Módulo 52

 ONIPOTÊNCIA




        A onipotência assenta num desconhecimento total da realidade que é próprio do narcisismo primário (criação alucinatória do objeto do desejo pelo bebê) e que persiste em certos casos: em primeiro lugar, na criança e no primitivo, que superestimam a potência de seus desejos e de seus atos psíquicos, depois na patologia obsessiva (superstição) e na psicose (delírio de grandeza) e, por fim, em menor medida, no criador e naquele que, graças às obras de ficção, pode abandonar momentaneamente a realidade e desfrutar de suas fantasias. A questão da onipotência foi extensamente tratada por Freud a partir da onipotência dos pensamentos, tal como é observada nos povos primitivos (...) e na patologia (neurose obsessiva, delírio de grandeza na psicose).

         Embora Freud não lhe refira nestes termos, pode-se considerar que a regressão narcísica do sono coloca o sonhador na situação típica de onipotência, onde ele pode realizar os desejos frustrados do estado vígil e mais profundamente aqueles que o recalcamento o levou a reprimir. O sonho reitera a situação que era a do bebê procurando repetir a vivência de satisfação de acordo com o modelo do processo primário, ou seja, contornando a passagem pela realidade graças à alucinação. A identidade da percepção é assim obtida pela via regrediente rápida, no interior do aparelho psíquico. Acrescenta Freud: “É somente a falta persistente de satisfação esperada, a decepção, que leva ao abandono dessa tentativa de satisfação por meio da alucinação”. A esse título, a onipotência, que se confunde com a capacidade do aparelho psíquico para ignorar a realidade, tem uma importância universal enquanto funcionamento arcaico da psique.

         A difícil aprendizagem das limitações impostas pelo princípio da realidade ao princípio do prazer tem na criança o efeito de uma limitação de sua onipotência. Entretanto, como observou Melanie Klein, a onipotência da criança também está ligada àquela que ela atribui aos pais e com a qual se identifica. A realidade vai se opor tanto a uma quanto a outra: “O declínio do sentimento de onipotência, nascido da necessidade de reduzir a perfeição dos pais (necessidade que intervém certamente no processo ao estabelecer os limites do poder tanto da criança quanto deles), atua por sua vez sobre o enfraquecimento da autoridade, de tal forma que se observa uma interação, um apoio recíproco entre o enfraquecimento da autoridade e a redução do sentimento de onipotência” (Melanie Klein). Para a autora, segundo a maneira como a criança tenha visto o seu sentimento de onipotência ser reforçado ou destruído, assim ela se tornará ousada e otimista, ou medrosa e pessimista. Ela acrescenta, porém: “Para que o resultado do desenvolvimento de uma criança não seja uma utopia e uma fantasia sem limites, mas o otimismo, o pensamento deve corrigir o sentimento de onipotência em tempo oportuno”. É, portanto, uma solução de compromisso que se estabelece entre o domínio do princípio de prazer que rege os desejos e as fantasias e o domínio do princípio da realidade que governa a esfera do pensamento e dos fatos estabelecidos.

         Donald Woods Winnicott, por sua parte, mostra como a atividade mental da criança pode transformar um ambiente “suficientemente bom” num ambiente perfeito. Ela necessita disso para que o sentimento da continuidade de existir não seja perturbado. Em contrapartida, um ambiente defeituoso é ruim porque, por falta de adaptação, ela invade o psicossoma do bebê e o força a reagir, portanto, a sair do seu universo narcísico. A propósito (...), Winnicott nota: “Permitimos à criança essa fase de demência e apenas exigimos dela que faça progressivamente uma distinção clara entre o que é subjetivo e o que pode ser provado de maneira objetiva ou científica. Nós, adultos, recorremos à arte e à religião nesses momentos de relaxamento de que todos nós temos necessidade quando nos submetemos ao teste da realidade e a aceitamos”.

         Pois a onipotência não desaparece com a infância, mas limita-se a certos domínios e coexiste com o reconhecimento dos limites impostos pela realidade. A ficção literária e, em particular, o romance, permitem saborear com toda a segurança essa onipotência através dos perigos fictícios criados pela imaginação: “Eu, pessoalmente, penso – escreve Freud – que nessa característica reveladora da invulnerabilidade se reconhece sem esforço a presença de Sua Majestade o Eu, herói de todos os devaneios e sonhos diurnos, assim como de todos os romances”. A onipotência transmite-se de pais a filhos porque “também existe a tendência a suspender para a criança todas as conquistas culturais, cujo reconhecimento tivemos de impor ao nosso próprio narcisismo, e a renovar para ela a reivindicações de privilégios a que se havia renunciado há muito tempo (...). A doença, a morte, a renúncia ao prazer e a limitação da própria vontade têm de desaparecer para ela, e as leis da natureza, assim como as da sociedade, deverão deter-se diante dela. Ela terá de ser de novo o centro e o nódulo da criação, His Majesty the baby, como nós próprios imaginamos um dia ser” (Introdução ao narcisismo). (...)

         A crença na onipotência das ideias é própria do modo de pensar animista, mas também da neurose obsessiva, onde a mesma conduta mágica se encontra no sintoma. Ela consiste na certeza de ser capaz de transformar ou de influenciar o mundo exterior unicamente com ideias.

         Em Totem e tabu (1912-13), Freud sublinha que ficou devendo essa expressão (“onipotência dos pensamentos”) a “um doente muito inteligente que sofria de representações obsessivas”, no caso, o Homem dos Ratos (1909). Que se trate de um sintoma e não de um sistema de pensamento é atestado pelo fato de que a superstição do paciente se exercia a contragosto seu, à revelia de suas próprias convicções. Entretanto, mais do que um sintoma particular, trata-se, segundo Freud, de um traço geral próprio de toda neurose: “As neuroses só atribuem eficácia ao que é intensamente pensado, afetivamente representado, sem se preocupar em saber se o que é assim pensado e representado se harmoniza com a realidade exterior”.

         Entretanto, a onipotência só se harmoniza com os pensamentos que exprimem ou decorrem de um desejo recalcado. A intenção inconsciente é a que cria ou modifica a realidade. Nesse particular, essa onipotência junta-se à que é conhecida do bebê que supre pela alucinação a falta do objeto de satisfação. No adulto, animista ou obsessivo, o desejo inconsciente de morte é o que determina (...).

         A noção de onipotência dos pensamentos não é dissociável (...) do narcisismo. Em Sobre o narcisismo – uma introdução (1914), Freud serve-se da noção de onipotência dos pensamentos e dos desejos próprios das crianças, dos primitivos e dos esquizofrênicos, a fim de estabelecer a noção de narcisismo (...). É porque o investimento libidinal originário incide primeiro sobre o Eu e, em seguida, em parte, sobre os objetos, que o mundo exterior pode ser assim concebido como possivelmente submetido à força dos pensamentos. Subsequentemente, esse investimento narcísico será visto na autoestima do adulto, levando-o a recalcar o que não está em conformidade com o Ideal do Eu, mas, reciprocamente, “todo o remanescente do sentimento primitivo de onipotência que a experiência conformou contribui para aumentar o sentimento de autoestima”, o qual é a própria expressão da grandeza do Eu.

         A onipotência dos pensamentos, na medida em que sua origem deriva do narcisismo primário, é uma noção suscetível de numerosas extensões no tocante à questão das primeiras modalidades da representação e da relação com a realidade. Sándor Ferenczi estuda o desenvolvimento do sentido da realidade e sublinha que a criança continua agarrada ao seu sentimento de onipotência mesmo quando já sabe que deve levar em conta a realidade. Melanie Klein também sublinha a crença na onipotência do pensamento numa criança de quatro anos. Donald W. Winnicott mostra como os cuidados maternos adaptados à criança suscitam esse sentimento de onipotência necessário para criar o objeto que, de fato, já existe, mas só pode ser encontrado na ilusão de o criar.

         É difícil limitar a noção de onipotência dos pensamentos porque, de uma prática mágica ou de um sintoma da neurose obsessiva, ela se estende, de fato, à medida do ilimitado do narcisismo primário.

MIJOLLA, Alain de. Dicionário internacional de psicanálise. Vol. 2. Verbete Onipotência e Onipotência dos pensamentos. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. p.  1314, 1315 e 1316.

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