COMPULSÃO À REPETIÇÃO
O que Freud chamou de “compulsão à repetição” (...) provoca desânimo quando o percebemos em nossos amigos, e desespero quando o percebemos em nós mesmos. Todos nós já suspiramos aliviados quando um amigo finalmente se afastou de um relacionamento destrutivo, apenas para observarmos incrédulos que ele começou um novo relacionamento com as mesmas características. Repetir a mesma situação infeliz por vezes seguidas é uma das principais causas da miséria humana e uma das primeiras coisas que um terapeuta procura quando se propõe a compreender um cliente.
Freud expõe da seguinte maneira:
“Assim, encontramos pessoas cujas relações humanas têm todas o mesmo resultado, tal como o benfeitor que é abandonado iradamente, após certo tempo, por todos os seus protegidos, por mais que eles possam, sob outros aspectos, diferir uns dos outros, parecendo assim condenado a provar todo o amargor da ingratidão; o homem cujas amizades todas findam por uma traição por parte do amigo; o homem que, repetidas vezes, no decorrer da vida, eleva outrem a uma posição de grande autoridade particular ou pública e depois, após certo intervalo, subverte essa autoridade e a substitui por outra nova; ou, ainda, o namorado cujos casos amorosos com mulheres atravessam as mesmas fases e chegam à mesma conclusão” (Além do princípio do prazer)
(...) Como acontece com tanto do comportamento humano, parece paradoxal: por que se da o trabalho de criar uma situação que só poderá mesmo causar dor e frustração à pessoa? Quando examinamos o fenômeno, quer em nós mesmos, quer em nossos amigos ou pacientes, torna-se claro que é uma situação muito antiga e muito dolorosa que está sendo repetidamente criada. (...)
Freud era fascinado pela compulsão à repetição. Ele ficava intrigado com crianças que brincavam do mesmo jogo vezes e vezes seguidas. Em um desses jogos observado por ele, a criança arremessava um brinquedo dizendo “Foi!”, e depois o pegava de novo. Ele estava certo de que isso representava a mãe saindo de casa. Primeiro, ele supôs que o principal aspecto da brincadeira fosse o ato de pegar o brinquedo de novo, desfazendo, desse modo, a partida da mãe. Mas então percebeu que a criança podia continuar jogando por algum tempo, com aparente satisfação, omitindo a pare de pegar o brinquedo de novo e simplesmente atirando uma série deles para longe da vista, sob uma mesa. Se era sempre doloroso quando a mãe saia, por que a criança brincava com isso vezes seguidas?
A atenção de Freud foi então atraída para o funcionamento da compulsão à repetição no relacionamento entre o paciente e o analista. Ele observou que os pacientes muitas vezes tentam manipular o analista para fazê-lo repetir o relacionamento parental. Como o relacionamento que estava sendo repetido era frequentemente muito desagradável – um vínculo com um progenitor raivoso ou rejeitador, por exemplo -, Freud achou surpreendente que essas pessoas parecessem estar cortejando sem cessar o que ele chamou de “desprazer”. Como ele poderia justificar isso?
Freud começou a perceber que não era apenas na situação psicanalítica que a compulsão à repetição aparecia, e não apenas com pessoas que ele considerava neuróticas. Ela parecia acontecer com uma ampla gama de pessoas e em uma ampla variedade de situações.
Freud atribuiu grande importância ao princípio do prazer (...). Se fosse possível, ele pensava, levaríamos nossas vidas buscando apenas experiências que fossem prazerosas e gerassem satisfação. As realidades do mundo e da nossa consciência tornam isso impossível, de modo que o princípio do prazer está continuamente sendo modificado, e frequentemente sendo frustrado, pelo princípio da realidade. Sob influência desse princípio, aprendemos a evitar prazeres que nos causarão problemas ou a adiar a gratificação, para obter uma gratificação maior mais tarde. A compulsão à repetição não parecia obedecer a qualquer um desses princípios. Parecia a Freud, para sua imensa surpresa, que ele havia topado com uma força mais poderosa que o princípio do prazer.
Em 1920, ele publicou Além do princípio do prazer, no qual tentou explicar a compulsão à repetição. (...) Uma das leis primárias do inconsciente é que aquilo que está recalcado busca se expressar. Essa expressão produziria parte do prazer frustrado pelo recalque. Uma das leis primárias do ego é que a expressão é negada àquilo que está recalcado. É isso que o recalque quer dizer de fato. (...) Esta fórmula foi uma boa tentativa, mas Freud sabia que ela não funcionava. Sob a influência da compulsão à repetição, as pessoas sonham ou representam repetições de episódios ou relacionamentos que, em primeiro lugar, nunca foram agradáveis; o princípio do prazer foi flagrantemente derrotado. Além disso, as pessoas frequentemente se lembram muito bem da situação dolorosa original; portanto, ela nem parece que foi recalcada. (...)
Você pode estar interessado em saber qual foi o passo seguinte dado por Freud em seu trabalho para compreender esse fenômeno fascinante. Em Além do princípio do prazer, ele afirmou que tinha chegado à conclusão de que o princípio do prazer não era, afinal, a força mais poderosa. Ele achava que tinha encontrado uma pulsão regressiva. Entendia agora que havia duas forças principais operando em nós, forças em constante combate mortal. A primeira delas consistia das pulsões de Eros, a energia da vida, que tem por objetivo reunir e impulsionar a vida. A segunda força principal consistia das pulsões de destruição, que regridem para tentar recuperar o estado original das partes componentes do universo. Ele achava que essa destruição incluía uma “pulsão de morte” em constante luta contra Eros. Toda a nossa agressividade e destrutibilidade decorriam desse segundo grupo de pulsões. A compulsão à repetição, ele pensava, é uma manifestação dessas pulsões regressivas, um componente da pulsão de morte, sempre em luta contra Eros, para nos fazer regredir a um estado primitivo. Freud considerava a compulsão à repetição mais poderosa que o princípio da realidade. Ele resumiu essas ideias em O mal-estar na civilização, publicado dez anos depois de Além do princípio do prazer:
“Não obstante, ainda permanecia em mim uma espécie de convicção, para a qual ainda não me considerava capaz de encontrar razões, de que as pulsões não podiam ser todas da mesma espécie. Meu passo seguinte foi dado em Mais além do princípio do prazer, quando, pela primeira vez, a compulsão à repetição e o caráter conservador da vida pulsional atraíram minha atenção. Partindo de especulações sobre o começo da vida e de paralelos biológicos, concluí que, ao lado da pulsão para preservar a substância viva e para reuni-la em unidades cada vez maiores, deveria haver outro instinto, contrário àquele, buscando dissolver essas unidades e conduzi-las de volta a seu estado primevo e inorgânico. Isso equivalia a dizer que, assim como Eros, existia também uma pulsão de morte. Os fenômenos da vida podiam ser explicados pela ação concorrente, ou mutuamente oposta, dessas duas pulsões. Não era fácil, contudo, demonstrar as atividades dessa suposta pulsão de morte.”
KAHN, Michel. Freud básico – pensamentos psicanalíticos para o século XXI. Rio de Janeiro: BestBolso, 2013. p. 112 a 120.
A)
Ao nível da psicopatologia concreta, processo incoercível e de origem
inconsciente, pelo qual o sujeito se coloca ativamente em situações penosas,
repetindo assim experiências antigas sem se recordar do protótipo e tendo, pelo
contrário, a impressão muito viva de que se trata de algo plenamente motivado
na atualidade.
B)
A compulsão à repetição na elaboração teórica de Freud é considerada um fator
autônomo, irredutível, em última análise, a uma dinâmica conflitual onde só
entrasse o jogo conjugado do princípio de prazer e do princípio de realidade. É
referida fundamentalmente ao caráter mais geral das pulsões: o seu caráter
conservador.
A
noção de compulsão à repetição está no centro de Além do princípio do prazer
(Jenseits des Lustprinzips, 1920), ensaio onde Freud reconsidera os
conceitos mais fundamentais da sua teoria. Ela participa de tal modo da
investigação especulativa de Freud nesse momento decisivo, com suas hesitações,
impasses e mesmo contradições, que é difícil delimitar a sua acepção restrita
como também a sua problemática própria. E uma das razões por que, na literatura
psicanalítica, a discussão do conceito é confusa e muitas vezes retomada: ela
faz necessariamente entrar em jogo opções sobre as noções mais cruciais da obra
freudiana, como as de princípio de prazer, pulsão, pulsão de
morte, ligação.
É
evidente que a psicanálise se viu confrontada desde a origem com fenômenos de
repetição. Se focalizamos particularmente os sintomas, por um lado alguns deles
são manifestamente repetitivos (rituais obsessivos, por exemplo), e, por outro,
o que define o sintoma em psicanálise é precisamente o fato de reproduzir, de
maneira mais ou menos disfarçada, certos elementos de um conflito passado (é
neste sentido que Freud qualifica, no início da sua obra, o sintoma histérico
como símbolo mnésico). De um modo geral, o recalcado procura “retornar” ao
presente, sob a forma de sonhos, de sintomas, de atuação: “... o que permaneceu
incompreendido retorna; como uma alma penada, não tem repouso até que seja encontrada
solução e alívio”.
No
tratamento, os fenômenos de transferência atestam essa exigência, própria do
conflito recalcado, de se atualizar na relação com o analista. Aliás, foi a
importância sempre crescente atribuída a esses fenômenos e aos problemas
técnicos por eles levantados que levou Freud a completar o modelo teórico do
tratamento, distinguindo, ao lado da rememoração, a repetição transferencial e
a perlaboração como momentos dominantes do processo terapêutico. Ao colocar em
primeiro plano, em Além do princípio do prazer, a noção de compulsão à
repetição invocada desde Recordar, repetir, perlaborar (Erinnern,
Wiederholen und Durcharbeiten, 1914), Freud reagrupa um certo número de
fatos de repetição já descobertos e isola outros em que a repetição se
apresenta no primeiro plano do quadro clínico (neurose de destino e neurose
traumática, por exemplo). Para ele, esses fatos parecem exigir uma nova análise
teórica. Com efeito, são experiências manifestamente desagradáveis que são repetidas,
e, numa primeira análise, não se vê muito bem que instância do sujeito poderia
encontrar satisfação nisso; embora se trate de comportamentos aparentemente
incoercíveis, marcados por esta compulsão própria de tudo o que emana do
inconsciente, ainda assim é difícil pôr em evidência aqui a realização de um
desejo recalcado, ainda que sob a forma de compromisso.
O
caminho da reflexão freudiana nos primeiros capítulos de Além do princípio
do prazer não significa uma recusa da hipótese fundamental segundo a qual,
sob o aparente sofrimento, o do sintoma por exemplo, se procure a realização de
desejo. Mais: é neste texto que Freud apresenta a tese bem conhecida segundo a
qual o que é desprazer para um sistema do aparelho psíquico é prazer para
outro. Mas tais tentativas de explicação deixam, segundo Freud, um resíduo. A
questão colocada poderia ser assim resumida, recorrendo a termos introduzidos
por D. Lagache: será necessário postular, ao lado da repetição das
necessidades, a existência de uma necessidade de repetição radicalmente
distinta e mais fundamental? Mesmo reconhecendo que a compulsão à repetição não
é detectável no estado puro, mas é sempre reforçada por motivos que obedecem ao
princípio de prazer, Freud iria, até o fim da sua obra, atribuir alcance cada
vez maior à noção. Em Inibição, sintoma e angústia (Hemmung, Symptom
und Angst, 1926), ele vê na compulsão à repetição a espécie típica de resistência
própria do inconsciente, “... a atração dos protótipos inconscientes exercida
sobre o processo pulsional recalcado”.
Se
a repetição compulsiva do desagradável, e mesmo do doloroso, é reconhecida como
um dado irrecusável da experiência analítica, em contrapartida os autores
variam quanto à explicação teórica que deve ser dada a ela. Esquematicamente,
poderia dizer-se que a discussão se ordena em torno dessas duas questões:
1º
A tendência para a repetição trabalha a serviço de quê? Trata-se - como o
ilustrariam especialmente os sonhos repetitivos consecutivos a traumatismos
psíquicos — de tentativas do ego para dominar e depois ab-reagir de um modo
fracionado tensões excessivas? Ou devemos admitir que a repetição deve ser, em
última análise, relacionada com o que há de mais “pulsional”, de “demoníaco”,
em todas as pulsões, a tendência para a descarga absoluta que é ilustrada na
noção de pulsão de morte?
2º
A compulsão à repetição porá verdadeiramente em causa, como afirmou Freud, a
predominância do princípio de prazer? A contradição entre as formulações que
encontramos em Freud e a variedade das respostas que os psicanalistas tentaram
dar a este problema seriam esclarecidas, na nossa opinião, por uma discussão
prévia sobre as ambiguidades que se ligam aos termos princípio de prazer,
princípio de constância, ligação etc.
LAPLANCHE e
PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. Verbete: Compulsão à
repetição. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 83 a 85.
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