Módulo 51

 

RECORDAÇÃO



 

         A recordação, que não é uma noção de origem psicanalítica, adquire em psicanálise o significado de representação consciente do passado, suspeita de ser em parte ilusória porque encobre a memória inconsciente, mas possui, não obstante, o valor de evidência para o Eu que procura se fortalecer com ela. Freud fala no início de sua obra de recordações inconscientes; depois, para as qualificar, utilizará a noção de traço mnésico (...).

         A noção de recordação em Freud, mesmo que seja utilizada como um elemento da psicologia da consciência da normalidade, depende sobretudo da sua primeira teoria das neuroses de sedução traumática. Não é por acaso que Freud utiliza duas palavras muito próximas para designar duas noções conceitualmente opostas, a recordação consciente (Erinnerung) e o traço mnésico inconsciente (Erinnerungspur) (...). Na teoria da causalidade traumática da histeria, ele elabora a noção de traço mnésico a partir da noção de recordação inconsciente: a recordação consciente do trauma foi recusada, rejeitada, reprimida ou clivada, deixa de ser acessível à consciência, pelo menos diretamente, e encontra-se agora representada de modo deslocado no sintoma, em especial no “símbolo mnésico”. A recordação inconsciente aspira a voltar a ser consciente, pois onticamente a recordação é consciente; a noção de recordação inconsciente leva à de Inconsciente (...).

         A recordação é, por excelência, recordação do afeto, “o efeito persistente de uma emoção sentida no passado” nas “cadeias mnésicas”, pois há em Freud elementos pertencentes à teoria associativa da memória. A recordação, à semelhança do símbolo mnésico, da recordação encobridora e da fantasia, é uma articuladora das “cadeias mnésicas”. É a partir dessa concepção da memória que Freud vai elaborar a técnica da associação livre, em que o analisando é convidado a deixar desenrolar-se livremente a associatividade espontânea dessas “cadeias mnésicas”, que é de onde ele deduzirá a noção de processos primários.

         A metáfora arqueológica acompanhará a noção de recordação ao longo de toda a obra de Freud, desde 1896 (Etiologia da histeria), onde fazendo referência às “extensas áreas de ruínas”, fala de “remover o entulho e, a partir dos restos visíveis, descobrir o que está enterrado (...), obter informações nem mesmo sonhadas sobre os eventos do mais remoto passado em cuja homenagem esses monumentos foram erigidos”, até O mal-estar na civilização (1930), onde supõe um visitante descobrindo sob a Roma atual não a urbe mais antiga, mas as ruínas de reconstruções erguidas desde o final da Antiguidade sobre os lugares dos edifícios antigos desaparecidos, procurando figurar o que poderia dar a simultaneidade das recordações, aqui visuais, dos monumentos sobrepostos de épocas diferentes.

         O discriminador entre “verdadeira” e “falsa” lembrança é o afeto, que “tem sempre razão” e que permite reencontrar, a partir do símbolo mnésico, a representação adequada. No caso Emma (1985), o sintoma fóbico e a crença em que uma cena anódina da adolescência seria a sua causa encobrem o que deveria ter sido uma recordação, mas se converteu num traço mnésico, a cena da sedução infantil. A passagem da recordação consciente para o traço mnésico inconsciente corresponde à tópica de uma interiorização psíquica do evento que exige um certo tempo. Toda recordação é em menor ou maior media uma tela, sempre suspeita, para Freud, de não traduzir fielmente as impressões vividas na infância.

         Em Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910), Freud diz que a recordação corresponde ao mesmo tempo aos traços mnésicos historicamente constituídos de percepções que tiveram lugar na infância e a representações que são puramente fruto da fantasia. (...) Aquilo de que Leonardo se recorda não é de tal ou tal acontecimento de sua infância, mas do psiquismo da criança que ele foi e que constitui o fundo de seu psiquismo de adulto. (...)

         A noção de recordação pertence, em psicanálise, ao paradigma do objeto perdido. Em Luto e melancolia (1915), Freud mostra como na melancolia a recordação patológica fixa e fetichiza o objeto idealizado, odiado tanto quanto amado, e como, no trabalho do luto, todas as recordações referentes ao objeto são trazidas para a luz nos seus ínfimos detalhes, a fim de que a lembrança permita uma ab-reação e depois um desinvestimento. (...)

Na sua primeira concepção de cura, centrada na ab-reação e na rememoração, Freud partia do princípio de que a recordação confirmava a exatidão da interpretação. Em 1914, em Recordar, repetir e elaborar, ele escreverá que quando “o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e recalcou, [ele] o traduz em atos”. A compulsão de repetição, da qual a transferência é uma dimensão, “substituiu a compulsão a recordar”, o que abre muito mais para uma clínica centrada na perlaboração do que para a rememoração e a ab-reação, e para uma concepção da memória mais centrada na construção do que na recordação. Desse ponto de vista, a recordação de infância é sempre uma recordação sobre a infância. A noção de recordação pertence mais à psicologia do que à metapsicologia do Inconsciente, embora Erinnerung (“recordação”) concorra para introduzir Erinnerungsspur (“traço mnésico inconsciente”) na obra de Freud. Ilusão da consciência, a recordação fortalece o Eu em suas defesas e idealizações.

         Nenhuma recordação está isenta de infiltrações fantasmáticas, nenhuma fantasia pode prescindir de elementos figurativos colhidos na realidade percebida. (...) Aquilo que ele (Freud) chama recordação resulta de múltiplas fontes e é objeto de um incessante remanejamento. A propósito das recordações e sonho de infância do Homem dos Lobos, Freud conclui que se trata de uma complexa mistura de recordações, fantasias e restos diurnos (1918). A interpretação psicanalítica redescobre, mas na maioria das vezes reconstrói, as recordações da infância por intermédio de memórias encobridoras, fantasias e sonhos onde os restos diurnos, associando-se aos traços mnésicos, fazem emergir figurações que se manifestam como recordações. O que é assim exumado é o psiquismo infantil. Há uma discussão frequente em torno do ponto de saber se na análise se constrói o psiquismo como ficção ou se é o passado que é recomposto não leva suficientemente em conta a complexidade e a paradoxalidade de uma memória que é ao mesmo tempo histórica e subjetivamente construída. A reescrita permanente de sua própria história por todo o sujeito define a recordação como versão atual provisória. Freud relativiza as oposições recordação/construção, e destaca a complexidade da elaboração psíquica que mistura diferentes tipos de representações não-memoriais, representações pulsionais, pensamentos inconscientes ou conscientes. A recordação é distinta do traço mnésico, mas entre as duas existem passagens. Freud refuta a psicologia idealista da consciência, mas não cai na metafísica de um Inconsciente sem qualquer espécie de relação com a realidade, a percepção e a recordação.

MIJOLLA, Alain de. Dicionário internacional de psicanálise. Vol. 2. Verbete Recordação. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. 1577 a 1579.

        

RECORDAÇÃO ENCOBRIDORA

         A recordação encobridora consiste (como o esquecimento e a amnésia) num compromisso entre os elementos recalcados e a defesa. Paradoxo da memória, é uma recordação sobre a infância, mais do que da infância, caracterizando-se por sua particular nitidez e, simultaneamente, pela aparente insignificância do seu conteúdo. Os fatos importantes não são retidos, seu valor psíquico vê-se deslocado para elementos adjacentes de menos importância. O mecanismo aí predominante, tal como no símbolo mnésico e no esquecimento de um nome próprio, é o deslocamento, se bem que uma certa condensação esteja igualmente em atividade nesse processo.

         A noção de recordação encobridora surgiu em 1899 no artigo Uber Deckerinnerung (Lembranças encobridoras), no prolongamento dos trabalhos de Freud sobre o símbolo mnésico e sobre a rememoração do traumatismo na histeria, quando ele começou a forjar a noção de fantasia inconsciente. (...) A noção de “encobrir”, em Freud, diz de maneira figurada e concreta o que é o recalque: por exemplo, a criança encobre o período autoerótico de sua infância, a angústia foi encoberta.

         Tela sobre a qual é projetada a cena da infância, ela representa tanto quanto possível os anos esquecidos desse período, desde que se saiba como interpretar. Toda recordação é, em menor ou maior escala, dimensão da tela da recordação que encobre aquela que é inaceitável pelo Eu.

         Emma acredita que sua fobia provém de uma cena insignificante da adolescência e recalca uma cena infantil mais significativa. Pode-se dizer que a cena de adolescência, qualificada por Freud de pseudos, possui, neste caso, um valor de recordação encobridora que nega o inaceitável da sedução traumática de uma criança por um adulto, cuja recordação se vê metamorfoseada em emoção amorosa comum da adolescência. Em Notas sobre um caso de neurose obsessiva (O homem dos ratos, 1909), Freud expõe em termos precisos a sua concepção de falsificação defensiva e idealizante das recordações: “As ‘recordações da infância’ (...) só são fixadas numa idade mais avançada (na maioria das vezes durante a época da puberdade) (...). Elas passam então por um complicado processo de remanejamento, rigorosamente análogo ao da formação das lendas de um povo sobre suas origens. Pode-se reconhecer claramente que o adolescente procura apagar, por meio de fantasias respeitantes aos primeiros tempos de sua juventude, a recordação de sua atividade autoerótica”. As recordações do adolescente sobre a sua infância procuram negar a sexualidade infantil incapaz de um triunfo edipiano e substituindo-o por representações mais heroicas, um processo que Freud compara ao da formação de lendas e dos mitos.

         Em Recordar, repetir e elaborar (1914) ele compara as recordações encobridoras com os sonhos, a fim de destacar que sua característica comum de figurabilidade visual contêm os traços mnésicos (...); acrescenta ainda que a análise de sonhos e de memórias encobridoras dá o mesmo acesso à realidade das experiências vividas do passado que as recordações: as recordações encobridoras contêm “todo o essencial (...); representam os anos esquecidos da infância tão fielmente quanto o conteúdo manifesto dos sonhos” (...).

         Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905, nota 19, adicionada em 1920), Freud compara a recordação encobridora ao fetiche que esconde a castração feminina e, em Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910), a recordação encobre uma fantasia da mãe com pênis. A dimensão fetichista da recordação encobridora, assim como do símbolo mnésico (...), antecipa-se à noção posterior de fetichismo.

         O artigo essencial continua sendo Lembranças encobridoras (1899). Freud menciona aí uma de suas recordações de infância (que ele atribui a outrem), na qual se vê brincando com outras crianças num prado muito verde onde há flores de um amarelo vivo; a análise leva a uma recordação mais tardia da adolescência em que ele está enamorado de uma jovem com vestido amarelo. A recordação infantil encobre um desejo sexual ulterior: “não se tratava de uma recordação da infância, mas de uma fantasia transferida retroativamente para a infância”. O deslocamento denuncia-se no excesso de figurabilidade sensorial (indício do desejo insistente). (...)

         A partir de 1899, Freud suspeita de toda recordação que se apresenta à consciência com sobejas provas de ser encobridora, o que o levou a forjar uma teoria da memória infiltrada de elementos fantasmáticos: “Para os dados de nossa memória não existe absolutamente nenhuma garantia”. Na ausência de garantia, a interpretação psicanalítica basear-se-á na análise da repetição e na convicção que acarreta a construção.

         A recordação encobridora, ocultando o que é inaceitável para o Eu, pode ser considerada como essencialmente defensiva. O seu caráter ilusório macula toda recordação, suspeita de ser talvez uma cortina que encobre a realidade. Essa noção tende a subverter a de realidade histórica: esta última resulta da criação interpretativa ou do acesso aos traços mnésicos? Com a noção de recordação encobridora, Freud introduz uma epistemologia da temporalidade e da realidade complexa quando analisa a sua própria recordação encobridora: “É como se um traço mnésico da infância tivesse sido retraduzido numa época ulterior (...). Uma tal maneira de ver as coisas diminui, em nosso entender, a diferença entre as recordações encobridoras e as outras recordações que provém da infância”.

MIJOLLA, Alain de. Dicionário internacional de psicanálise. Vol. 2. Verbete Recordação encobridora. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. 1580 a 1581.

 

SÍMBOLO MNÉSICO

         O símbolo mnésico é uma noção frequentemente utilizada por Freud, no início de sua obra, como equivalente à de sintoma histérico em geral. Apresenta-se como um pensamento histérico, inadequado ao imenso afeto sentido, ou como uma inervação motora, por exemplo, a crise histérica, cujos movimentos representam a cena de sedução. “Os sintomas da histeria (à parte os estigmas) extraem sua determinação de certas experiências do doente que agiram de maneira traumática, e que são reproduzidas na vida psíquica do paciente sob a forma de símbolos mnésicos”.

         Utilizado com frequência por Freud em seus primeiros escritos para qualificar o sintoma histérico, esse termo aparece mais assiduamente em 1895 no Projeto para uma psicologia científica e em Estudos sobre a histeria, mas também em As psiconeuroses de defesa (1894) e em A etiologia da histeria (1896).

         O símbolo mnésico, estigma psíquico referente a um traumatismo, é um traço mnésico, mas nem todo traço mnésico corresponde necessariamente a um traumatismo e a uma sedução – que desloca para uma representação adjacente isolada a experiência traumática, de modo que o sujeito não compreende por que motivo investiu intensamente nessa representação.

         Erinnerungssymbol”, literalmente, símbolo de recordação, caracteriza um sintoma histérico, mas também, sem dúvida, o paradigma de todo o símbolo. Essa noção pertence à primeira teoria das neuroses, teoria da causalidade traumática da histeria de antes de 1900, e reencontra-se poucas vezes nos textos ulteriores. O símbolo mnésico resulta de um deslocamento: “B tem certos pontos de contato com A. Produziu-se um certo acontecimento A + B, no qual A representava uma circunstância acessória, enquanto B possuía todo o necessário para produzir um efeito duradouro. Quando ressurge a lembrança desse acontecimento, tudo se passa como se A tivesse tomado o lugar de B. Portanto, A substituiu B, tornou-se o seu símbolo”. Também aí estão em ação a condensação e a metáfora. Quando A substitui B, ocorre a amnésia total de B, que é então recalcado, mas continua sendo uma “imagem mnemônica (...) não apagada”, ou seja, no estado de traço mnésico inconsciente, do qual A se torna a “simbolização imutável (...), a obsessão histérica”.

         O símbolo mnésico (...) esclarece o paradoxo da sedução infantil de Emma, que só teria ocorrido na puberdade: teria havido, de fato, a inscrição infantil de um traço mnésico dessa sedução traumática mas que só veio a ser intensificado a posteriori, quando foi transformado em símbolo mnésico. A fobia de entrar em lojas e a convicção de Emma de que seus sintomas provinham da cena pubertária em que ela se sentia seduzida numa loja por um jovem balconista são, com efeito, o símbolo mnésico, o A, de uma cena infantil realmente em causa, mas recalcada, representada pelo B.

         O símbolo mnésico é representado pelas roupas através das quais teve lugar o atentado sexual contra Emma em criança; na cena da adolescência, Emma pensa que zombam dela porque suas roupas são ridículas, quando ela se sentiu atraída pelo jovem balconista. O símbolo mnésico assume neste caso quase um valor de fetiche.

MIJOLLA, Alain de. Dicionário internacional de psicanálise. Vol. 2. Verbete Símbolo mnésico. Rio de Janeiro: Imago, 2005.  p. 1740.

        

AMNÉSIA

         A amnésia infantil é o efeito de um recalque na fase de latência que incide sobre a sexualidade infantil perversa polimorfa e sobre o complexo de Édipo infantil. Ele constitui um ponto de referência e um modelo para as amnésias e os recalques ulteriores (em especial, os histéricos). Ela “cobre com um véu espesso os seis ou oito primeiros anos” de nossas vidas, quando “teríamos, entretanto, razões para crer que em nenhum outro período da vida a memória foi mais capaz de registrar e reproduzir as impressões”.

         A noção de amnésia é definida por Freud nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), quando desenvolveu a sua concepção de sexualidade infantil. Tendo concebido, desde 1895 a noção de amnésia histérica, teve a oportunidade de constatar a amnésia que incide sobre “os primeiros seis a oito anos” de vida, em contraste com a capacidade da memória da criança para registrar impressões. As impressões infantis que caem no esquecimento constituem o ponto de referência e o modelo das amnésias ulteriores no adulto, facilitadas pela preexistência de um recalcado que atrai para si os elementos da vida atual do sujeito que se lhe assemelham.

         Freud compara a amnésia infantil à amnésia dos adultos histéricos e sugere que o mesmo processo estaria em ação nos dois casos: “a recusa em admitir certas impressões na consciência (recalque)”. Essa recusa (recalque) envolve a sexualidade infantil definida como “perversa polimorfa”, o que permite então a Freud afirmar que “a neurose é o negativo da perversão”. (...)

         A sexualidade do neurótico conserva traços infantis pré-genitais. O histérico recusa a dimensão perversa desses traços, tanto mais do que a criança que ele foi já os tinha recusado no momento da fase de latência. A amnésia infantil cria para todos e para cada um “uma espécie de pré-história” enigmática. A pré-história infantil é a criança que está prestes a balbuciar as primeiras palavras, impregnada pelas fantasias originárias que, por sua parte, são objeto de uma amnésia radical, o recalcamento originário. Nos Três ensaios sobre teoria da sexualidade não se trata explicitamente do complexo de Édipo, mas é necessário, porém, compreender que a amnésia infantil envolve o conjunto “sexualidade infantil perversa polimorfa / complexo de Édipo”, o conflito edipiano reforçando a censura que pesa sobre a sexualidade infantil.

         Cumpre notar que Freud teoriza a amnésia infantil tanto a partir da observação de crianças fora da situação analítica quanto a partir da observação de adultos que mencionam sua infância em situação analítica. A amnésia infantil envolve os traços mnésicos inconscientes a respeito dos quais Freud diz, em 1900, em Interpretação dos sonhos, que estão “à margem do tempo” e são “indestrutíveis”, o que tende a definir o psiquismo inconsciente como de essência infantil, na condição de distinguir o infantil (o psíquico) da criança real. (...) Freud dirá que a amnésia dos sonhos não é “um caso especial de amnésia de estados dissociados” porque “o recalque (...) está na origem das dissociações, assim como da amnésia que atinge seu conteúdo psíquico”. (...)

         Em 1937, em Construções em análise, o vocabulário é o mesmo de 1895 e 1900, mas a perspectiva mudou. Sem dúvida, Freud continua a pensar que a análise, trabalhando a partir de “fragmentos de lembranças nos sonhos”, tem por objetivo a rememoração, o levantamento da amnésia. Mas ele considera agora que esta última nunca é total e que só é possível chegar-lhe perto levando em conta a repetição, em particular a atualização dos afetos na transferência. Uma vez que a amnésia continua a obscurecer segmentos inteiros do passado, a solução é renunciar à ideia de o reconstituir e contentar em reconstruí-lo a partir do que se passa na situação analítica. Isso não significa que Freud tenha renunciado ao seu fundamental propósito historiador em proveito de ficções mas, independentemente da amnésia e de seu levantamento, redefine a interpretação como uma “verdade histórica provável”.

         O “provável”, oposto aqui à “verdade inteira”, pertence à episteme da história moderna. Qual é a prova de verdade, da correção de uma construção? Um dos aspectos de prova depende da problemática da amnésia e de seu levantamento: a comunicação de certas construções corretas ao analisante pode suscitar um agravamento passageiro dos seus sintomas e o surgimento de “lembranças muito vivas (...), excessivamente “nítidas”, situadas numa vizinhança de sentido”. (...)

         Freud descobre em sua prática clínica de analista que a rememoração nunca anula totalmente a amnésia, em especial, a infantil. Em 1914, em Rememoração, repetição e perlaboração, ele afirma que a análise da compulsão de repetição, da qual a transferência é uma expressão, é o melhor instrumento para reconstituir essa parte da realidade psíquica que se esquiva ao levantamento da amnésia: a repetição é uma “maneira de se lembrar”. Quando “o paciente não tem lembrança alguma do que esqueceu e recalcou, e não faz mais do que traduzi-lo em atos”, a própria transferência é apenas “um fragmento de repetição”.

         Freud abandona aqui uma concepção de cura centrada no levantamento da amnésia e na ab-reação das lembranças de traumatismos em proveito de uma concepção que visa o levantamento do recalque, ou seja, a transformação da organização psíquica do analisante. É preciso, por conseguinte, tratar a neurose “não como um evento do passado, mas como uma força atualmente atuante”. (...)

         Freud ampliou a noção de interpretação para a de construção, a qual propõe ao analisante um ponto de vista sobre sua história e sobre a causa de seus sintomas independentemente do levantamento da amnésia, no registro da hipótese e do provável, a partir da análise das condutas repetitivas, da transferência, mas também desses “indícios que escaparam ao esquecimento” e constituem os “fragmentos de recordações nos sonhos”. A convicção do analisante de que uma construção é correta tem o mesmo efeito de anulação do sintoma e de afeto subjetivo de verdade que uma plena e inteira rememoração. Freud mantém-se parcialmente apegado à sua primeira concepção de cura quando acrescenta que a comunicação de uma construção ao analisante pode suscitar o ressurgimento de “lembranças muito vivas (...), excessivamente nítidas”, considerando o levantamento da amnésia como uma prova de correção da construção. (...)

         A noção de levantamento da amnésia (...) é fortemente devedora de uma concepção da clínica que coloca em primeiro plano a ab-reação dos traumatismos por meio da rememoração, e da qual Freud se distanciou em proveito de um pensamento da prática centrada na interpretação e construção, com vistas à perlaboração, simbolização e transformação. Independentemente do fato do projeto de um levantamento total da amnésia ser irrealizável porque novos recalcamentos secundários estão sempre em curso, a existência de um recalque originário denuncia tal projeto como uma ilusão da consciência.

MIJOLLA, Alain de. Dicionário internacional de psicanálise. Vol. 1. Verbetes Amnésia, Amnésia (levantamento da) e Amnésia infantil. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. 1560 e 1561.

        

AUTO-HISTORIZAÇÃO

         Noção formulada por Piera Aulagnier no contexto de sua teoria da identificação, a auto-historicização sublinha o papel do historiador que é conferido ao Eu se quiser poder pensar a si mesmo.

         O Eu é constituído pelo discurso que ele mantém a propósito de si mesmo e dá-se como tarefa transformar os elementos fragmentários do seu passado, quer provenham dele próprio ou dos outros, numa construção histórica. A diferença entre memória e história consiste no ordenamento dos fatos, o qual deve responder a uma dupla exigência: em primeiro lugar, estabelecer o sentimento de uma continuidade temporal e, em seguida, ou melhor dito, simultaneamente, dar a essa construção histórica um poder de explicação causal em face do futuro. O Eu apresenta-se assim, segundo o título de um dos livros de Piera Aulagnier, como um “aprendiz de historiador”, diante desse “mestre-feiticeiro” que é o Isso.

         O enfoque auto-historicizante é a única maneira de que o sujeito dispõe para se apropriar da noção de tempo, o qual só pode ter um sentido para ele em relação aos seus desejos e à autopercepção que tem de si mesmo: “o processo identificador é a face oculta desse trabalho de historicização que transforma a inacessibilidade do tempo físico num tempo humano, que substitui um tempo definitivamente perdido por um tempo que fala”.

         Esta história é a da relação do Eu com os seus objetos, ou seja, uma história libidinal e uma história que só pode ter em mira o Eu indiretamente, passando pelo Outro. Da temporalidade até a memória e até a história processa-se todo um encaminhamento que é uma construção realizada pelo Eu, necessária a este para que sua existência faça sentido.

         Para Pierra Aulagnier, somos “historiadores cuja busca esbarra sempre num ‘já está aí’ de nós mesmos e do outro que resiste à nossa elucidação”. Há aí um destino humano que vai coagir o Eu a tomar posse desse algures que lhe é preexistente e a incluí-lo em si mesmo, apoiando-se para tanto no testemunho dos outros que, simultaneamente, lhe afirmam a identidade entre o que ele é e o que foi, e lhe fornecem os elementos de informação a esse respeito.

Mas o que acontece quando os outros não transmitem ao sujeito esses “primeiros parágrafos” de sua história e de sua pré-história pessoal? Em L’Apprenti-historien et la maítre-sorcier (1984), Piera Aulagnier explicita a noção de “não-história” no esquizofrênico. Nesse caso, a mãe vai exercer sobre a psique da criança uma ação de recalque destinada a tornar impossível a revelação de um (...) desejo de morte (...) presente e agindo em sua própria psique. Daí a tentativa de reconstrução pelo delírio que teria lugar sem essa colaboração materna: “A fantasia de autogeração que se pode encontrar em certas formas de psicose deixa-se, na maioria dos casos, decodificar, se a olharmos mais de perto, como uma fantasia que atribui ao sujeito o poder de engendrar não só o seu próprio passado, mas todo o passado, não só a sua origem, mas toda a origem”.

Toda a teoria de Piera Aulagnier sobre a psicose, ao invés das interpretações monolíticas (foraclusão do Nome-do-Pai, duplo vínculo etc.), reata, como tinha sido feito por Freud, uma preocupação que é de essência histórica, prendendo-se ao evento singular. O que a autora mostra aqui diz respeito às consequências da proibição que recai sobre a memória e, portanto, sobre esse trabalho de auto-historicização sem o qual o Eu não pode estabelecer-se.

MIJOLLA, Alain de. Dicionário internacional de psicanálise. Vol. 1. Verbete Auto-historização. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. 197 e 198.

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