Módulo 47

 CURA PSICANALÍTICA



         Freud afirmou claramente: “o objetivo a atingir no tratamento será sempre a cura” (1904: O método psicanalítico de Freud) e “a psicanálise nasceu por necessidade médica. Originou-se da necessidade de ajudar os pacientes neuróticos, que não haviam encontrado alívio por meio das curas de repouso, da hidroterapia ou dos tratamentos elétricos” (1919: Prefácio a Ritual: estudos psicanalíticos, de Reik).

         Muitas das discussões que opõem os psicanalistas sobre o problema da “cura” provêm da concepção diferente que têm do sentido a dar-lhe. O modelo médico deixa a entender que se trata de um desaparecimento de sintomas ou de lesões, até mesmo de uma resitutio ad integrum[1] que não seria pensável no domínio psíquico. A hipnose e a sugestão faziam desaparecer, tão mágica quanto temporariamente, os distúrbios, donde o seu abandono por um Freud preocupado com as causas mais profundas e que tinha, a partir dos Estudos sobre a histeria, fixado os limites do seu poder: “Encontrareis grande vantagem, no caso de êxito, em transformar vossa angústia histérica em infortúnio banal. Com um psiquismo são, sereis mais capazes de lutar contra o segundo[2]” (1895: Estudos sobre a histeria).

         Na análise do “pequeno Hans” ele precisa: “uma psicanálise não é uma pesquisa científica imparcial, mas um ato terapêutico; não procura, por essência, provar, mas modificar alguma coisa” (1909: O pequeno Hans: análise da fobia de um menino de 5 anos). O objetivo é, portanto, a “mudança”, a capacidade que o paciente terá de mobilizar de outra maneira as suas defesas, de administrar mais eficazmente os seus conflitos com uma realidade tanto exterior como interior cujo retorno à cura não saberia abolir. Numa nota de O Ego e o Id, Freud escreve que o objetivo da análise “consiste não em tornar impossíveis as reações mórbidas, mas em dar ao Ego a liberdade de se decidir num sentido ou num outro”[3] (1923: O Eu e o Id).

         Para tanto, cumpre desembaraçar o caminho, o que constitui o trabalho da cura: “mostrar o inconsciente ao pré-consciente” (1900: A interpretação dos sonhos), “vencer as resistências interiores” (1905: Sobre a psicoterapia), “substituir o recalcamento pela condenação”[4] (1909: O pequeno Hans: análise da fobia de um menino de 5 anos), realizar a “progressão do princípio do prazer para o princípio de realidade”[5] (1916: Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico), “provocar, pela abolição das resistências e o exame dos recalcamentos do paciente, a unificação e o reforço mais extensos do seu Ego, poupar-lhe o dispêndio psíquico dedicado aos seus conflitos internos, moldar, a partir do que ele é, o que de melhor ele pode vir a ser em função de suas disposições e capacidades, torná-lo, tanto quanto possível, capaz de realizar e de fruir”[6] (1923: Psicanálise e teoria da libido). Nesta ótica, “a sublimação parcial ou completa representa”, escreveu ele a James Jackson Putnam em 14 de maio de 1911, “a finalidade da terapia analítica e o meio pelo qual ela promove todas as formas de desenvolvimento mais elevado”[7].

         O aspecto “educativo” de um tal programa jamais foi escondido por Freud, que insistiu por diversas vezes sobre essa perspectiva de “pós-educação” (1916-17: Conferências introdutórias sobre psicanálise, 1940: Esboço de psicanálise), embora tenha sublinhado que, para tal propósito, o psicanalista não devia cair no papel de um educador[8]. Também, por várias vezes e até o fim, ergueu-se contra a ideia de que uma “normalidade esquemática” seria o objetivo do tratamento, acrescentando que “a análise deve instaurar as condições psicológicas mais favoráveis às funções do Ego; feito isso, a sua tarefa estará cumprida”[9] (1937: Análise terminável e interminável).

         A par do obstáculo da cura devido aos benefícios secundários da doença, a tomada em consideração do instinto de morte e da força da compulsão de repetição vai levar Freud a aprofundar a noção de “reação terapêutica negativa”[10]. Esta, ao satisfazer o sentimento de culpa inconsciente do paciente e sua necessidade de castigo, ou seja, o seu masoquismo, representa um dos mais importantes obstáculos à feliz evolução de uma cura psicanalítica.

         O cuidado com que Freud descreveu essa reação, e sua insistência na necessidade de tentar analisá-la, mostram a persistência de seus esforços com vistas à “cura”, no sentido de “mudança” em que ele entendia, apesar dos comentários mais desencantados no final de sua vida. A ampliação das indicações de tratamento ou de seus derivados acentuou ainda mais a perenidade desse objetivo, que certas asserções de Jacques Lacan pareciam desvalorizar. Foi a 5 de fevereiro de 1957 (...) que ele exprimiu com maior clareza uma ideia que depois seria largamente deformada tanto por seus adversários como por seus partidários, ao comentar a constatação de que “o fim de uma análise terapêutica é definido pelo fato de ela ter atingido o seu objetivo, que é a cura, ou seja, que a análise terapêutica tem sempre um propósito bastante limitado. Acontece que – como eu disse para o escândalo de certas orelhas - a cura possui sempre um caráter de benefício adicional, cujo mecanismo não está orientado para a cura como um fim. Não estou dizendo nada que Freud não tivesse já articulado poderosamente, que toda a inflexão da análise no sentido da cura como fim – fazendo da análise um puro e simples meio para um fim preciso – resulta em algo que estaria ligado ao meio mais curto, o que só pode falsear a análise, que tem um outro e muito diferente desígnio”[11]. Lembremos que estas asserções situavam-se no contexto da querela que o opunha à noção de “análise terapêutica” e às intenções de “cura” (“desaparecimento do medo e possibilidade de amar e ser amado”) preconizadas por Sacha Nacht e os psicanalistas do Instituto de Psicanálise de Paris, e que iam no sentido da “psicanálise pura” atribuída por Lacan à psicanálise didática.

         Devem, de qualquer modo, ser postas em paralelo com uma formulação de Freud que só não lhes é comparável se não levar em conta a observação de que o que está em causa é sofrimento sintomático e não a “cura”; mas, como foi dito no começo tudo depende do que se queira entender sob esse termo: “a eliminação dos sintomas de sofrimento não é procurada como um objetivo particular mas, na condição de uma rigorosa conduta da análise, que ocorra, por assim dizer, como um benefício anexo”[12] (1923: Psicanálise e teoria da libido). (...)

         O fim da análise suscitou numerosos estudos, desde o próprio Freud (1937: Análise terminável e interminável), e depende dos objetivos que o psicanalista e o analisante se propuseram. A “cura” do sintoma nunca foi a finalidade primordial do tratamento e Jacques Lacan pôde falar de “cura adicional” (guérison de surcroít). De qualquer forma, subsiste o fato de que uma pessoa tem todo o direito de esperar da análise a atenuação do sofrimento psíquico que a levou a empreender o tratamento, e a capacidade de uma melhor gestão das respostas patológicas fornecidas aos riscos e incertezas da vida pela compulsão de repetição.

         A abertura do tratamento psicanalítico a patologias mais graves, borderlines e doenças psicóticas modificou a ideia que se fazia de sua finalidade dos meios para aí se chegar. A fórmula de Freud “Wo Es war sol Ich werden” (“Onde estava o Isso, deve estar o Eu”) e suas traduções possíveis fizeram correr rios de tinta porque cada um a interpreta à sua maneira[13] (...).

         Mas o término do tratamento não é o fim do processo psicanalítico, o qual prossegue através da prática da auto-análise ou da volta ao divã do mesmo psicanalista, ou mesmo de um outro, do outro sexo ou de uma escola diferente, para reforçar a permanente elaboração.[14]

MIJOLLA, Alain de. Dicionário internacional de psicanálise. Vol. 1. Verbete Cura e Cura psicanalítica. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. 427 a 430.



[1] Restitutio ad integrum é um expressão em latim, frequentemente utilizada no âmbito do direito, que significa 'restaurar à condição original'. 

[2] “Quando prometo a meus pacientes ajuda ou melhora por meio de um tratamento catártico, muitas vezes me defronto com a seguinte objeção: ‘Ora, o senhor mesmo me diz que minha doença provavelmente está relacionada com as circunstâncias e os acontecimentos de minha vida. O senhor, de qualquer maneira, não pode alterá-los. Como se propõe ajudar-me, então?’ E tem-me sido possível dar esta resposta: ‘Sem dúvida o destino acharia mais fácil do que eu aliviá-lo de sua doença. Mas você poderá convencer-se de que haverá muito a ganhar se conseguirmos transformar seu sofrimento histérico numa infelicidade comum. Com uma vida mental restituída à saúde, você estará mais bem armado contra essa infelicidade’”. FREUD, Sigmund. Estudos sobre a histeria.  In: Obras Completas Vol. II. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 216.

 [3] “Talvez dependa também de a pessoa do analista permitir que seja colocada, pelo doente, no lugar de seu ideal do Eu; e a isto se relaciona a tentação de desempenhar, ante o paciente, o papel de profeta, salvador de almas, redentor. Como as regras da análise se opõem resolutamente a essa utilização da personalidade médica, há que honestamente conceder que temos aí um novo limite à ação da psicanálise, que, afinal, deve proporcionar ao Eu do paciente a liberdade de decidir de uma ou outra maneira, e não tornar impossíveis as reações patológicas.” O eu e o id. In: Obras Completas. Vol. 16. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2011. p. 63.

[4] “A análise não desfaz o efeito da repressão; os instintos que naquele tempo foram reprimidos permanecem reprimidos, mas ela alcança esse efeito por outra via, substitui o processo de repressão, que é automático e excessivo, pelo controle moderado e adequado, com ajuda das mais elevadas instâncias psíquicas; numa palavra: ela substitui a repressão pela condenação. Ela nos parece fornecer a prova, há muito buscada, de que a consciência tem uma função biológica, que sua entrada em cena está ligada a uma significativa vantagem.” Análise da fobia de um garoto de cinco anos (“O pequeno Hans”) In: Obras Completas, Vol. 8. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2011. p. 165.

[5] “O trabalho psicanalítico continuamente se defronta com a tarefa de induzir o paciente a renunciar a uma dose imediata e diretamente atingível de prazer. Não se pede a ele que renuncie a todo prazer; talvez não se possa esperar isso de nenhum ser humano, e até mesmo a religião é obrigada a apoiar sua exigência de que o prazer terreno seja posto de lado prometendo proporcionar em seu lugar uma quantidade incomparavelmente maior de um prazer superior no outro mundo. Não, apenas se pede ao paciente que renuncie às satisfações que inevitavelmente trarão consequências prejudiciais. Sua privação deve ser apenas temporária; ele só tem de aprender a trocar uma dose imediata de prazer por uma mais segura, ainda que adiada. Ou, em outras palavras, sob a orientação do médico, pede-se a ele que avance do princípio do prazer para o princípio da realidade pelo qual o ser humano maduro se distingue de uma criança. Nesse processo educativo, dificilmente se pode dizer que a compreensão interna (insight) mais nítida do médico desempenha um papel decisivo; via de regra, ele só poderia dizer a seu paciente o que a própria razão deste pode dizer-lhe. Mas saber uma coisa em nossa própria mente não é o mesmo que ouvi-la de alguém de fora. O médico desempenha o papel eficaz estranho; faz uso da influência que um ser humano exerce sobre outro. Ou - recordando que é hábito da psicanálise substituir o que é derivado e estiolado pelo que é original e básico - digamos que o médico, em seu trabalho educativo, faz uso de um dos componentes do amor. Nesse trabalho de educação posterior, provavelmente nada mais faz do que repetir o processo que, de início, tornou possível qualquer espécie de educação. Lado a lado com as exigências da vida, o amor é o grande educador, e é pelo amor daqueles que se encontram mais próximos dele que o ser humano incompleto é induzido a respeitar os ditames da necessidade e a poupar-se do castigo que sobrevém a qualquer infração dos mesmos.” FREUD, Sigmund. Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico In: Obras Completas Vol. XIV. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 186.

[6] Sobre esta passagem freudiana de Psicanálise e teoria da libido, na nota 11 ela é apresentada de maneira mais completa.

[7] A mesma ideia está exposta de maneira mais minuciosa em Cinco lições de psicanálise: “Por causa das repressões, o neurótico perdeu muitas fontes de energia mental que lhe teriam sido de grande valor na formação do caráter e na luta pela vida. Conhecemos uma solução muito mais conveniente, a chamada ‘sublimação’, pela qual a energia dos desejos infantis não se anula mas ao contrário permanece utilizável, substituindo-se o alvo de algumas tendências por outro mais elevado, quiçá não mais de ordem sexual. Exatamente os componentes do instinto sexual se caracterizam por essa faculdade de sublimação, de permutar o fim sexual por outro mais distante e de maior valor social. Ao reforço de energia para nossas funções mentais, por essa maneira obtido, devemos provavelmente as maiores conquistas da civilização. A repressão prematura exclui a sublimação do instinto reprimido; desfeito aquele, está novamente livre o caminho para a sublimação.” FREUD, Sigmund. Cinco lições de psicanálise. In: Obras completas Vol. XI. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 64.

[8] Ver a nota 5: “Ele (o psicanalista não educador, mas “pós-educador”) só poderia dizer a seu paciente o que a própria razão deste pode dizer-lhe”.

[9] Freud recomenda “que se evitem quaisquer expectativas exageradas e não se estabeleçam para a análise tarefas excessivas. Nosso objetivo não será dissipar todas as peculiaridades do caráter humano em benefício de uma ‘normalidade’ esquemática, nem tampouco exigir que a pessoa que foi ‘completamente analisada’ não sinta paixões nem desenvolva conflitos internos. A missão da análise é garantir as melhores condições psicológicas possíveis para as funções do ego; com isso, ela se desincumbiu de sua tarefa.” FREUD, Sigmund. Análise terminável e interminável. In: Obras Completas Vol. XXIII. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 161.

[10] Reação terapêutica negativa: resistência do paciente à cura, envolvendo elementos diversos que podem incluir a compulsão à repetição, o benefício secundário da doença, o sentimento inconsciente de culpa, o masoquismo e a pulsão de morte.

[11] Lacan está provavelmente citando a passagem de Psicanálise e teoria da libido em que Freud afirma que na psicanálise “a remoção dos sintomas não é buscada como objetivo especial, mas resulta quase como um ganho secundário no correto exercício da análise”. Para mais detalhes, ver nota 12.

[12] “Na psicanálise, a inevitável influência sugestiva do médico é dirigida para a tarefa, que cabe ao doente, de superar as resistências, ou seja, de realizar o trabalho de cura. O cuidadoso manejo da técnica protege do perigo de falsear, mediante a sugestão, os dados da memória do paciente. Em geral, porém, justamente o despertar das resistências protege contra os efeitos enganadores da influência sugestiva. Pode-se dizer que o objetivo do tratamento é, pela eliminação das resistências e averiguação das repressões do doente, produzir a mais ampla harmonização e fortalecimento do seu Eu, poupar-lhe o dispêndio psíquico em conflitos internos e dele obter o melhor que permitam suas disposições e capacidades, tornando-o, na medida do possível, capaz de trabalhar e de fruir. A remoção dos sintomas não é buscada como objetivo especial, mas resulta quase como um ganho secundário no correto exercício da análise. O psicanalista respeita a peculiaridade do paciente, não busca moldá-lo conforme os seus — do médico — ideais pessoais e se alegra ao não precisar dar conselhos e, em vez disso, poder despertar a iniciativa do analisando.” Psicanálise e teoria da libido. In: Obras Completas, Vol. 8. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2011. p. 266. Esta passagem, portanto, demonstra a origem freudiana da ideia lacaniana de eliminação dos sintomas como “cura adicional”

[13] “É fácil imaginar que determinadas práticas místicas possam conseguir perturbar as relações normais entre as diferentes regiões da mente, de modo que, por exemplo, a percepção pode ser capaz de captar acontecimentos, nas profundezas do ego e no id, os quais de outro modo lhe seriam inacessíveis. Pode-se, porém, com segurança, duvidar se a esse caminho nos levará às últimas verdades das quais é de se esperar a salvação. Não obstante, pode-se admitir que os intentos terapêuticos da psicanálise têm escolhido uma linha de abordagem semelhante. Seu propósito é, na verdade, fortalecer o ego, fazê-lo mais independente do superego, ampliar seu campo de percepção e expandir sua organização, de maneira a poder assenhorear-se de novas partes do id. Onde estava o id, ali estará o ego. É uma obra de cultura - não diferente da drenagem do ZuiderZee.” FREUD, Sigmund. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise, Conferência XXXI. In: Obras Completas Vol. 22. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 84.

[14] Em Análise terminável e interminável, Freud fala de “términos do tratamento”, porém em sentido provisório, e não absoluto. Um tratamento termina quando determinados conjuntos de elementos, relacionados a circunstâncias específicas da vida psíquica de um paciente, estão devidamente analisados e elaborados. Contudo, circunstâncias novas futuras podem evocar a necessidade de auto-análise, novos tratamentos e diferentes processos de elaboração, o que aponta, portanto, para um “processo psicanalítico” potencialmente interminável. 


CURA COMO “EMPATIA”, EM FERENCZI

 

         Para Sándor Ferenczi, o processo de cura no trabalho com os pacientes traumatizados ultrapassava os limites da interpretação e do manejo da transferência, tal como se propõe a análise clássica.

         Ferenczi (...) não podia prescindir de um relacionamento entre o paciente e o analista orientado pela indulgência, empatia e verdadeira simpatia por parte deste último.

         Sua sensibilidade clínica, o uso que fazia do tato psicológico e da capacidade empática são exemplos das ferramentas de trabalho que ele utilizou na busca da cura:

“ (...) O que convinha prescrever como antídoto para a dor não era somente uma explicação, mas também a ternura e o amor apaixonados (e uma empatia verdadeira, não simulada” (Ferenczi, Diário Clínico).

Considerando que Ferenczi enfatizava a importância da qualidade do relacionamento do par analítico, ressaltamos que não se trata apenas da postura empática do analista frente a seu paciente, mas também da simpatia em si, ou seja, da expressão de um sentimento caloroso e espontâneo que o analista expressa na relação com seu paciente que também produz efeitos terapêuticos, principalmente nos pacientes mais regredidos e traumatizados.

Conforme escreveu em seu Diário clínico ao refletir sobre “O que cura em psicanálise”, Ferenczi considerou:

        “ (...) A paciente tinha chegado com muito entusiasmo e ficara chocada desde o começo com minha frieza. (...) Uma simpatia realmente humana nos momentos de comoção real, ou seja, um pouco de guérir (em francês, “curar”), suscitou quase imperceptivelmente uma mudança (...). Converto-me, de certo modo, num símbolo vivo de bondade e sabedoria, cuja simples presença curava e repunha as coisas em ordem. (...) Inserir esse ‘curar’ na psicoterapia de maneira que convém e no lugar certo não é certamente uma tarefa inteiramente indigna” (Ferenczi, Diário Clínico).

         (...) Pensamos que o que torna possível ao analista ser genuinamente simpático para com seus pacientes, sensibilizando-se com o sofrimento do outro e assim criando um ambiente facilitador para o processo de cura, é basicamente o analista ter uma personalidade dominada pelas pulsões de vida.  Isso significa dizer que se trata de a pessoa real do analista ser predominantemente movida pela força da pulsão de vida, estar orientado para os movimentos de ligações, integrações, crescimento, autopreservação, amor etc., condição fundamental para a facilitação da cura e da produção de efeitos terapêuticos eficazes e duradouros na personalidade do paciente.

         Para Ferenczi, simpático por natureza, a simpatia genuína, aliada ao conhecimento técnico, era um ingrediente fundamental para o caminho da cura, porque aproximava emocionalmente o analista do seu paciente e vice-versa. Nessa perspectiva humanista de psicanálise, o relacionamento em si entre o analista e seu paciente, pode fazer a diferença entre uma terapia curativa e uma terapia não curativa.

KAHTUNI, Haydée Christinne e SANCHES, Gisela Paraná. Dicionário sobre o pensamento de Sándor Ferenczi: uma contribuição à clínica psicanalítica contemporânea. Rio de Janeiro: Elsevier; São Paulo: FAPESP; 2009. p. 113 a 115.

 

CURA COMO “CUIDADO”, EM WINNICOTT

 

         A cura em psicanálise é um tema importante e merece atenção, pois se relaciona com todo o processo e com os resultados do tratamento, revelando sua eficácia.

         Pesquisando a etimologia da palavra, encontramos cura, do latim cura, como um substantivo que significa “cuidado”, “atenção”, “diligência”, “zelo”. O verbo curar tem o significado de “cuidar de”, “olhar por”, “dar atenção a”, “tratar”.

         Na história da evolução semântica, o termo cura se expandiu, penetrando em várias áreas e em diferentes tipos de civilizações, como podemos ver nos exemplos a seguir:

1 – o cura (padre, popularmente utilizado no espanhol), que cuida espiritualmente dos seus paroquianos;

2 – o curador (de família, de menores), como o profissional que cuida legal e judicialmente dos bens e dos interesses daqueles que não estão capacitados de cuidar de si;

3 – o curador (de artes), pessoa responsável pela organização, manutenção e exposição de acervos de arte;

4 – curativo (de feridas); envolve a limpeza e o tratamento tópico de ferimentos com remédios e material adequado;

5 – curandeiro; o sujeito a quem se atribui a função de curar com rezas ou feitiçaria.

         Chamamos atenção para o fato de que nas diversas acepções presentes da palavra cura em diferentes culturas, o conceito essencial de “cuidar de” ou “tratar” manteve-se evidenciado.

         Há registro escrito de que já no século I a.C., o vocábulo cura foi usado no sentido de tratamento por Aulus Cornelius Celsus, um médico romano. Ele escreveu em sua enciclopédia médica: “In hoc casu médici cura (cuidado médico) esse debet, ut morbum mutet”, que significa: “Nesse caso, o cuidado médico é indicado para mudar o curso da doença”.

KAHTUNI, Haydée Christinne e SANCHES, Gisela Paraná. Dicionário sobre o pensamento de Sándor Ferenczi: uma contribuição à clínica psicanalítica contemporânea. Rio de Janeiro: Elsevier; São Paulo: FAPESP; 2009. p. 112.

 

Em um nível mais superficial, a palavra 'cura' assinala um denominador comum entre a prática médica e a religiosa. Acredito que "cura", em suas raízes, signifique cuidado. Mais ou menos por volta de 1700, ela começou a degenerar, passando a designar um tratamento médico, como, por exemplo, a “cura pela água”. O século seguinte acrescentou-lhe implicação do desfecho bem-sucedido. A saúde se restaura no paciente, a doença é destruída, exorciza-se o espírito mau. (...)

         Entre os dois extremos do uso da palavra, pode-se encontrar, na prática médica, um hiato. A cura, no sentido do tratamento, da bem-sucedida erradicação da doença e sua causa, tende hoje a se sobrepor ao cuidado. Os médicos estão engajados em tempo integral na batalha de impedir que os dois significados da palavra percam contato um com o outro. Pode-se dizer que o clínico geral cuida, mas precisa conhecer os tratamentos. Em contraste, o especialista se vê com problemas de diagnóstico e erradicação da doença, e tem que se esforçar para lembrar do seguinte: o ato de cuidar também pertence à prática médica. Num desses dois extremos, o médico é um assistente social, e na verdade quase que pesca em águas do cura, ou seja, do ministro religioso. No outro extremo, o médico é um técnico, tanto ao fazer o diagnóstico quanto ao aplicar o tratamento.

         Devido à vastidão do campo, é inevitável a especialização num sentido ou no outro. No entanto, como pensadores, não estamos dispensados de tentar uma abordagem holística.

         O que as pessoas querem de nós, médicos e enfermeiros? O que queremos de nossos colegas, quando somos nós que ficamos imaturos, doentes? Essas condições - imaturidade, doença e velhice - trazem consigo a dependência. Segue-se que é necessário haver confiabilidade. Como médicos, assistentes sociais e enfermeiros, somos chamados a ser confiáveis de modo humano (e não mecânico), a ter confiabilidade construída sobre nossa atitude geral. (...)

         A psicanálise não se resume a interpretar o inconsciente reprimido; é, antes, o fornecimento de um contexto profissional para a confiança, no qual esse trabalho pode ocorrer. (...)

         É útil que se entenda o alívio imediato que o conceito de doença e de estar doente traz ao legitimar a dependência; aquele que é bem-sucedido na reivindicação de ser doente se beneficia de um modo específico. "Você está doente" me leva naturalmente para a posição daquele que responde à necessidade (...) no sentido de cuidado. O médico, o enfermeiro, ou seja lá quem for, assume naturalmente uma atitude profissional. Isso não acarreta nenhum sentido de superioridade. (...) Precisamos de nossos pacientes tanto quanto eles precisam de nós. (...)

         No papel de cuidadores-curadores, não somos moralistas. Dizer a um paciente que ele é mau por estar doente não o ajuda. Também não ajuda enquadrar um ladrão, ou um asmático, ou um esquizofrênico em categorias morais. O paciente sabe que não estamos lá para julgá-lo.

         Somos muito honestos, verdadeiros, dizendo que não sabemos quando realmente não sabemos. Uma pessoa doente não suporta nosso medo da verdade. Se temos medo da verdade, melhor escolher outra profissão que não a de médico.

         Nós nos tornamos confiáveis num sentido que só podemos sustentar em nosso trabalho profissional. A questão é que, sendo pessoas (profissionalmente) confiáveis, protegemos nossos pacientes do imprevisto. Muitos deles sofrem precisamente disso; ficam sujeitos ao imprevisto como parte de seu padrão de vida. Não podemos nos dar ao luxo de encaixar-nos nesse padrão. Atrás da imprevisibilidade está a confusão mental e, atrás dela, pode-se encontrar o caos, em termos de funcionamento somático, isto é, uma ansiedade impensável que é física. (...) Tomando um ponto muito simples: se um médico chega à hora combinada, ele experimenta um reforço tremendo na confiança que o paciente tem nele [ou nela], e isso não é importante apenas para evitar angústia no paciente, mas também para incrementar os processos somáticos que tendem à cicatrização, talvez mesmo de tecidos, com certeza de funções. (...)

         Para alcançar efeitos mais profundos em nós a partir de nosso reconhecimento da doença, e portanto das necessidades de dependência de nossos pacientes, precisamos considerar questões mais complexas de estrutura da personalidade. Por exemplo: um sinal de saúde mental é a capacidade que um indivíduo tem para penetrar, através da imaginação, e ainda assim de modo preciso, nos pensamentos, nos sentimentos e nas esperanças de outra pessoa, e também de permitir que outra pessoa faça o mesmo com ele. Suponho que padres e médicos cuidadores-curadores sejam bons nesse tipo de coisa, por livre escolha. Exorcistas e curadores através-de-tratamento não precisam disso.

         Talvez uma capacidade exagerada de brincar com identificações cruzadas seja algumas vezes um obstáculo. Mesmo assim, uma avaliação daquilo que estou chamando de capacidade para identificações cruzadas - saber colocar-se no lugar do outro e permitir o inverso - poderia ser uma das características importantes na seleção de estudantes de medicina (se essa capacidade pudesse ser testada). Não resta dúvida de que a identificação cruzada enriquece em muito todas as experiências humanas, e que as pessoas que têm pouca capacidade para isso acabam ficando entediadas e são entediantes. Além disso, não podem exercer nada além de uma função do tipo técnica na prática médica e podem causar muito sofrimento sem perceber. (...) Eu poderia acrescentar aqui uma nota sobre as identificações cruzadas delirantes. Elas realmente causam estragos. (...)

         O médico pode aprender muito com aqueles que se especializam no "cuidar-curar", mais do que no "curar erradicando agentes do mal". (...) O "cuidar-curar" é uma extensão do conceito de "segurar". Começa com o bebê no útero, depois com o bebê no colo, havendo um enriquecimento a partir do processo de crescimento da criança, pois a mãe que conhece aquele bebê específico que ela deu à luz torna esse enriquecimento possível.

         O tema do ambiente facilitador capacitando o crescimento pessoal e o processo maturacional tem que ser uma descrição dos cuidados que o pai e a mãe dispensam, e da função da família. Isso leva à construção da democracia como uma extensão da facilitação familiar, com os indivíduos maduros eventualmente tomando parte de acordo com sua idade e capacidade na política e na manutenção e reconstrução da estrutura política.

         Ao lado disso se encontra o sentido da identidade pessoal, que é essencial a todo ser humano; e só pode se realizar de fato em cada indivíduo em função de uma maternagem satisfatória e de um suprimento ambiental do tipo do "segurar" durante os estágios de imaturidade. O processo maturacional, por si só, não pode conduzir o indivíduo através de seu processo de se tornar indivíduo.

         Portanto, quando falo em cura no sentido do "cuidar-curar", aparece a tendência natural de médicos e enfermeiros a responder às necessidades dos pacientes, mas agora isso é explicitado em termos de saúde: é registrado em termos de dependência natural do indivíduo imaturo, que evoca, nas figuras parentais, a tendência a fornecer condições que incrementem o crescimento individual. Isso não é cura no sentido do tratamento, mas sim no sentido do "cuidar-curar", o assunto (...) que (...) poderia ser o lema de nossa profissão.

         Em termos da doença social, o "cuidar-curar" pode ser mais importante para o mundo do que a "cura-tratamento" e do que todo diagnóstico e prevenção que acompanham aquilo que geralmente se denomina abordagem científica. (...)

         Num contexto profissional, dado o comportamento profissional apropriado, pode ser que o doente encontre uma solução pessoal para problemas complexos da vida emocional e das relações interpessoais; o que fizemos não foi aplicar um tratamento, mas facilitar o crescimento.

         Será pedir muito ao clínico que ele pratique o "cuidar-curar"?  (...)

         Sugiro (...) aplicar os princípios que aprendemos no início de nossas vidas, quando éramos pessoas imaturas e nos foi dado um "cuidar-curar" (...) por nossos pais.

         É sempre importante descobrir que nosso trabalho se vincula a fenômenos inteiramente naturais.

WINNICOTT, Donald. A cura. In: Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1999.  p. 105 e 114.

 

CURA COMO “CRESCIMENTO MENTAL” EM BION

 

O conceito psicanalítico de cura vai muito além do significado latente que o vocábulo sugere – como é o de uma prestação de cuidados, tal como aparece em cura de uma paróquia, curador (de menores), procurador, curativo, descurar, etc.

Da mesma forma, vai além do seu habitual significado manifesto, como é habitualmente empregado na medicina, designando a resolução completa de alguma doença.

Em psicanálise, o conceito de cura deve aludir mais diretamente ao terceiro significado que o termo adquire, qual seja o de um amadurecimento – tal como é empregado para caracterizar um queijo que está maturado, sazonado, o que equivale ao trabalho de uma lenta elaboração psíquica que permita a obtenção de mudanças caracterológicas estáveis e definitivas.

Alguns autores, ao mesmo tempo que apontam uma série de aspectos que sofreram sensíveis transformações durante o processo analítico que justificariam um critério de cura, também alertam para as análises que, aparentando estar tudo evoluindo muito bem, possam não ser mais do que a construção de um falso self, como enfatiza Winnicott, ou curas cosméticas, como as denomina Bion. Este último autor evita o termo cura, preferindo a expressão “crescimento mental”. (...)

Por achar necessário estabelecer nítidas diferenças filosóficas e técnicas com o que se passa no campo da medicina, como também porque nunca existe uma resolução completa do que se passa no abstrato mundo do psiquismo, Bion evita o uso do clássico termo cura para o tratamento psicanalítico. Prefere a expressão crescimento mental, que empresta uma noção mais dinâmica e nunca terminável dentro do sujeito. O modelo clássico de cura pode ser representado com a metáfora de um funil aberto, cheio de conflitos quando se inicia a análise, e que, quando termina, chegam à extremidade fina, terminal do funil. Pode se dizer que Bion inverte o funil, de modo que, à medida que progride a análise, o paciente expande mais o funil, qual um universo em expansão, porquanto mais aumentam sua curiosidade e suas indagações acerca do mundo e de si mesmo.

Para melhor esclarecer o seu conceito de crescimento mental, Bion utiliza o esclarecedor modelo de uma espiral, uma helicoidal, num continuado movimento ascendente e expansivo, de sorte que o paciente pode trazer o mesmo assunto centenas de vezes. Importante é que o analista discrimine se o relato é circular, isto é, repete-se da mesmíssima forma, ou trata-se de um movimento espiralar, no qual os assuntos voltam ao mesmo ponto, porém num plano um pouco acima.

ZIMERMAN, David E. Vocabulário contemporâneo de psicanálise. Verbetes Cura e Crescimento mental. Porto Alegre: Artmed, 2001. p. 90, 91, 94.

 

Toda a análise gira em torno dos mesmos sentimentos, angústias e conflitos básicos que norteiam a vida de qualquer pessoa, à moda de uma "variação em torno dos mesmos temas, para empregar uma linguagem própria do campo da música. Na situação psicanalítica, um critério importante de avaliação do crescimento mental do paciente consiste em verificar se a recorrência dos temas se processa de forma unicamente circular - em cujo caso, parte-se de um ponto e se regressa exatamente ao mesmo ponto e plano - isto é, os relatos do paciente se repetem sempre da mesma maneira, sinal de que a análise possa estar estagnada porque nada de novas mudanças estejam acontecendo, ou se ela evolui de uma forma espiralar. Neste último caso, os fatos narrados pelo analisando continuam sendo repetitivos. No entanto, um observador atento poderá perceber que existem algumas mudanças que comprovam que ele saiu de um ponto e retoma ao mesmo, porém o retomo se dá em um plano acima, movimento este que, sendo repetido sucessivas vezes. empresta uma configuração de uma espiral (tipo um parafuso ou uma mola), em uma forma helicoidal, ascendente, progressiva e expansiva, lembrando a figura de um cone invertido. Para exemplificar, podemos imaginar a situação bastante frequente em que a paciente conta pela centésima vez a briga que teve com seu marido, relato que tanto pode entediar o analista, que já "conhece o começo, meio e fim" da briga conjugal que evolui em um inacabável "círculo", como também é possível que o analista observe detalhes que indicam mudanças - tal como pode ser uma menor intensidade e duração do pugilato entre o casal, menor tempo de "emburramento" de um com o outro, maior período de distanciamento entre uma briga e outra e a possibilidade de que o paciente esteja se dando conta e assuma a parte dele que foi responsável pelo desencadeamento do atrito. Portanto, o fato é o mesmo - a briga -, porém a evolução analítica está sendo em espiral e não em círculo, o que tem um importante significado na marcha da análise rumo a um crescimento mental.

ZIMERMAN, David E. Psicanálise em perguntas e respostas: verdades, mitos e tabus. Porto Alegre: Artmed, 2007. p. 227.


 A EVOLUÇÃO DA TÉCNICA PSICANALÍTICA E SUAS RELAÇÕES COM A NOÇÃO DE CURA PSICANALÍTICA

 

Um leitor menos familiarizado com a obra de Freud em seu contexto total pode ficar confuso diante de certas afirmativas atribuídas a ele, porque perceberá muitas mudanças de significados em certas conceituações por ele formuladas, ou de uma mesma terminologia que designa determinados fenômenos psíquicos. Isso se deve ao fato de que durante os mais de 40 anos em que Freud edificou a psicanálise, na teoria e na técnica, ele próprio constantemente fazia correções, contestações, revisões, exclusões e acréscimos, de sorte que alguma concepção do início de sua obra pode surgir, em forma gradativa, substancialmente modificada nos seus textos escritos até os últimos anos de sua vida. Por essa razão, para acompanharmos os passos evolutivos do criador e gênio da psicanálise, está plenamente justificada a sugestão de que se descreva separadamente, e em ordem cronológica, os diferentes modelos teóricos - com sensíveis repercussões na técnica e nos objetivos primordiais da psicanálise clínica -, que se constituíram como os paradigmas que fundamentaram a prática da psicanálise durante longas décadas. Os referidos paradigmas podem ser sintetizados em cinco modelos.

• Modelo I. Teoria do trauma. O significado psicanalítico da palavra "trauma" refere-se a um fato - realmente acontecido - de que tenha tido alguma importante repercussão no psiquismo do sujeito. No início de sua obra, Freud partiu da concepção de que o conflito psíquico era resultante das "repressões" impostas pelos traumas de uma sedução real, de fundo sexual, que suas jovens pacientes histéricas teriam sofrido quando meninas por parte do pai. Freud enfatizava que essas repressões depositadas no inconsciente retomavam ao consciente sob a forma de sintomas. Daí ele postulou que "os neuróticos sofrem de reminiscências" e que a cura consistiria em "lembrar o que estava esquecido".

• Modelo II. Teoria topográfica: consciente, pré-consciente e inconsciente. Cedo, Freud deu-se conta de que a teoria do trauma era insuficiente para explicar tudo e que os relatos de suas pacientes histéricas nem sempre provinham de seduções reais, mas de fantasias inconscientes. Daí ele propôs a divisão da mente em três lugares (a palavra "lugar", em grego, é topos, daí "teoria topográfica"). A esses diferentes lugares ele denominou "consciente, pré-consciente e inconsciente" (na atualidade, são descritas mais outras instâncias psíquicas), sendo que o paradigma técnico que levasse à cura passou a ser "tornar consciente o que estiver no inconsciente".

• Modelo III. Teoria estrutural: id, ego e superego. Na medida em que se aprofundava na dinâmica psíquica, Freud tropeçava com o campo restrito da teoria topográfica, que ele percebeu que era por demais estática, ampliando-a com a concepção de que a mente comportava-se como uma estrutura, em que diversos elementos interagiam entre si, de forma bastante dinâmica. Dessa forma, ele concebeu uma estrutura tríplice, composta pelo "ld" (com as respectivas pulsões), pelo "Ego" (com o seu conjunto de funções e de representações) e pelo "Superego" (com as ameaças, castigos, etc.). O paradigma técnico da psicanálise foi então formulado como: "onde houver Id (e Superego), o Ego deve estar".

• Modelo IV. Teoria do narcisismo. Embora não tenham sido formulados como uma teoria, os estudos de Freud sobre o narcisismo, inicialmente metapsicológicos porque se fundamentavam em especulações imaginárias (as pulsões libidinais tomavam o próprio corpo como fonte de gratificações libidinais), com algumas modificações, foram ganhando urna comprovação em situações clínicas, abrindo as portas para a mais profunda compreensão do psiquismo primitivo e constituíram-se como sementes que continuam germinando e propiciando inúmeros vértices de abordagem por parte de autores de todas as correntes psicanalíticas. De acordo com o pensamento mais vigente entre os autores, pode-se dizer que, na atualidade, um importante paradigma da psicanálise atual pode ser formulado como "onde estiver Narciso, Édipo deve estar".

• Modelo V. Teoria da dissociação do ego. Nos últimos anos de sua obra, Freud escreveu importantes trabalhos em que concebeu que o psiquismo não funcionava unicamente pela interação e conflitos entre os sistemas, como as pulsões do id contra as proibições do superego, etc. Assim, a essa teoria "intersistêmica" ele acrescentou que também há conflitos "intrassistêmicos", isto é, dentro de uma mesma instância psíquica podem existir conflitos, como é o exemplo de, dentro do ego, um mecanismo de defesa que pode se opor ao outro, etc. Dessa forma, Freud lançou as primeiras sementes que possibilitaram aos pósteros autores desenvolverem uma concepção inovadora dos conflitos intrapsíquicos, o que pode ser exemplificado com os trabalhos de Bion - notável psicanalista britânico - que descreveu a existência concomitante em qualquer pessoa da "parte psicótica e da parte não-psicótica da personalidade", bem como da parte infantil agindo simultaneamente com a pane adulta do sujeito, etc. Creio que duas metáforas podem ilustrar melhor esse conceito de alta relevância na prática analítica contemporânea.

1. Podemos comparar o mundo do psiquismo interior com o mapa geográfico do mundo, em que as regiões são completamente distintas (zonas geladas dos polos junto com zonas tórridas do Equador; ou temperadas de outras continentes, etc.), cada região com suas características especificas. Assim, quem conhece unicamente o polo Norte certamente terá uma ideia equivocada do que, de fato, é o globo terrestre. De forma análoga. qualquer sujeito não pode ser julgado unicamente por um único aspecto de sua personalidade; pelo contrário, na situação analítica, é indispensável que o analista propicie ao paciente a visualização de todas suas distintas partes e de como elas interagem entre si.

2. Uma segunda metáfora consiste no modelo do "arco-íris", ou seja, no entendimento de que a cor branca (por exemplo, a da luz do sol) quando sofre o fenômeno físico da refração (quando a luz branca do sol atravessa uma nuvem carregada com água da chuva), ela se decompõe nas sete cores típicas do arco-íris. Do mesmo modo, cada pessoa pode ser decomposta em uma série de "partes", com as cores características de cada uma delas. Um lema que parece apropriado para o objetivo de "cura" analítica seria: "onde estiver uma parte, o todo deve estar e, a partir do todo, reconhecer as partes".

ZIMERMAN, David. E. Psicanálise em perguntas e respostas: verdades, mitos e tabus. Porto Alegre: Artmed, 2007. p. 129, 130 e 131.

 

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