ONIPOTÊNCIA
        A onipotência assenta num
desconhecimento total da realidade que é próprio do narcisismo primário
(criação alucinatória do objeto do desejo pelo bebê) e que persiste em certos
casos: em primeiro lugar, na criança e no primitivo, que superestimam a
potência de seus desejos e de seus atos psíquicos, depois na patologia
obsessiva (superstição) e na psicose (delírio de grandeza) e, por fim, em menor
medida, no criador e naquele que, graças às obras de ficção, pode abandonar
momentaneamente a realidade e desfrutar de suas fantasias. A questão da
onipotência foi extensamente tratada por Freud a partir da onipotência dos
pensamentos, tal como é observada nos povos primitivos (...) e na patologia
(neurose obsessiva, delírio de grandeza na psicose).
         Embora Freud não lhe refira nestes termos, pode-se
considerar que a regressão narcísica do sono coloca o sonhador na situação típica
de onipotência, onde ele pode realizar os desejos frustrados do estado vígil e
mais profundamente aqueles que o recalcamento o levou a reprimir. O sonho
reitera a situação que era a do bebê procurando repetir a vivência de
satisfação de acordo com o modelo do processo primário, ou seja, contornando a
passagem pela realidade graças à alucinação. A identidade da percepção é assim
obtida pela via regrediente rápida, no interior do aparelho psíquico.
Acrescenta Freud: “É somente a falta persistente de satisfação esperada, a
decepção, que leva ao abandono dessa tentativa de satisfação por meio da
alucinação”. A esse título, a onipotência, que se confunde com a capacidade do
aparelho psíquico para ignorar a realidade, tem uma importância universal
enquanto funcionamento arcaico da psique.
         A difícil aprendizagem das limitações impostas pelo
princípio da realidade ao princípio do prazer tem na criança o efeito de uma
limitação de sua onipotência. Entretanto, como observou Melanie Klein, a
onipotência da criança também está ligada àquela que ela atribui aos pais e com
a qual se identifica. A realidade vai se opor tanto a uma quanto a outra: “O
declínio do sentimento de onipotência, nascido da necessidade de reduzir a
perfeição dos pais (necessidade que intervém certamente no processo ao
estabelecer os limites do poder tanto da criança quanto deles), atua por sua
vez sobre o enfraquecimento da autoridade, de tal forma que se observa uma
interação, um apoio recíproco entre o enfraquecimento da autoridade e a redução
do sentimento de onipotência” (Melanie Klein). Para a autora, segundo a maneira
como a criança tenha visto o seu sentimento de onipotência ser reforçado ou
destruído, assim ela se tornará ousada e otimista, ou medrosa e pessimista. Ela
acrescenta, porém: “Para que o resultado do desenvolvimento de uma criança não
seja uma utopia e uma fantasia sem limites, mas o otimismo, o pensamento deve
corrigir o sentimento de onipotência em tempo oportuno”. É, portanto, uma solução
de compromisso que se estabelece entre o domínio do princípio de prazer que
rege os desejos e as fantasias e o domínio do princípio da realidade que
governa a esfera do pensamento e dos fatos estabelecidos.
         Donald Woods Winnicott, por sua parte, mostra como a
atividade mental da criança pode transformar um ambiente “suficientemente bom”
num ambiente perfeito. Ela necessita disso para que o sentimento da
continuidade de existir não seja perturbado. Em contrapartida, um ambiente
defeituoso é ruim porque, por falta de adaptação, ela invade o psicossoma do
bebê e o força a reagir, portanto, a sair do seu universo narcísico. A
propósito (...), Winnicott nota: “Permitimos à criança essa fase de demência e
apenas exigimos dela que faça progressivamente uma distinção clara entre o que
é subjetivo e o que pode ser provado de maneira objetiva ou científica. Nós,
adultos, recorremos à arte e à religião nesses momentos de relaxamento de que
todos nós temos necessidade quando nos submetemos ao teste da realidade e a
aceitamos”.
         Pois a onipotência não desaparece com a infância, mas
limita-se a certos domínios e coexiste com o reconhecimento dos limites
impostos pela realidade. A ficção literária e, em particular, o romance, permitem
saborear com toda a segurança essa onipotência através dos perigos fictícios
criados pela imaginação: “Eu, pessoalmente, penso – escreve Freud – que nessa característica
reveladora da invulnerabilidade se reconhece sem esforço a presença de Sua Majestade
o Eu, herói de todos os devaneios e sonhos diurnos, assim como de todos os
romances”. A onipotência transmite-se de pais a filhos porque “também existe a
tendência a suspender para a criança todas as conquistas culturais, cujo
reconhecimento tivemos de impor ao nosso próprio narcisismo, e a renovar para ela
a reivindicações de privilégios a que se havia renunciado há muito tempo (...).
A doença, a morte, a renúncia ao prazer e a limitação da própria vontade têm de
desaparecer para ela, e as leis da natureza, assim como as da sociedade,
deverão deter-se diante dela. Ela terá de ser de novo o centro e o nódulo da
criação, His Majesty the baby, como nós próprios imaginamos um dia ser”
(Introdução ao narcisismo). (...)
         A crença na onipotência das ideias é própria do modo de
pensar animista, mas também da neurose obsessiva, onde a mesma conduta mágica
se encontra no sintoma. Ela consiste na certeza de ser capaz de transformar ou
de influenciar o mundo exterior unicamente com ideias.
         Em Totem e tabu (1912-13), Freud sublinha que ficou
devendo essa expressão (“onipotência dos pensamentos”) a “um doente muito
inteligente que sofria de representações obsessivas”, no caso, o Homem dos
Ratos (1909). Que se trate de um sintoma e não de um sistema de pensamento é
atestado pelo fato de que a superstição do paciente se exercia a contragosto
seu, à revelia de suas próprias convicções. Entretanto, mais do que um sintoma
particular, trata-se, segundo Freud, de um traço geral próprio de toda neurose:
“As neuroses só atribuem eficácia ao que é intensamente pensado, afetivamente
representado, sem se preocupar em saber se o que é assim pensado e representado
se harmoniza com a realidade exterior”.
         Entretanto, a onipotência só se harmoniza com os pensamentos
que exprimem ou decorrem de um desejo recalcado. A intenção inconsciente é a
que cria ou modifica a realidade. Nesse particular, essa onipotência junta-se à
que é conhecida do bebê que supre pela alucinação a falta do objeto de
satisfação. No adulto, animista ou obsessivo, o desejo inconsciente de morte é
o que determina (...). 
         A noção de onipotência dos pensamentos não é dissociável
(...) do narcisismo. Em Sobre o narcisismo – uma introdução (1914),
Freud serve-se da noção de onipotência dos pensamentos e dos desejos próprios
das crianças, dos primitivos e dos esquizofrênicos, a fim de estabelecer a
noção de narcisismo (...). É porque o investimento libidinal originário incide
primeiro sobre o Eu e, em seguida, em parte, sobre os objetos, que o mundo
exterior pode ser assim concebido como possivelmente submetido à força dos
pensamentos. Subsequentemente, esse investimento narcísico será visto na
autoestima do adulto, levando-o a recalcar o que não está em conformidade com o
Ideal do Eu, mas, reciprocamente, “todo o remanescente do sentimento primitivo
de onipotência que a experiência conformou contribui para aumentar o sentimento
de autoestima”, o qual é a própria expressão da grandeza do Eu. 
         A onipotência dos pensamentos, na medida em que sua origem
deriva do narcisismo primário, é uma noção suscetível de numerosas extensões no
tocante à questão das primeiras modalidades da representação e da relação com a
realidade. Sándor Ferenczi estuda o desenvolvimento do sentido da realidade e
sublinha que a criança continua agarrada ao seu sentimento de onipotência mesmo
quando já sabe que deve levar em conta a realidade. Melanie Klein também sublinha
a crença na onipotência do pensamento numa criança de quatro anos. Donald W.
Winnicott mostra como os cuidados maternos adaptados à criança suscitam esse
sentimento de onipotência necessário para criar o objeto que, de fato, já
existe, mas só pode ser encontrado na ilusão de o criar.
         É difícil limitar a noção de onipotência dos pensamentos
porque, de uma prática mágica ou de um sintoma da neurose obsessiva, ela se estende,
de fato, à medida do ilimitado do narcisismo primário.
MIJOLLA, Alain de. Dicionário internacional de psicanálise. Vol. 2. Verbete Onipotência e Onipotência dos pensamentos. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. p. 1314, 1315 e 1316.

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