RECORDAÇÃO
A recordação, que não é uma noção de origem psicanalítica, adquire em psicanálise o significado de representação consciente do passado, suspeita de ser em parte ilusória porque encobre a memória inconsciente, mas possui, não obstante, o valor de evidência para o Eu que procura se fortalecer com ela. Freud fala no início de sua obra de recordações inconscientes; depois, para as qualificar, utilizará a noção de traço mnésico (...).
         A noção de recordação em Freud, mesmo
que seja utilizada como um elemento da psicologia da consciência da
normalidade, depende sobretudo da sua primeira teoria das neuroses de sedução
traumática. Não é por acaso que Freud utiliza duas palavras muito próximas para
designar duas noções conceitualmente opostas, a recordação consciente (Erinnerung)
e o traço mnésico inconsciente (Erinnerungspur) (...). Na teoria da
causalidade traumática da histeria, ele elabora a noção de traço mnésico a
partir da noção de recordação inconsciente: a recordação consciente do trauma
foi recusada, rejeitada, reprimida ou clivada, deixa de ser acessível à
consciência, pelo menos diretamente, e encontra-se agora representada de modo
deslocado no sintoma, em especial no “símbolo mnésico”. A recordação
inconsciente aspira a voltar a ser consciente, pois onticamente a recordação é
consciente; a noção de recordação inconsciente leva à de Inconsciente (...). 
         A recordação é, por excelência,
recordação do afeto, “o efeito persistente de uma emoção sentida no passado”
nas “cadeias mnésicas”, pois há em Freud elementos pertencentes à teoria
associativa da memória. A recordação, à semelhança do símbolo mnésico, da
recordação encobridora e da fantasia, é uma articuladora das “cadeias
mnésicas”. É a partir dessa concepção da memória que Freud vai elaborar a
técnica da associação livre, em que o analisando é convidado a deixar
desenrolar-se livremente a associatividade espontânea dessas “cadeias
mnésicas”, que é de onde ele deduzirá a noção de processos primários.
         A metáfora arqueológica acompanhará a
noção de recordação ao longo de toda a obra de Freud, desde 1896 (Etiologia
da histeria), onde fazendo referência às “extensas áreas de ruínas”, fala
de “remover o entulho e, a partir dos restos visíveis, descobrir o que está
enterrado (...), obter informações nem mesmo sonhadas sobre os eventos do mais
remoto passado em cuja homenagem esses monumentos foram erigidos”, até O
mal-estar na civilização (1930), onde supõe um visitante descobrindo sob a
Roma atual não a urbe mais antiga, mas as ruínas de reconstruções erguidas
desde o final da Antiguidade sobre os lugares dos edifícios antigos
desaparecidos, procurando figurar o que poderia dar a simultaneidade das
recordações, aqui visuais, dos monumentos sobrepostos de épocas diferentes.
         O discriminador entre “verdadeira” e
“falsa” lembrança é o afeto, que “tem sempre razão” e que permite reencontrar,
a partir do símbolo mnésico, a representação adequada. No caso Emma (1985), o
sintoma fóbico e a crença em que uma cena anódina da adolescência seria a sua
causa encobrem o que deveria ter sido uma recordação, mas se converteu num
traço mnésico, a cena da sedução infantil. A passagem da recordação consciente
para o traço mnésico inconsciente corresponde à tópica de uma interiorização
psíquica do evento que exige um certo tempo. Toda recordação é em menor ou
maior media uma tela, sempre suspeita, para Freud, de não traduzir fielmente as
impressões vividas na infância. 
         Em Leonardo da Vinci e uma lembrança
de sua infância (1910), Freud diz que a recordação corresponde ao mesmo
tempo aos traços mnésicos historicamente constituídos de percepções que tiveram
lugar na infância e a representações que são puramente fruto da fantasia. (...)
Aquilo de que Leonardo se recorda não é de tal ou tal acontecimento de sua
infância, mas do psiquismo da criança que ele foi e que constitui o fundo de
seu psiquismo de adulto. (...)
         A noção de recordação pertence, em
psicanálise, ao paradigma do objeto perdido. Em Luto e melancolia
(1915), Freud mostra como na melancolia a recordação patológica fixa e
fetichiza o objeto idealizado, odiado tanto quanto amado, e como, no trabalho
do luto, todas as recordações referentes ao objeto são trazidas para a luz nos
seus ínfimos detalhes, a fim de que a lembrança permita uma ab-reação e depois
um desinvestimento. (...)
Na sua primeira concepção de cura,
centrada na ab-reação e na rememoração, Freud partia do princípio de que a
recordação confirmava a exatidão da interpretação. Em 1914, em Recordar,
repetir e elaborar, ele escreverá que quando “o paciente não recorda coisa
alguma do que esqueceu e recalcou, [ele] o traduz em atos”. A compulsão de
repetição, da qual a transferência é uma dimensão, “substituiu a compulsão a
recordar”, o que abre muito mais para uma clínica centrada na perlaboração do
que para a rememoração e a ab-reação, e para uma concepção da memória mais
centrada na construção do que na recordação. Desse ponto de vista, a recordação
de infância é sempre uma recordação sobre a infância. A noção de recordação
pertence mais à psicologia do que à metapsicologia do Inconsciente, embora Erinnerung
(“recordação”) concorra para introduzir Erinnerungsspur (“traço mnésico
inconsciente”) na obra de Freud. Ilusão da consciência, a recordação fortalece
o Eu em suas defesas e idealizações.
         Nenhuma recordação está isenta de
infiltrações fantasmáticas, nenhuma fantasia pode prescindir de elementos
figurativos colhidos na realidade percebida. (...) Aquilo que ele (Freud) chama
recordação resulta de múltiplas fontes e é objeto de um incessante
remanejamento. A propósito das recordações e sonho de infância do Homem dos
Lobos, Freud conclui que se trata de uma complexa mistura de recordações,
fantasias e restos diurnos (1918). A interpretação psicanalítica redescobre,
mas na maioria das vezes reconstrói, as recordações da infância por intermédio
de memórias encobridoras, fantasias e sonhos onde os restos diurnos,
associando-se aos traços mnésicos, fazem emergir figurações que se manifestam
como recordações. O que é assim exumado é o psiquismo infantil. Há uma
discussão frequente em torno do ponto de saber se na análise se constrói o
psiquismo como ficção ou se é o passado que é recomposto não leva
suficientemente em conta a complexidade e a paradoxalidade de uma memória que é
ao mesmo tempo histórica e subjetivamente construída. A reescrita permanente de
sua própria história por todo o sujeito define a recordação como versão atual
provisória. Freud relativiza as oposições recordação/construção, e destaca a
complexidade da elaboração psíquica que mistura diferentes tipos de
representações não-memoriais, representações pulsionais, pensamentos
inconscientes ou conscientes. A recordação é distinta do traço mnésico, mas
entre as duas existem passagens. Freud refuta a psicologia idealista da
consciência, mas não cai na metafísica de um Inconsciente sem qualquer espécie
de relação com a realidade, a percepção e a recordação. 
         
RECORDAÇÃO
ENCOBRIDORA
         A recordação encobridora consiste (como
o esquecimento e a amnésia) num compromisso entre os elementos recalcados e a
defesa. Paradoxo da memória, é uma recordação sobre a infância, mais do
que da infância, caracterizando-se por sua particular nitidez e,
simultaneamente, pela aparente insignificância do seu conteúdo. Os fatos
importantes não são retidos, seu valor psíquico vê-se deslocado para elementos
adjacentes de menos importância. O mecanismo aí predominante, tal como no
símbolo mnésico e no esquecimento de um nome próprio, é o deslocamento, se bem
que uma certa condensação esteja igualmente em atividade nesse processo.
         A noção de recordação encobridora
surgiu em 1899 no artigo Uber Deckerinnerung (Lembranças encobridoras),
no prolongamento dos trabalhos de Freud sobre o símbolo mnésico e sobre a
rememoração do traumatismo na histeria, quando ele começou a forjar a noção de
fantasia inconsciente. (...) A noção de “encobrir”, em Freud, diz de maneira
figurada e concreta o que é o recalque: por exemplo, a criança encobre o
período autoerótico de sua infância, a angústia foi encoberta.
         Tela sobre a qual é projetada a cena da
infância, ela representa tanto quanto possível os anos esquecidos desse
período, desde que se saiba como interpretar. Toda recordação é, em menor ou
maior escala, dimensão da tela da recordação que encobre aquela que é
inaceitável pelo Eu.
         Emma acredita que sua fobia provém de
uma cena insignificante da adolescência e recalca uma cena infantil mais
significativa. Pode-se dizer que a cena de adolescência, qualificada por Freud
de pseudos, possui, neste caso, um valor de recordação encobridora que
nega o inaceitável da sedução traumática de uma criança por um adulto, cuja
recordação se vê metamorfoseada em emoção amorosa comum da adolescência. Em
Notas sobre um caso de neurose obsessiva (O homem dos ratos, 1909), Freud
expõe em termos precisos a sua concepção de falsificação defensiva e
idealizante das recordações: “As ‘recordações da infância’ (...) só são fixadas
numa idade mais avançada (na maioria das vezes durante a época da puberdade)
(...). Elas passam então por um complicado processo de remanejamento,
rigorosamente análogo ao da formação das lendas de um povo sobre suas origens.
Pode-se reconhecer claramente que o adolescente procura apagar, por meio de
fantasias respeitantes aos primeiros tempos de sua juventude, a recordação de
sua atividade autoerótica”. As recordações do adolescente sobre a sua infância
procuram negar a sexualidade infantil incapaz de um triunfo edipiano e
substituindo-o por representações mais heroicas, um processo que Freud compara
ao da formação de lendas e dos mitos.
         Em Recordar, repetir e elaborar
(1914) ele compara as recordações encobridoras com os sonhos, a fim de destacar
que sua característica comum de figurabilidade visual contêm os traços mnésicos
(...); acrescenta ainda que a análise de sonhos e de memórias encobridoras dá o
mesmo acesso à realidade das experiências vividas do passado que as
recordações: as recordações encobridoras contêm “todo o essencial (...);
representam os anos esquecidos da infância tão fielmente quanto o conteúdo
manifesto dos sonhos” (...). 
         Nos Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade (1905, nota 19, adicionada em 1920), Freud compara a recordação
encobridora ao fetiche que esconde a castração feminina e, em Leonardo da
Vinci e uma lembrança de sua infância (1910), a recordação encobre uma
fantasia da mãe com pênis. A dimensão fetichista da recordação encobridora,
assim como do símbolo mnésico (...), antecipa-se à noção posterior de
fetichismo.
         O artigo essencial continua sendo Lembranças
encobridoras (1899). Freud menciona aí uma de suas recordações de infância
(que ele atribui a outrem), na qual se vê brincando com outras crianças num
prado muito verde onde há flores de um amarelo vivo; a análise leva a uma
recordação mais tardia da adolescência em que ele está enamorado de uma jovem
com vestido amarelo. A recordação infantil encobre um desejo sexual ulterior:
“não se tratava de uma recordação da infância, mas de uma fantasia transferida
retroativamente para a infância”. O deslocamento denuncia-se no excesso de
figurabilidade sensorial (indício do desejo insistente). (...)
         A partir de 1899, Freud suspeita de
toda recordação que se apresenta à consciência com sobejas provas de ser
encobridora, o que o levou a forjar uma teoria da memória infiltrada de
elementos fantasmáticos: “Para os dados de nossa memória não existe absolutamente
nenhuma garantia”. Na ausência de garantia, a interpretação psicanalítica
basear-se-á na análise da repetição e na convicção que acarreta a construção.
         A recordação encobridora, ocultando o
que é inaceitável para o Eu, pode ser considerada como essencialmente
defensiva. O seu caráter ilusório macula toda recordação, suspeita de ser
talvez uma cortina que encobre a realidade. Essa noção tende a subverter a de
realidade histórica: esta última resulta da criação interpretativa ou do acesso
aos traços mnésicos? Com a noção de recordação encobridora, Freud introduz uma
epistemologia da temporalidade e da realidade complexa quando analisa a sua
própria recordação encobridora: “É como se um traço mnésico da infância tivesse
sido retraduzido numa época ulterior (...). Uma tal maneira de ver as coisas
diminui, em nosso entender, a diferença entre as recordações encobridoras e as
outras recordações que provém da infância”.
MIJOLLA,
Alain de. Dicionário internacional de psicanálise. Vol. 2. Verbete Recordação encobridora. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. 1580
a 1581.
 
SÍMBOLO
MNÉSICO
         O símbolo mnésico é uma noção
frequentemente utilizada por Freud, no início de sua obra, como equivalente à
de sintoma histérico em geral. Apresenta-se como um pensamento histérico,
inadequado ao imenso afeto sentido, ou como uma inervação motora, por exemplo,
a crise histérica, cujos movimentos representam a cena de sedução. “Os sintomas
da histeria (à parte os estigmas) extraem sua determinação de certas experiências
do doente que agiram de maneira traumática, e que são reproduzidas na vida
psíquica do paciente sob a forma de símbolos mnésicos”.
         Utilizado com frequência por Freud em
seus primeiros escritos para qualificar o sintoma histérico, esse termo aparece
mais assiduamente em 1895 no Projeto para uma psicologia científica e em
Estudos sobre a histeria, mas também em As psiconeuroses de defesa
(1894) e em A etiologia da histeria (1896).
         O símbolo mnésico, estigma psíquico
referente a um traumatismo, é um traço mnésico, mas nem todo traço
mnésico corresponde necessariamente a um traumatismo e a uma sedução – que
desloca para uma representação adjacente isolada a experiência traumática, de
modo que o sujeito não compreende por que motivo investiu intensamente nessa
representação.
         “Erinnerungssymbol”,
literalmente, símbolo de recordação, caracteriza um sintoma histérico, mas
também, sem dúvida, o paradigma de todo o símbolo. Essa noção pertence à
primeira teoria das neuroses, teoria da causalidade traumática da histeria de
antes de 1900, e reencontra-se poucas vezes nos textos ulteriores. O símbolo
mnésico resulta de um deslocamento: “B tem certos pontos de contato com A.
Produziu-se um certo acontecimento A + B, no qual A representava uma
circunstância acessória, enquanto B possuía todo o necessário para produzir um
efeito duradouro. Quando ressurge a lembrança desse acontecimento, tudo se
passa como se A tivesse tomado o lugar de B. Portanto, A substituiu B,
tornou-se o seu símbolo”. Também aí estão em ação a condensação e a metáfora.
Quando A substitui B, ocorre a amnésia total de B, que é então recalcado, mas
continua sendo uma “imagem mnemônica (...) não apagada”, ou seja, no estado de
traço mnésico inconsciente, do qual A se torna a “simbolização imutável (...),
a obsessão histérica”. 
         O símbolo mnésico (...) esclarece o
paradoxo da sedução infantil de Emma, que só teria ocorrido na puberdade: teria
havido, de fato, a inscrição infantil de um traço mnésico dessa sedução
traumática mas que só veio a ser intensificado a posteriori, quando foi
transformado em símbolo mnésico. A fobia de entrar em lojas e a convicção de
Emma de que seus sintomas provinham da cena pubertária em que ela se sentia
seduzida numa loja por um jovem balconista são, com efeito, o símbolo mnésico,
o A, de uma cena infantil realmente em causa, mas recalcada, representada pelo
B.
         O símbolo mnésico é representado pelas
roupas através das quais teve lugar o atentado sexual contra Emma em criança;
na cena da adolescência, Emma pensa que zombam dela porque suas roupas são
ridículas, quando ela se sentiu atraída pelo jovem balconista. O símbolo
mnésico assume neste caso quase um valor de fetiche. 
MIJOLLA,
Alain de. Dicionário internacional de psicanálise. Vol. 2. Verbete Símbolo mnésico. Rio de Janeiro: Imago, 2005.  p. 1740.
         
AMNÉSIA
         A amnésia infantil é o efeito de um
recalque na fase de latência que incide sobre a sexualidade infantil perversa
polimorfa e sobre o complexo de Édipo infantil. Ele constitui um ponto de
referência e um modelo para as amnésias e os recalques ulteriores (em especial,
os histéricos). Ela “cobre com um véu espesso os seis ou oito primeiros anos”
de nossas vidas, quando “teríamos, entretanto, razões para crer que em nenhum
outro período da vida a memória foi mais capaz de registrar e reproduzir as
impressões”.
         A noção de amnésia é definida por Freud
nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), quando
desenvolveu a sua concepção de sexualidade infantil. Tendo concebido, desde
1895 a noção de amnésia histérica, teve a oportunidade de constatar a amnésia
que incide sobre “os primeiros seis a oito anos” de vida, em contraste com a
capacidade da memória da criança para registrar impressões. As impressões
infantis que caem no esquecimento constituem o ponto de referência e o modelo
das amnésias ulteriores no adulto, facilitadas pela preexistência de um
recalcado que atrai para si os elementos da vida atual do sujeito que se lhe
assemelham.
         Freud compara a amnésia infantil à
amnésia dos adultos histéricos e sugere que o mesmo processo estaria em ação
nos dois casos: “a recusa em admitir certas impressões na consciência
(recalque)”. Essa recusa (recalque) envolve a sexualidade infantil definida
como “perversa polimorfa”, o que permite então a Freud afirmar que “a neurose é
o negativo da perversão”. (...)
         A sexualidade do neurótico conserva
traços infantis pré-genitais. O histérico recusa a dimensão perversa desses
traços, tanto mais do que a criança que ele foi já os tinha recusado no momento
da fase de latência. A amnésia infantil cria para todos e para cada um “uma
espécie de pré-história” enigmática. A pré-história infantil é a criança que
está prestes a balbuciar as primeiras palavras, impregnada pelas fantasias
originárias que, por sua parte, são objeto de uma amnésia radical, o
recalcamento originário. Nos Três ensaios sobre teoria da sexualidade
não se trata explicitamente do complexo de Édipo, mas é necessário, porém,
compreender que a amnésia infantil envolve o conjunto “sexualidade infantil
perversa polimorfa / complexo de Édipo”, o conflito edipiano reforçando a
censura que pesa sobre a sexualidade infantil.
         Cumpre notar que Freud teoriza a
amnésia infantil tanto a partir da observação de crianças fora da situação
analítica quanto a partir da observação de adultos que mencionam sua infância
em situação analítica. A amnésia infantil envolve os traços mnésicos
inconscientes a respeito dos quais Freud diz, em 1900, em Interpretação dos
sonhos, que estão “à margem do tempo” e são “indestrutíveis”, o que tende a
definir o psiquismo inconsciente como de essência infantil, na condição de
distinguir o infantil (o psíquico) da criança real. (...) Freud dirá que a
amnésia dos sonhos não é “um caso especial de amnésia de estados dissociados”
porque “o recalque (...) está na origem das dissociações, assim como da amnésia
que atinge seu conteúdo psíquico”. (...)
         Em 1937, em Construções em análise,
o vocabulário é o mesmo de 1895 e 1900, mas a perspectiva mudou. Sem dúvida,
Freud continua a pensar que a análise, trabalhando a partir de “fragmentos de
lembranças nos sonhos”, tem por objetivo a rememoração, o levantamento da
amnésia. Mas ele considera agora que esta última nunca é total e que só é
possível chegar-lhe perto levando em conta a repetição, em particular a
atualização dos afetos na transferência. Uma vez que a amnésia continua a
obscurecer segmentos inteiros do passado, a solução é renunciar à ideia de o
reconstituir e contentar em reconstruí-lo a partir do que se passa na situação
analítica. Isso não significa que Freud tenha renunciado ao seu fundamental
propósito historiador em proveito de ficções mas, independentemente da amnésia
e de seu levantamento, redefine a interpretação como uma “verdade histórica
provável”. 
         O “provável”, oposto aqui à “verdade
inteira”, pertence à episteme da história moderna. Qual é a prova de
verdade, da correção de uma construção? Um dos aspectos de prova depende da
problemática da amnésia e de seu levantamento: a comunicação de certas
construções corretas ao analisante pode suscitar um agravamento passageiro dos
seus sintomas e o surgimento de “lembranças muito vivas (...), excessivamente
“nítidas”, situadas numa vizinhança de sentido”. (...)
         Freud descobre em sua prática clínica
de analista que a rememoração nunca anula totalmente a amnésia, em especial, a
infantil. Em 1914, em Rememoração, repetição e perlaboração, ele afirma
que a análise da compulsão de repetição, da qual a transferência é uma
expressão, é o melhor instrumento para reconstituir essa parte da realidade
psíquica que se esquiva ao levantamento da amnésia: a repetição é uma “maneira
de se lembrar”. Quando “o paciente não tem lembrança alguma do que esqueceu e
recalcou, e não faz mais do que traduzi-lo em atos”, a própria transferência é
apenas “um fragmento de repetição”.
         Freud abandona aqui uma concepção de
cura centrada no levantamento da amnésia e na ab-reação das lembranças de
traumatismos em proveito de uma concepção que visa o levantamento do recalque,
ou seja, a transformação da organização psíquica do analisante. É preciso, por
conseguinte, tratar a neurose “não como um evento do passado, mas como uma
força atualmente atuante”. (...)
         Freud ampliou a noção de interpretação
para a de construção, a qual propõe ao analisante um ponto de vista sobre sua
história e sobre a causa de seus sintomas independentemente do levantamento da
amnésia, no registro da hipótese e do provável, a partir da análise das
condutas repetitivas, da transferência, mas também desses “indícios que
escaparam ao esquecimento” e constituem os “fragmentos de recordações nos
sonhos”. A convicção do analisante de que uma construção é correta tem o mesmo
efeito de anulação do sintoma e de afeto subjetivo de verdade que uma plena e
inteira rememoração. Freud mantém-se parcialmente apegado à sua primeira
concepção de cura quando acrescenta que a comunicação de uma construção ao
analisante pode suscitar o ressurgimento de “lembranças muito vivas (...),
excessivamente nítidas”, considerando o levantamento da amnésia como uma prova
de correção da construção. (...)
         A noção de levantamento da amnésia
(...) é fortemente devedora de uma concepção da clínica que coloca em primeiro
plano a ab-reação dos traumatismos por meio da rememoração, e da qual Freud se
distanciou em proveito de um pensamento da prática centrada na interpretação e
construção, com vistas à perlaboração, simbolização e transformação.
Independentemente do fato do projeto de um levantamento total da amnésia ser
irrealizável porque novos recalcamentos secundários estão sempre em curso, a
existência de um recalque originário denuncia tal projeto como uma ilusão da
consciência.
MIJOLLA,
Alain de. Dicionário internacional de psicanálise. Vol. 1. Verbetes Amnésia,
Amnésia (levantamento da) e Amnésia infantil. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. 1560 e 1561.
         
AUTO-HISTORIZAÇÃO
         Noção formulada por Piera Aulagnier no
contexto de sua teoria da identificação, a auto-historicização sublinha o papel
do historiador que é conferido ao Eu se quiser poder pensar a si mesmo.
         O Eu é constituído pelo discurso que
ele mantém a propósito de si mesmo e dá-se como tarefa transformar os elementos
fragmentários do seu passado, quer provenham dele próprio ou dos outros, numa
construção histórica. A diferença entre memória e história consiste no
ordenamento dos fatos, o qual deve responder a uma dupla exigência: em primeiro
lugar, estabelecer o sentimento de uma continuidade temporal e, em seguida, ou
melhor dito, simultaneamente, dar a essa construção histórica um poder de
explicação causal em face do futuro. O Eu apresenta-se assim, segundo o título
de um dos livros de Piera Aulagnier, como um “aprendiz de historiador”, diante
desse “mestre-feiticeiro” que é o Isso.
         O enfoque auto-historicizante é a única
maneira de que o sujeito dispõe para se apropriar da noção de tempo, o qual só
pode ter um sentido para ele em relação aos seus desejos e à autopercepção que
tem de si mesmo: “o processo identificador é a face oculta desse trabalho de
historicização que transforma a inacessibilidade do tempo físico num tempo
humano, que substitui um tempo definitivamente perdido por um tempo que fala”.
         Esta história é a da relação do Eu com
os seus objetos, ou seja, uma história libidinal e uma história que só pode ter
em mira o Eu indiretamente, passando pelo Outro. Da temporalidade até a memória
e até a história processa-se todo um encaminhamento que é uma construção
realizada pelo Eu, necessária a este para que sua existência faça sentido.
         Para Pierra Aulagnier, somos
“historiadores cuja busca esbarra sempre num ‘já está aí’ de nós mesmos e do
outro que resiste à nossa elucidação”. Há aí um destino humano que vai coagir o
Eu a tomar posse desse algures que lhe é preexistente e a incluí-lo em si
mesmo, apoiando-se para tanto no testemunho dos outros que, simultaneamente,
lhe afirmam a identidade entre o que ele é e o que foi, e lhe fornecem os
elementos de informação a esse respeito. 
Mas o que acontece quando os outros não
transmitem ao sujeito esses “primeiros parágrafos” de sua história e de sua
pré-história pessoal? Em L’Apprenti-historien et la maítre-sorcier
(1984), Piera Aulagnier explicita a noção de “não-história” no esquizofrênico.
Nesse caso, a mãe vai exercer sobre a psique da criança uma ação de recalque
destinada a tornar impossível a revelação de um (...) desejo de morte (...)
presente e agindo em sua própria psique. Daí a tentativa de reconstrução pelo
delírio que teria lugar sem essa colaboração materna: “A fantasia de
autogeração que se pode encontrar em certas formas de psicose deixa-se, na
maioria dos casos, decodificar, se a olharmos mais de perto, como uma fantasia
que atribui ao sujeito o poder de engendrar não só o seu próprio passado, mas
todo o passado, não só a sua origem, mas toda a origem”.
Toda a teoria de Piera Aulagnier sobre a
psicose, ao invés das interpretações monolíticas (foraclusão do Nome-do-Pai,
duplo vínculo etc.), reata, como tinha sido feito por Freud, uma preocupação
que é de essência histórica, prendendo-se ao evento singular. O que a autora
mostra aqui diz respeito às consequências da proibição que recai sobre a
memória e, portanto, sobre esse trabalho de auto-historicização sem o qual o Eu
não pode estabelecer-se.
MIJOLLA,
Alain de. Dicionário internacional de psicanálise. Vol. 1. Verbete Auto-historização. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. 197 e
198.
 
RECORDAÇÃO EM METAS DO DESENVOLVIMENTO
DA PSICANÁLISE DE RANK E FERENCZI
É
preciso retomar a última contribuição freudiana sobre Recordar, repetir e
elaborar (1914), que atribui um valor desigual aos três fatores
mencionados. O recordar é apresentado como a meta verdadeira do analista,
enquanto a vontade de reviver alguma coisa em vez de recordá-la é considerada
um sintoma de resistência, e assim recomenda-se que ela seja evitada. Pela
perspectiva da compulsão à repetição, no entanto, além de ser absolutamente
inevitável que o paciente repita passagens inteiras de seu desenvolvimento
durante o tratamento, a experiência também mostrou que estas são precisamente as
passagens que não estão ao alcance da recordação, de tal maneira que não resta
ao paciente outro caminho a não ser reproduzi-las, como também não existe para
o analista um outro caminho que lhe permita acessar o material inconsciente
genuíno. Trata-se apenas de compreender essa forma de comunicação ou, quem
sabe, de linguagem gestual, como Ferenczi a denominou, e explicá-la para o
paciente. Ademais, os sintomas neuróticos, como ensinou Freud, não são outra
coisa senão comunicações deformadas no modo de expressão do inconsciente, não
compreendidos no início.
         A necessidade prática que nasce com essa compreensão
consistia não apenas em deixar de inibir as tendências à repetição na análise[1] como a incentivá-las, partindo da
premissa de que se sabe como dominá-la, pois do contrário simplesmente não é
possível trazer à tona o material decisivo para que ele se manifeste e encontre
uma resolução; por outro lado, certas resistências – que provavelmente possuem
fundamento biológico – opunham-se com frequência à compulsão à repetição,
sobretudo sentimentos de culpa e angústia que só poderiam ser vencidos por meio
de uma intervenção ativa, compreendida como um incentivo à repetição. Mas não
se deve compreender isso como uma mera dissolução dos afetos em “vivências”, e
sim como algo que consiste em uma admissão e dissolução gradual (...), na transformação
do conteúdo reproduzido em lembrança atual.
         Podemos contemplar e organizar os avanços constatados por
esse balanço geral de nossos estudos sob dois aspectos. Do lado da técnica,
trata-se indiscutivelmente do predomínio da “atividade”, compreendida como um
incentivo direto para a tendência à repetição no tratamento, que até agora
havia sido negligenciada ou percebida como uma perturbação colateral. Pela
perspectiva teórica, trata-se de uma apreciação complementar da destacada
importância da compulsão à repetição já assinalada por Freud com relação às
neuroses. Esta última percepção permite uma compreensão da “atividade” e
fundamenta sua necessidade em termos teóricos. Acreditamos, portanto, que não
contradizemos Freud sob nenhum aspecto ao abrirmos na terapia um espaço para a
compulsão à repetição que lhe foi concedido na vida anímica em termos
biológicos.
RANK, Otto e FERECZI,
Sándor. Metas do desenvolvimento da psicanálise: sobre a interação entre
teoria e prática. São Paulo: Quina Editora, 2022. p. 17, 18 e 19.
Ficou
comprovado que a aspiração teórica da catarse de Breuer e Freud – que consistia
em reestabelecer a ligação entre as quantidades de afeto que haviam sido deslocadas
e os traços mnésicos patógenos, para assim produzir a sua descarga e também uma
nova ancoragem – não poderia cumprir-se, ou então, só valeria para o material
de recordações que não foram inteiramente recalcadas e eram pré-conscientes na
maioria das vezes, ou seja, valeria somente para alguns derivados do material
inconsciente genuíno. Esse material, cuja descoberta representa a tarefa
central da psicanálise, também não pode ser “recordado” (pois ele jamais foi “vivido”):
é necessário que ele possa ser reproduzido a partir de alguns indícios. A mera
informação, como uma “reconstrução”, por exemplo, não pode provocar reações
afetivas por sua própria conta, ela só irá rebater no paciente e não terá
efeito nenhum. Somente quando essa vivência for análoga às vivências atuais na
situação analítica – isto é, no tempo presente – eles ficarão convencidos da
realidade do inconsciente, e na maioria das vezes somente depois da repetição
de uma vivência. Nossas descobertas mais recentes acerca da topologia da alma e
das funções de cada uma das camadas profundas podem explicar essa atitude. O
inconsciente que foi recalcado não tem acesso nem à motilidade e nem às inervações
motoras, cujas somas compõem a descarga de afeto; portanto, a matéria do
recalcado e do passado precisa encontrar um representante no presente e na
consciência (pré-consciência) – ou seja, na situação psíquica atual – para que
possa ser vivenciada afetivamente. Em contraponto às alterações tempestuosas da
catarse, o percurso do afeto da situação analítica, que avança de um modo
gradual, poderia ser designado como uma catarse fracionada.
         Além
disso, acreditamos de modo geral que é necessário renovar os afetos, ou então torna-los
presentes, para que eles passem a ter eficácia. Pois aquilo que não nos afeta
no presente de uma maneira imediata, ou real, não terá eficácia em termos
psíquicos.
         O
analista deve sempre presumir a multiplicidade temporal de praticamente todas
as manifestações do paciente, mas deve voltar sua atenção especialmente para a
reação presente. A partir dessa perspectiva ele encontrará condições para
desvendar no passado as raízes da reação atual, ou seja, para transformar em
lembrança a tendência do paciente à repetição. Ele não deve importar-se muito
com o futuro. Essa preocupação pode ser assumida por uma pessoa que estiver devidamente
esclarecida a respeito de suas tendências anímicas atuais ou pregressas.
RANK, Otto e FERECZI, Sándor. Metas
do desenvolvimento da psicanálise: sobre a interação entre teoria e prática. São
Paulo: Quina Editora, 2022. p. 51, 52 e 53.
[1]
Por isso, aliás, muitas vezes ela se afirma na realidade em detrimento da
análise, especialmente no que concerne à vida amorosa (relacionamentos,
casamentos, separações), que geralmente na análise permanece em estado de
privação.

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