FREUD E O SONHO
- O SONHO É A REPRESENTAÇÃO DE UM DESEJO
O primeiro insight importante de Freud sobre a natureza dos sonhos foi que, a exemplo dos sonhos despertos[1], os sonhos noturnos representam um desejo. Os sonhos despertos expressam um desejo que a pessoa pode reconhecer. (...) Baseando-se no que acontece nos sonhos despertos, Freud deduziu que os sonhos noturnos poderiam também ser uma expressão dos desejos[2]. Ele descobriu que os sonhos noturnos infantis são frequentemente uma expressão tão flagrante dos desejos quanto os sonhos despertos. E relatou que uma de suas filhas, após um dia de jejum devido uma enfermidade, sonhou com morangos, omelete e pudim.
Freud observou que também em alguns sonhos de adultos o desejo é tão transparente que pouca ou nenhuma análise é preciso para compreendê-lo. Ele relatou que, se comesse comida salgada no jantar, acordaria invariavelmente com sede à noite. Pouco antes de acordar, sempre estava sonhando que desfrutava o mais delicioso e satisfatório drinque imaginável. Então, acordava e tinha de beber algo de verdade. O fato de estar com sede causava o desejo de beber, e o sonho representava a realização desse desejo.
- OS DESEJOS IMORAIS SÃO GERALMENTE REPRESENTADOS NO SONHO COM UMA LINGUAGEM SIMBÓLICA, METAFÓRICA
Nos sonhos (...) a transparência é rara[3]. Nos sonhos que mais ricamente iluminam as forças inconscientes, o desejo está oculto[4]; este foi o importante insight que Freud teve em seguida. (...) Os desejos encobertos permeiam os sonhos.
- AO REALIZAR PRAZEROSAMENTE TODOS OS DESEJOS E, AO MESMO TEMPO, EVITAR A ANGÚSTIA GERADA PELOS DESEJOS IMORAIS, O SONHO ZELA PELA MANUTENÇÃO DO SONO; A CENSURA, UM ELEMENTO CONSTITUTIVO DO SONHO, É FUNDAMENTAL PARA QUE O SONO SE MANTENHA
Ao detectar um relaxamento da censura durante o sono, o desejo recalcado tenta se aproveitar dessa oportunidade para se manifestar. No entanto, embora relaxada, a censura não está de folga. (...) Montando guarda à noite reconhece que o desejo sem disfarce causaria uma ansiedade suficiente para acordar a pessoa que dorme. Assim, embora careça do poder de recalcar o desejo (...), essa função dá um jeito de disfarça-lo e, desse modo, proteger (em geral) o descanso do indivíduo que está dormindo.
- CONTEÚDO LATENTE E CONTEÚDO MANIFESTO DO SONHO
Freud chamou os acontecimentos lembrados do sonho de seu conteúdo manifesto. O desejo oculto, chamou de conteúdo latente. A censura converte o conteúdo latente no sonho manifesto, distorcendo-o.
- SIMBOLISMO DO SONHO E SEXUALIDADE
Desde o começo do seu trabalho com os sonhos, Freud estava interessado nos símbolos oníricos. Por exemplo, um rei e uma rainha em um sonho representavam os pais da pessoa que está sonhando; o príncipe ou a princesa, o próprio sonhador. Freud passou a ter a convicção de que os símbolos, particularmente os sexuais, podiam ser fidedignamente interpretados e seriam capazes de elucidar o conteúdo latente do sonho. (...) Objetos alongados referiam-se ao genital masculino; objetos rasos e receptivos ao genital feminino e ao aparelho reprodutor; e subir degraus ou escadas, à relação sexual.
- O SONHO SE PARECE COM A NEUROSE, E É UM MEIO DE DESCOBRIR E INTERPRETAR CONFLITOS NEURÓTICOS
A neurose é (frequentemente) causada pelo recalque de desejos sexuais inaceitáveis. O recalque não foi suficientemente completo para proteger a pessoa da culpa inconsciente, daí a aflição da neurose. Os desejos encobertos estão sob pressão, buscando expressão, e encontram essa expressão nos sintomas neuróticos. Numa tentativa de ao menos evitar a culpa consciente, o desejo completamente recalcado se disfarça, para poder passar pela censura que, antes de tudo, o recalcou. Portanto, o sintoma deve ser decodificado para que revele seu significado inconsciente. (...)
Não é difícil perceber por que Freud considerava a interpretação dos sonhos tão importante. Ele acreditava que todos os sonhos eram construídos do mesmo modo que os sintomas neuróticos. Como acreditava que remover um sintoma neurótico dependia da apreensão do seu significado inconsciente, interpretar um sonho seria um passo em direção à cura, porque o significado do sonho revelaria parte do significado do sintoma. (...) Os desejos inaceitáveis e disfarçados causam o problema neurótico e devem ser decodificados. Os desejos inaceitáveis e disfarçados que produzem o sonho podem ser decodificados, desmascarando desse modo um dos desejos geradores de sintomas.
Assim, podemos compreender por que Freud chamou a interpretação dos sonhos de “estrada soberana para o inconsciente”, e por que ele considerava a chave indispensável para psicanalisar a neurose.
KAHN, Michael. Freud básico: pensamentos psicanalíticos para o século XXI. Rio de Janeiro: Edições BestBolso, 2013. p. 176 a 185.
[1] Freud chama também os sonhos despertos de devaneios, ou sonhos diurnos.
[2] Isto é, nos sonhos despertos os desejos estão expressos de maneira mais clara, menos escondida do que nos sonhos noturnos.
[3] Transparência no sentido de expressão clara e inequívoca de um desejo.
[4]Isto significa que quanto mais claro um desejo está expresso em um sonho, menos profundamente este sonho mergulhou no inconsciente para expressar os seus desejos. Os desejos que são manifestados com muita clareza em um sonho podem nem ser inconscientes, mas meramente conscientes.
A psicanálise (...) encontra (...) no sonho (...) o caminho mais fácil rumo ao inconsciente. Freud demonstra que o sonho resulta de um trabalho de elaboração ao término do qual os desejos que foram objeto de um recalcamento na vida diurna conseguem se exprimir, mas disfarçando-se para frustrar a censura e serem aceitos pela consciência (quando o disfarce é insuficiente ou está a ponto de cessar, como em certos pesadelos, a consciência desperta aquele que dorme, daí a fórmula de Freud: “o sonho é o guardião do sono”).
Deve-se a partir de então distinguir com cuidado o conteúdo manifesto e o conteúdo latente do sonho: o primeiro corresponde à narrativa que o que sonha fará ao despertar, o segundo ao sentido que os elementos oníricos têm para o inconsciente, “aquém” do disfarce. O “trabalho do sonho”, que permite passar do conteúdo latente ao conteúdo manifesto, efetua-se segundo dois processos: a condensação, pela qual um elemento do conteúdo manifesto será portador de vários sentidos do conteúdo latente, e o deslocamento, graças ao qual a representação manifesta, tomando emprestado resíduos da vida diurna mais ou menos próxima, adquire muitas vezes um aspecto insólito ou “divertido”, a energia própria do desejo inconsciente sendo deslocada dessa maneira para uma representação (...) que se torna suportável.
O sonho é dessa maneira simbólico, mas de um simbolismo complexo (...). O objetivo da análise do sonho será, portanto, reencontrar o conteúdo latente adivinhando por trás do enclausuramento aparente do relato manifesto uma efervescência que corresponde ao próprio dinamismo do inconsciente.
Ao mostrar que deslocamento e condensação correspondem a procedimentos retóricos (respectivamente a metáfora e a metonímia), J. Lacan[1] lembre veementemente a semelhança que existe entre a atividade onírica e a criação artística, em particular poética.
DUROZOI, Gérard e ROUSSEL, André. Dicionário de filosofia. Verbete: sonho. Campinas: Papirus, 1993. p. 446.
[1] Jacques Lacan (1901-1981), psicanalista francês.
SINTOMAS NEURÓTICOS, LAPSOS VERBAIS E SONHOS NA PSICANÁLISE
A interpretação freudiana dos sonhos baseia-se no mesmo princípio subjacente a toda a sua teoria psicológica: o conceito de que podemos ter (...) sentimentos e desejos motivadores de nossas ações dos quais, todavia, não tomamos conhecimento. Ele chamou a esses desejos “inconscientes”, e com isso quis dizer não só que não nos apercebemos deles como também que um poderoso “censor” nos protege contra a possibilidade de os percebermos. Por diversas razões, das quais a mais importante é o medo de perder a aprovação dada por nossos pais e amigos, reprimimos esses desejos, cuja conscientização nos faria sentir culpados ou receosos de ser punidos. Entretanto, a repressão de tais desejos não significa deixarem eles de existir. De fato, continuam a existir com tal vigor que se manifestam por várias formas, mas de modo tal a não nos darmos conta deles terem como que entrado pela porta dos fundos. Nosso sistema consciente pensa ter-se descartado de sentimentos e desejos assim indesejáveis e horroriza-se ante a ideia deles poderem estar dentro de nós; quando, de fato, voltam e revelam sua presença, aparecem, por isso, tão deformados e disfarçados que nosso pensamento consciente não se identifica com o que deveras são.
- SINTOMAS NEURÓTICOS
Dessa maneira Freud explicou o sintoma neurótico. Ele supôs que desejos poderosos impedidos de se tornarem conscientes pelo “censor” exprimem-se através do sintoma, mas de uma forma mascarada de modo a só tomarmos conhecimento do sofrimento provocado pelo sintoma e não da realização daqueles desejos irracionais. Assim, Freud reconheceu, pela primeira vez, o sintoma neurótico com algo determinado por forças dentro de nós mesmos, como algo que faz sentido quando se possui a chave para entendê-lo.
Um exemplo elucidará esse ponto. Uma senhora queixa-se de uma compulsão para lavar as mãos toda vez que toca em qualquer coisa. Está claro que isso se converteu em um sintoma enormemente incômodo, pois interrompe-lhe todas as atividades e a deixa absolutamente aflita. Ela não sabe por que tem de fazer isso. Só fala que sente uma angústia insuportável quando tenta deixar de fazê-lo. O próprio fato dela ter de obedecer a um impulso que se apoderou dela sem ela saber a razão aumenta consideravelmente sua aflição. Analisando as fantasias (...) dela, verifica-se estar a paciente às voltas com um intenso sentimento de hostilidade. Na verdade, o início do sintoma coincide com o fato do esposo dela ter começado um caso amoroso com outra mulher, abandonando-a de maneira abrupta e cruel. Ela sempre dependera do marido e nunca ousara criticá-lo ou contradizê-lo. Mesmo quando o marido anunciou sua intenção de deixa-la, ela mal pronunciou uma palavra – nenhuma reprovação, nenhuma acusação, nenhuma raiva. Mas nessa ocasião o sintoma começou a se apoderar dela. A análise posterior mostrou ter tido a paciente um pai cruel e dominador, de quem ela tinha medo e ante o qual jamais se atrevera a evidenciar zanga ou desaprovação. A análise também mostrou que sua brandura e submissão não indicavam ausência de raiva, pelo contrário, sob a conduta manifesta, a raiva se acumulara; esta só se exprimia através de fantasias, como, por exemplo, de ver o pai correndo, sendo assassinado ou preso. Seu desejo de vingança e seu ódio foram tornando-se maiores, e no entanto seu medo e as exigências de sua consciência forçaram-na a reprimir esses desejos quase completamente. O comportamento do marido para com ela ressuscitou aquela raiva represada, pondo mais lenha na fogueira. Aí, também, contudo, ela não conseguiu exprimi-la nem sequer senti-la. Caso se tivesse dado conta da hostilidade, teria tido vontade de matar ou no mínimo ferir o marido, e os sintomas neuróticos talvez não se tivessem formado. Como ocorreu, a hostilidade agiu em seu íntimo sem ela perceber.
O sintoma neurótico dessa mulher foi uma reação a essa hostilidade. Inconscientemente, tocar em coisas tornou-se em atos de destruição, e precisava lavar as mãos a fim de limpar-se do ato destruidor que cometera. Era como se tivesse sangue nas mãos e o tivesse de lavar repetidamente. A compulsão de lavar era uma reação ao impulso hostil, uma tentativa de desfazer o crime cometido, e no entanto ela só percebia a necessidade de lavar as mãos, sem conscientizar as razões para fazê-lo. O sintoma, aparentemente um ato sem sentido, pôde assim ser entendido como um comportamento significativo logo que se penetrou no setor inconsciente da personalidade dela, onde tinha raízes a conduta aparentemente absurda. Lavar as mãos era uma acomodação que lhe permitia ir vivendo, embora inconscientemente, com sua raiva, e no entanto limpar-se da culpa por meio do cerimonial da lavagem de mãos.
- LAPSOS VERBAIS OU ATOS FALHOS
A descoberta da compreensão dos processos do inconsciente levou Freud a uma outra, que lançou luz sobre o comportamento normal. Ela permitiu-lhe explorar um erro como o esquecimento ou os lapsos da língua que haviam intrigado muitos observadores e para os quais ainda não se encontrava explicação. Todos estamos familiarizados com o fenômeno da gente de repente não conseguir lembrar-se de um nome perfeitamente conhecido. Embora seja verdade poder esse esquecimento dever-se a diversas causas, Freud descobriu estar muitas vezes a explicação no fato de alguma coisa em nós querer pensar no nome, por este nome estar associado a medo, raiva ou outra emoção parecida, e nosso desejo de dissociar-se do aspecto desagradável levar-nos a esquecer o nome a ele vinculado. Como Nietzsche[1] disse certa vez: “Minha memória diz que eu fiz isso, mas meu orgulho diz que não o poderia ter feito. Minha memória sai perdendo.”
O motivo para esses lapsos não é obrigatoriamente um sentimento de medo ou de culpa. Se alguém se encontra com uma pessoa e em vez de “Como vai?” as palavras “Até mais” ou “Adeus” escapam-lhe dos lábios, ele manifestou seu verdadeiro sentimento: desejaria poder imediatamente deixar a pessoa encontrada ou não a ter sequer encontrado. As convenções impedem-no de exprimir tal sentimento, mas seu desagrado pela pessoa manifestou-se como que pelas costas dele. Esse desagrado colocou-lhe na boca as palavras exatas que exprimem seu verdadeiro sentimento, ao passo que conscientemente procurava indicar o prazer de encontrar aquela pessoa.
- SONHOS
Os sonhos são outra parte do comportamento tornada por Freud como uma expressão de anseios inconscientes. Ele imagina que, como no sintoma neurótico ou no ato falho, o sonho dá manifestação a anseios inconscientes de que nós não nos permitimos tomar conhecimento e assim mantemos fora da conscientização quando estamos no pleno comando de nossos pensamentos. Essas ideias e sentimentos reprimidos adquirem vida e manifestam-se durante o sono, e damo-lhes o nome de sonhos.
Várias outras hipóteses mais definidas decorrem deste conceito geral de sonho:
As forças motivadoras de nossa vida onírica são os desejos irracionais. Durante o sono, adquirem vida certos impulsos cuja existência não queremos ou não ousamos reconhecer quando acordados. Ódio, ambição, ciúme e inveja irracionais e particularmente desejos sexuais incestuosos ou pervertidos, por nós excluídos da consciência, exprimem-se em nossos sonhos. Freud supõe todos termos dentro de nós esses desejos irracionais, que reprimimos devido a exigências da sociedade, mas sem deles podermos desvencilhar-nos inteiramente. Durante o sono, nosso controle consciente se enfraquece e esses desejos adquirem vida e fazem-se ouvir em sonhos.
Freud dá mais um passo adiante. Ele liga a teoria dos sonhos à função do sono. Ora, o sono é uma necessidade fisiológica e nosso organismo tende a aproveitá-lo o mais possível. Se sentíssemos aqueles intensos desejos irracionais em nosso sono, ficaríamos perturbados e acabaríamos acordando. Então esses desejos interfeririam na necessidade biológica de permanecer adormecido. O que fazemos, pois, para preservar o sono? Imaginamos terem nossos desejos se realizado, sendo assim deixados com um sentimento de satisfação ao invés de com uma frustação perturbadora.
Freud chega, portanto, à hipótese da essência dos sonhos ser a realização alucinatória de desejos irracionais: a função deles é preservar o sono. Essa explicação é mais facilmente entendida nos casos em que o desejo não é irracional e, por conseguinte, o sonho não é deturpado, como ocorre no sonho comum, segundo Freud. Suponha-se que alguém tenha comido um prato demasiadamente salgado antes de adormecer e sinta sede intensa durante a noite. Talvez sonhe estar procurando água, encontra um poço e bebe grandes quantidades de água fresca e agradável. Em vez de acordar a fim de satisfazer a sede, ele se dá uma satisfação alucinatória com a fantasia de beber água e isso permite-lhe continuar dormindo. Todos conhecemos uma satisfação alucinatória semelhante quando somos acordados pelo relógio despertador e, nesse exato momento, produz-se um sonho em que ouvimos sinos de igreja badalando e imaginamos ser domingo e não precisamos levantar tão cedo. Nesse caso, também, o sonho preencheu uma função protetora do nosso sono. Freud julga serem essas simples realizações de desejos (que em si mesmos não são irracionais) relativamente raras entre adultos, e de um modo geral nossos sonhos serem uma realização não de tais desejos racionais, porém dos desejos irracionais reprimidos durante o dia.
Uma segunda suposição feita por Freud acerca da natureza dos sonhos é desses desejos irracionais expressos como realizados no sonho, terem suas raízes em nossa infância, de outrora terem tido vida quando éramos crianças e de prosseguirem vivendo subterraneamente para ressuscitarem em nossos sonhos. (...) A ênfase dada à natureza infantil do conteúdo do sonho poderia levar alguém a crer que Freud não imagina haver qualquer vínculo importante entre o sonho e o presente, mas só com o passado. Entretanto, não é esse absolutamente o caso. A hipótese de Freud é do sonho sempre ser estimulado por uma ocorrência do presente, geralmente do dia ou da noite anterior ao sonho. Um sonho, porém, só é provocado por fatos relacionados com anseios infantis primitivos. A energia para a criação do sonho deriva da intensidade da experiência infantil, porém o sonho não chegaria a existir se não houvesse o fato recente que tocou na experiência anterior e possibilitou-lhe vir à vida naquele momento em particular. Uma simples exemplificação elucidará esse ponto: um homem subordinado a um chefe autoritário pode ter um medo exagerado deste devido ao medo que tinha do próprio pai quando criança. Na noite seguinte ao dia em que o chefe o criticou por uma razão qualquer, ele tem um pesadelo onde aparece uma figura que é uma combinação do pai e do chefe e que tenta matá-lo. Se ele em criança não tivesse tido medo do pai, o aborrecimento do chefe não o haveria assustado. Porém, se o patrão não tivesse ficado aborrecido naquele dia, esse medo profundamente arraigado não teria sido mobilizado e o sonho não teria ocorrido. (...)
Freud supõe que em nossa vida adormecida o censor moral, presente dentro de nós, também está semiadormecido. Assim, têm permissão de ingressar em nossa consciência, durante o sono, pensamentos e fantasias que do contrário ficam completamente fora. Mas o censor só está meio adormecido. Ele está suficientemente desperto para impossibilitar os pensamentos proibidos de aparecerem clara e inequivocamente. Se a função do sonho é preservar nosso sono, os desejos irracionais surgidos no sonho têm de ser suficientemente camuflados para iludir o censor. Assim como os sintomas neuróticos, eles são um acomodamento entre as forças reprimidas do id e a força repressora do superego censor. Ocorre, às vezes, esse mecanismo de distorção não funcionar convenientemente e nosso sonho tornar-se demasiadamente claro para ser menosprezado pelo censor – e aí acordamos. Consequentemente, a suposição de Freud é a principal característica da linguagem onírica ser o processo de disfarce e distorção dos desejos irracionais que nos permite continuar dormindo sossegados. Essa ideia tem repercussão considerável no conceito freudiano de simbolismo. Freud crê ser função capital do símbolo a de disfarçar e deturpar o desejo subjacente. A linguagem simbólica é concebida como um “código secreto”, e a interpretação dos sonhos como a arte de decifrá-lo[2].
A suposição tanto da natureza infantil irracional do conteúdo do sonho quanto da função deturpadora do trabalho do sonho conduziu a um conceito (...) de (...) linguagem simbólica. A linguagem simbólica, para Freud, (...) é uma língua capaz de exprimir (...) certos desejos instintivos primitivos. A vasta maioria dos símbolos é de natureza sexual. O órgão genital masculino é representado por bengalas, árvores, guarda-chuvas, facas, lápis, martelos, aviões, e muitos outros objetos aptos a representa-lo, seja por sua forma, seja por sua função. O órgão genital feminino é representado, da mesma maneira, por grutas, garrafas, caixas, portas, estojos de joias, jardins, flores etc. O prazer sexual é figurado por atividades tais como dançar, andar a cavalo, montanhismo, pilotagem. A queda de cabelos ou de dentes é uma representação simbólica da castração. À parte os elementos sexuais, os símbolos são expressões das experiências fundamentais da criancinha. O pai e a mãe são simbolizados como rei e rainha ou imperador e imperatriz, as crianças como animais pequenos, a morte como uma viagem.
Em sua interpretação dos sonhos, contudo, Freud utiliza mais os símbolos acidentais[3] do que os universais. Ele alega que, a fim de interpretar o sonho, temos de parti-lo em diversos pedaços (...). A seguir, procuramos associar ideias (...) a cada elemento (...), a cada uma das partes aparecidas no sonho. Se reunirmos as ideias obtidas (...), teremos um novo texto com uma coerência e lógica interiores e conheceremos o verdadeiro significado do sonho.
Esse sonho real, expressão de nossos desejos ocultos, é por Freud chamado de “sonho latente”. A versão deturpada do sonho, tal como o recordamos, é o “sonho manifesto”, e o processo de deturpação e disfarce é o “trabalho do sonho”. Os principais mecanismos mediante os quais o trabalho do sonho traduz o sonho latente para o manifesto são condensação, deslocamento e elaboração secundária.
Por condensação, Freud refere-se ao fato do sonho manifesto ser muito mais curto do que o latente. Ele deixa de fora muitos elementos do sonho latente, combina fragmentos de vários elementos, e condensa-os em um novo elemento no sonho manifesto. Se uma pessoa sonha por exemplo com uma figura masculina autoritária de que tem receio, ela pode, no sonho manifesto, ver um homem cujo cabelo parece com o do próprio pai, cujo rosto lembra o de um professor atemorizador, e que está vestido como o seu patrão ou chefe. Ou então, se ela sonha com uma situação em que se sentiu triste e infeliz, poderá sonhar com uma casa cujo telhado represente uma casa em que ela passou por essa mesma experiência de tristeza e cujo quarto tenha a forma do de uma outra casa ligada a mesma experiência emocional. No sonho manifesto, ambos os elementos aparecem na figura composta de uma única casa. Esses exemplos revelam como só são condensados em uma imagem os elementos cujo conteúdo emocional é idêntico. Em vista da natureza da linguagem simbólica, o processo de condensação pode ser facilmente entendido. Conquanto com referência à realidade externa seja importante o fato de duas pessoas ou duas coisas serem diferentes, sob o ponto de vista da realidade interior esse fato não tem a menor consequência. O que interessa é se relacionarem e exprimirem a mesma experiência interior.
Por deslocamento, Freud refere-se ao fato de um elemento do sonho latente, e muitas vezes importante, ser exprimido por um elemento vago no sonho manifesto e que geralmente aparece como sendo (...) sem importância. Resulta daí o sonho manifesto frequentemente tratar os elementos realmente importantes como se não tivessem maior significação, disfarçando assim o verdadeiro sentido do sonho.
Por elaboração secundária, Freud entende a parte do trabalho do sonho que arremata o processo de disfarce. Lacunas do sonho manifesto são preenchidas, são reparadas incoerências e, assim, o sonho manifesto assume a forma de uma história lógica e coerente, por trás de cuja fachada se esconde o enredo emocionante e dramático do sonho verdadeiro.
Freud menciona dois outros fatores que dificultam a compreensão do sonho e acentuam a função deturpadora do trabalho do sonho. Um deles é frequentemente os elementos representarem exatamente seus opostos: estar vestido pode simbolizar nudez, ser rico pode representar pobreza, e o sentimento de uma determinada afeição pode estar no lugar de hostilidade e raiva. O outro fator é o sonho manifesto não exprimir relações lógicas entre seus vários elementos: ele não tem “mas”, “por conseguinte”, “porque”, “se”, exprimindo essas relações lógicas na relação entre imagens pictóricas. O sonhador, por exemplo, talvez sonhe com uma pessoa que se levante e suspenda o braço e a seguir se transforme em uma galinha. Em linguagem de estado de vigília, a ideia-sonho seria expressa como significando: “Ele parece ser forte, mas na verdade é fraco e covarde como uma galinha”. No sonho manifesto, essa relação lógica é expressa pela sequência das duas imagens.
FROMM, Erich. A linguagem esquecida. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1983. p. 44, 45, 46, 47, 58, 59, 60, 61.
[1] Friedrich Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão.
[2] “Código secreto” na medida em que a linguagem metafórica e metonímica do inconsciente, feita de deslocamentos e condensações de imagens, é mais arcaica (infantil) e por isso pouco compreensível para a linguagem lógica e conceitual (adulta) da razão consciente.
[3] Símbolos acidentais, isto é, imagens criadas pelo simbolismo inconsciente de cada ser humano singular, sem qualquer padronização universal.
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