O conceito de realidade psíquica foi criado por Freud para designar o nível de realidade específica dos processos da psique. De um ponto de vista epistemológico, a realidade psíquica designa o objeto “construído” pela psicanálise, aquele que esta se propõe reconhecer e explorar.
O conceito de realidade psíquica está presente desde 1900 em A interpretação dos sonhos. Ele designa, à época, a força da realidade que pode assumir para um sujeito a atividade da vida fantasmática de seu mundo interno, força da realidade que se opõe e pode até mesmo “dominar” a realidade exterior, ou seja, impor-se como mais “real” do que esta última. De imediato, portanto, a ênfase recai sobre o “objetivo” da subjetividade, sobre a realidade da subjetividade para o psiquismo, e isso à custa eventual de sua relação com a realidade exterior, a qual pode ser ocasionalmente substituída por ela.
No contexto cultural da época, que tende a desvalorizar ou a depreciar o caráter de compulsão subjetiva que a atividade psíquica e, em particular, a atividade psíquica inconsciente pode assumir, trata-se de afirmar nitidamente o caráter objetivo para o Eu de certas formações psíquicas inconscientes, contra aqueles que desejariam reduzi-las a uma formação “imaginária”, logo, não real.
Em 1893, no seu artigo dedicado às paralisias histéricas, Freud já tinha apresentado o problema da “objetividade” do sintoma de conversão e do que ele exprime. A diferença entre a realidade biológica – da anatomia, em particular – e a realidade “psíquica” que os sintomas histéricos expressam começa a aparecer, prefigurando já a objetividade da inconsciência do Inconsciente: os pacientes não podem ser “simuladores”, conforme testemunha a objetividade das manifestações sintomáticas – anestesia, parestesia etc. A partir desse momento, a existência de um nível autônomo de realidade para o psiquismo e o psiquismo inconsciente, ainda que este seja o das fantasias, será afirmado de um modo cada vez mais nítido.
A segunda vertente do contexto em que surgiu a noção de realidade psíquica é o do traumatismo sexual e de seu valor etiológico. É em torno da oposição realidade histórica/fantasia que se trava então o debate. A neurótica elaborada por Freud num primeiro tempo confere a um evento traumático “real” – a sedução sexual de uma criança por um adulto – um valor causal determinante na etiologia da histeria e, de um modo geral, das neuroses. Entretanto, o processo dos tratamentos evidencia que à medida que as lembranças das cenas de seduções sexuais traumáticas são rememoradas retrocede-se no tempo a fim de chegar às cenas a propósito das quais é indecidível saber se eles efetivamente ocorreram ou se foram “inventadas”. A etiologia traumática é então relativizada em proveito de se evidenciar as fantasias infantis e a sexualidade infantil que elas exprimem. Essas fantasias, formas importantes da realidade psíquica, impõem-se ao psiquismo com a mesma “realidade”, ou até uma realidade maior do que os eventos reais.
MIJOLLA, Alain de. Dicionário internacional de psicanálise. Vol. 2. Verbete Realidade Psíquica p. 1560 e 1561.
Realidade psíquica: termo empregado em psicanálise para designar uma forma de existência do sujeito que se distingue da realidade material, na medida em que é dominada pelo império da fantasia e do desejo. Historicamente, a ideia nasceu do abandono da teoria da sedução por Sigmund Freud e da elaboração de uma concepção do aparelho psíquico baseada no primado do inconsciente.
Na história da clínica psicanalítica, a noção de realidade psíquica foi objeto de diversas reinterpretações (em especial por Melanie Klein e Jacques Lacan), as quais, na abordagem das psicoses e da relação de objeto, conduziram a acentuar a importância dela, em detrimento da realidade material.
ROUDINESCO, Elizabeth e PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. Verbete Realidade Psíquica, p. 646 e 647.
Para Klein, embora a experiência possa enriquecer e tornar a fantasia mais elaborada, esta não depende da experiência para existir. Ao contrário, todas as experiências estão, de algum modo, predeterminadas pelo campo e pela dinâmica da fantasia, que ocorre desde sempre no nível inconsciente.
FIGUEIREDO, Luis Claudio e CINTRA, Elisa Maria de Ulhôa. Melanie Klein. São Paulo: Publifolha, 2013. p. 47.
As fantasias inconscientes, sendo onipresentes, são uma categoria completamente diferente de eventos. A distinção nas opiniões sobre fantasia é radical, e sobre ela cada analista tem de decidir. Por um lado, temos a visão da psicanálise ortodoxa, de que existe quer realidade, quer fantasia; por outro, a opinião de que a fantasia inconsciente acompanha todas as experiências da realidade. Através de toda a obra de Klein, assim como na de seus colegas, fez-se a investigação da maneira pela qual a fantasia inconsciente interna penetra e dá significado aos "acontecimentos reais" do mundo externo, e, ao mesmo tempo, a maneira por que o mundo externo traz significado sob a forma de fantasias inconscientes.
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