERENCZI, Sándor. Análises de crianças com adultos (1931). In: Obras Completas, v. 4. São Paulo: Martins Fontes. p. 223 e 224.

[6] SANCHEZ, Gisela Paraná. A psicanálise pode ser diferente. São Paulo: Casa do Psicólogo Editora, 2005.

[7] FERENCZI, Sándor. Diário Clínico (1932). São Paulo: Martins Fontes, 1990. p. 116.

[8] Na análise do caso do “Homem dos Lobos” (1918), Freud descreve a alucinação que seu paciente experimentara em sua infância. Em seu delírio, Serguei Constantinovitch Pankejeff acreditou que, descuidadamente, havia cortado seu dedo mínimo quando utilizava seu canivete para fazer um corte na casca de uma árvore. Em um momento subsequente, contudo, constatou que nada havia acontecido, pois seu dedo estava ileso. Freud interpreta o delírio do seu paciente como um desmentido da ausência do pênis comum entre as crianças, mas que na vida adulta assume dimensões perversas ou psicóticas.



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