DESMENTIDO
DESMENTIDO EM FERENCZI
Na literatura brasileira
sobre a teoria de Ferenczi, encontramos comumente os termos negação e
desmentido. Adotamos o termo desmentido (Verleugnung) em
contraste com a palavra negação, para diferenciar o desmentido do
mecanismo defensivo chamado negação (Verneinung), também
empregado por Freud.
No artigo de Freud (1925) A negativa (em alemão, die
Verneinung), ele faz alusão a um mecanismo de defesa utilizado quando o
sujeito inconscientemente não quer reconhecer um desejo, uma fantasia,
um sentimento ou um pensamento próprio dele. A negação trata-se, nesse caso, da
recusa do sujeito de tomar conhecimento de uma realidade interna ou externa que
lhe causa muita dor.
Anna
Freud[1] afirma que este é um
mecanismo defensivo tipicamente utilizado por (...) quem o ego não está
capacitado a reconhecer e comprovar criticamente a realidade dos fatos.
Portanto, ao se defrontar com a realidade insuportável, negam-na, e a
substituem por alguma fantasia agradável.
Este,
certamente, não é o caso da negação que o adulto faz da realidade à criança,
nas situações traumáticas expostas por Ferenczi. O desmentido aqui corresponde
ao termo alemão Verleugnung, mais próximo ao radical lügen, que
significa mentir. Verleugnung foi traduzido por Hans como:
"(...)
um tipo específico de 'negação' que se aproxima de 'desmentir' e 'renegar'. A
palavra alemã Verleugnung permanece ambígua entre a verdade e a mentira.
Seus significados podem referir-se a: 1) desmentir algo; 2) agir contra a
própria natureza; 3) negar a própria presença (quando usado na forma reflexiva
significa 'mandar dizer que não está presente'). O termo quase sempre se refere
a uma tentativa de negar algo afirmado ou admitido antes."[2]
O
desmentido é a desconfirmação decisiva por parte de um adulto
significativo à criança, que, após ter sofrido uma violência perpetrada por
outrem, o procura ansiosa, num esforço último de ter legitimada a sua percepção
da realidade.
O
desmentido é um acontecimento-chave na teoria do trauma porque, mais grave do
que os abusos sexuais, o abuso psicológico ou os abusos físicos propriamente
ditos, ele faz com que a inscrição psíquica do acontecimento fique registrada
apenas em uma das partes clivadas de seu ego, tornando impraticável à criança
acreditar nos fatos que realmente ocorreram.
Consequentemente,
a criança desenvolve um padrão de funcionamento deficitário de percepção da
realidade que faz com que ela passe a duvidar também de seus próprios
sentimentos penosos e ambivalentes. Ferenczi esclareceu:
"O
pior [em comparação aos choques emocionais da criança frente às violências
cometidas pelos adultos] é realmente a negação, a afirmação de que não
aconteceu nada, de que não houve sofrimento ou até mesmo ser espancado e
repreendido quando se manifesta a paralisia traumática do pensamento ou dos
movimentos; é isso, sobretudo, o que torna o traumatismo patogénico."[3]
Para
Ferenczi, quando a criança encontra no ambiente, geralmente representado por um
adulto significativo para ela - isto é, alguém amado, de confiança e de quem ela
dependa -, a proteção, a compreensão e a continência para lidar com o
acontecimento doloroso, ela consegue o apoio necessário de que precisa para
elaborar a experiência psiquicamente, superando seu choque e sem ter de clivar
o seu ego (reação aloplástica).
A
respeito dos efeitos reparadores suscitados pelo suporte acolhedor após os
ataques perturbadores, Ferenczi afirmou:
“Tem-se
mesmo a impressão de que esses choques graves são superados, sem amnésia nem
sequelas neuróticas, se a mãe estiver presente, com toda sua compreensão,
ternura e, o que é mais raro, uma total sinceridade.”[4]
Vemos,
portanto, que na concepção ferencziana, é o desmentido, ou seja, a negação da
realidade no momento em que a criança anseia desesperadamente por apoio e
conforto, e se depara com a recusa de reconhecimento dos fatos por parte dos
adultos, o agente que efetiva o trauma.
Essa
efetivação do trauma em função do desmentido tem como consequências:
1)
a inscrição psíquica da violência apenas em uma parte do ego que fica
dissociada de sua totalidade. Nesse ponto é importante lembrar que se a vítima
da agressão for um bebê cujas funções egóicas ainda não se desenvolveram a
ponto de que ela possa registrar em sua memória os fatos, os sentimentos e as
suas impressões a respeito dos acontecimentos, o registro do evento traumático
é feito em seu corpo, como uma espécie de memória corporal, tipicamente
presente nos pacientes psicossomáticos;
2)
o fato de o adulto transformar as sensações e os sentimentos reais da criança
abusada em fantasias confusas e intoleráveis;
3)
a identificação da criança com o agressor - o que reforça a culpa que ela já se
sente, em função de seus sentimentos edípicos ambivalentes em relação ao adulto
e às experiências impactantes;
4)
o enfraquecimento da crença da criança em suas próprias percepções da
realidade; e finalmente
5)
a ocorrência da(s) cisão(ões) do ego como meio de defesa diante do cenário
intolerável (reação autoplástica).
Transpondo
essa conjuntura para a situação relacional entre o analista e o analisando,
Ferenczi observou que o desmentido pode facilmente ocorrer na situação
analítica, muitas vezes de modo sutil. Ele explicou:
"O
que é traumático?: uma agressão ou suas consequências? A ‘response’ por
uma capacidade de adaptação das crianças, mesmo muito pequenas, às agressões
sexuais ou outras passionais é muito maior do que [se] imagina. A confusão
traumática sobrevém, na maioria das vezes, em consequência de a agressão e a
reação serem desmentidas pelos adultos, sob o peso da má consciência, e
tratadas até como merecedoras de punição. Brincadeira cruel com os pacientes. A
maneira como a psicanálise age na relação entre médico e paciente deve causar,
neste último, o efeito de uma crueldade deliberada. Acolhemos o paciente com
amabilidade, procuramos assegurar a transferência e, enquanto o paciente se
atormenta, fumamos tranquilamente nosso charuto numa poltrona, fazemos num tom
entediado observações convencionais que produzem o efeito de frases feitas e,
ocasionalmente, tiramos um cochilo. No melhor dos casos, fazemos esforços
enormes para vencer os bocejos de tédio e para nos mostrar amáveis e
compassivos."[5]
Assim:
"...
é imprescindível que o analista considere como uma realidade os episódios
traumáticos delatados por seus pacientes, sob pena de, ao duvidar de sua
veracidade, incorrer em um retraumatismo."[6]
Na
análise dos pacientes traumatizados, é o ato de o analista acreditar nas
experiências reais relatadas pelo paciente - independentemente das experiências
fantasísticas correlatas - o que facultará a integração dos registros
traumáticos clivados que ficaram apartados em decorrência do desmentido.
É
importante observar o que Ferenczi acentuou em sua teorização sobre o trauma: o
desmentido é uma negação relacional que envolve duas ou mais pessoas
numa rede perversa de sofrimento em que o agressor desmente a criança, atacando
sua percepção da realidade. O adulto a contradiz e contesta sua afirmação
ou insinuação substituindo-a por sua versão mentirosa e contrária à realidade
(mentir é afirmar alguma coisa que se sabe ser contrária à verdade).
E
é exatamente essa mentira, sem a reparação posterior, o que torna o trauma
efetivo:
"...
a menina sente-se emporcalhada, tratada de maneira inconveniente, quereria
queixar-se à mãe, mas é impedida pelo homem (intimidação, desmentido). A
criança fica sem recursos e confusa, deveria lutar para vencer a vontade da
autoridade adulta, a incredulidade da mãe etc. Não consegue, naturalmente, e
encontra-se diante da alternativa: o mundo é inteiro perverso, ou sou eu que
estou errada? E escolhe esta última solução. Feito isso, sobrevêm os
deslocamentos e as falsas interpretações de sensações, que culminam finalmente
nos sintomas descritos."[7]
Frente
à negação perversa da realidade, por parte do suposto adulto de confiança, a
criança indefesa se vê desamparada, confusa, com medo e impossibilitada de
elaborar os acontecimentos aterrorizadores e incompreensíveis.
Em
decorrência, se o desmentido não for desmascarado, ela acaba por se identificar
com seu agressor e desenvolve uma forte tendência de repetir no futuro, com
outros objetos, o mesmo padrão de comportamento cindido e perverso.
KAHTUNI, Haydée
Christinne e SANCHES, Gisela Paraná. Dicionário do pensamento de Sándor
Ferenczi: uma contribuição para a clínica psicanalítica contemporânea. Rio
de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 118 a 122.
DESMENTIDO
EM FREUD
O desmentido da realidade é uma ação
psíquica que consiste em rejeitar a realidade de uma percepção em virtude das
significações traumatizantes que ela pode comportar. O vocábulo alemão Verleugnung
foi igualmente traduzido em francês pela palavra desaveu (renegação).
O desmentido da realidade só veio a
ocupar tardiamente o seu lugar como conceito na obra de Freud, que se contentou
por muito tempo em descrever clinicamente a recusa pelo menino em reconhecer a
ausência de pênis na menina, sem recorrer à escolha de um termo específico para
a designar. Assim, em Sobre as teorias sexuais das crianças (1908) e em O
pequeno Hans (1909), ele observa esse fenômeno, que ele considera ser a
rejeição de uma evidência perceptiva. “Os meninos”, escreve ele, “não duvidam
de que todas as pessoas com quem convivem têm um aparelho genital semelhante ao
deles; inclusive, sustentam com tenacidade essa convicção, defendendo-a contra os fatos contraditórios que a
observação não tarda em revelar-lhes, e só a abandonam, com frequência, depois
de ter passado por graves lutas internas”. Freud qualifica esse período de três
a cinco anos de “fálico”, dado o superinvestimento narcísico da representação
do pênis que constitui a sua característica ordinária – sobretudo, é claro, no
menino, que considera impensável que um semelhante digno da maior estima seja
desprovido de um, a fortiori, a mãe dele.
Quanto à menina, não tinha como
rejeitar da mesma maneira a percepção de sua própria ausência de pênis. Em
algumas, entretanto, observa Freud, “a esperança de, apesar de tudo, obterem um
dia um pênis e assim virem a ser semelhantes aos homens pode manter-se até uma
época inacreditavelmente tardia e tornar-se o motivo de atos estranhos que, sem
isso, seriam incompreensíveis”.
A partir de suas Conferências
introdutórias sobre psicanálise (1916-17), Freud passa a utilizar
sistematicamente o verbo verleugnen para designar o ato psíquico que
consiste em rejeitar uma percepção como impensável – o que James Strachey
traduziu, a partir de então, por disavow. A forma substantiva – die
Verleugnung (disavowal) só virá a designar um pouco mais tarde
(1925) o conceito metapsicológico. É sobretudo nos últimos anos de sua obra,
com o Esboço de psicanálise e A divisão do ego no processo de defesa
(1938), que Freud vai esforçar-se por estabelecer a especificidade do desmentido,
situando-o na tópica particular do Eu clivado.
Em A organização genital infantil
(1923), Freud reafirma que só o órgão masculino desempenha um papel
significativo no espírito das crianças de ambos os sexos por volta dos três
anos de idade. Elas não podem deixar de considerar a ausência do pênis como
resultado de uma castração. São, portanto, as modalidades de superação do
desmentido inicial que vão determinar o complexo de castração onde o sujeito se
situa. Ao retomar essa consideração crucial em Algumas consequências
psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (1925), Freud postula a
castração como um efeito a posteriori: o caráter ameaçador da ausência
possível do pênis só adquire todo o seu poder psíquico após um período mais ou
menos extenso de desmentido.
Ele observa igualmente que a
persistência de tal desmentido para além da idade fálica, na adolescência e na
idade adulta, pode gerar uma forma de doença mental: “O processo que gostaria
de descrever como desmentido (Verleugnung)”, escreve ele, “(...) não
parece nem raro nem muito perigoso para a vida mental da criança. Mas nos
adultos introduziria uma psicose.” Aliás, Freud tinha publicado duas
observações relativas a homens jovens, nos quais o desmentido da ausência do
pênis parecia determinar o surgimento de sintomas psicóticos. O primeiro era o
famoso “Homem dos lobos”, sobre o qual Freud afirma que ele “rejeitou” (verwarf)
a “realidade da castração”, que “não queria saber de nada disso (...). Nenhum
juízo era formulado a respeito da questão da existência (da castração), mas as
coisas passavam-se como se ela não existisse.” É a rejeição como impensável da
ausência possível do pênis que engendra nesse paciente o retorno alucinatório
do dedo mindinho cortado[8]. Assim é que, para Freud,
o Eu psicótico opera um desmentido da realidade perceptiva, assim como o do
neurótico rechaça determinadas exigências pulsionais.
Mas Freud vai ampliar (...) a noção de
clivagem do Eu (já mencionada a respeito do “Homem dos Lobos”) para a
apresentar como o corolário tópico do mecanismo do desmentido: é a justaposição
possível no psiquismo de pelo menos duas disposições mentais incompatíveis e
que parecem estar sob a influência uma da outra. Trata-se menos, portanto, de
considerar o desmentido como desmentido “de” alguma coisa do que como
desmentido mútuo, desqualificação “entre” dois registros do Eu clivado: um que
leva em conta a ordem simbólica da castração e concebe a diferença dos sexos,
enquanto que o outro permanece a serviço do tudo-ou-nada narcísico-fálico.
“Semelhantes desmentidos produzem-se com frequência”, observa Freud, “e não
somente entre os fetichistas.
MIJOLLA, Alain
(Org.) Dicionário Internacional da Psicanálise. Vol. A-L. Rio de
Janeiro: Imago, 2005. Verbete: Desmentido (da realidade). p. 478 a 480.
[1]
FREUD, Anna. O ego e os mecanismos de defesa (1936). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1990.
[2]
HANS, Luiz. Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1996. p. 302.
[3]
FERENCZI, Sándor. Análises de crianças com adultos (1931). In: Obras
Completas, v. 4. São Paulo: Martins Fontes. p. 79.
[4]
FERENCZI, Sándor. Análises de crianças com adultos (1931). In: Obras
Completas, v. 4. São Paulo: Martins Fontes. p. 78 - 80.
[5]
FERENCZI, Sándor. Análises de crianças com adultos (1931). In: Obras
Completas, v. 4. São Paulo: Martins Fontes. p. 223 e 224.
[6]
SANCHEZ, Gisela Paraná. A psicanálise pode ser diferente. São Paulo:
Casa do Psicólogo Editora, 2005.
[7]
FERENCZI, Sándor. Diário Clínico (1932). São Paulo: Martins Fontes,
1990. p. 116.
[8]
Na
análise do caso do “Homem dos Lobos” (1918), Freud descreve a alucinação que
seu paciente experimentara em sua infância. Em seu delírio, Serguei
Constantinovitch Pankejeff acreditou que, descuidadamente, havia cortado seu
dedo mínimo quando utilizava seu canivete para fazer um corte na casca de uma
árvore. Em um momento subsequente, contudo, constatou que nada havia
acontecido, pois seu dedo estava ileso. Freud interpreta o delírio do seu
paciente como um desmentido da ausência do pênis comum entre as crianças, mas
que na vida adulta assume dimensões perversas ou psicóticas.
CLIQUE EM CIMA PARA AMPLIAR
CLIQUE EM CIMA PARA AMPLIAR
Nenhum comentário:
Postar um comentário