Módulo 36

 CONSTRUÇÃO - RECONSTRUÇÃO



Termo proposto por Freud para designar uma elaboração do analista mais extensiva e mais distante do material que a interpretação, e essencialmente destinada a reconstituir nos seus aspectos simultaneamente reais e fantasísticos de uma parte da história infantil do sujeito.

É difícil, e talvez pouco desejável, conservar o sentido relativamente restrito que Freud atribui ao termo “construção” em Construções na análise (Konstruktionen in der Analyse, 1937). Neste artigo, Freud pretende acima de tudo destacar a dificuldade existente em satisfazer o objetivo ideal do tratamento, isto é, em obter uma rememoração total com a eliminação da amnésia infantil: o analista é levado a elaborar verdadeiras “construções” e a propô-las ao paciente, o que, de resto, nos casos favoráveis (quando a construção é precisa, e comunicada no momento em que o paciente está preparado para acolhê-la), pode fazer ressurgir a recordação ou fragmentos de recordações recalcadas. Mesmo quando não produz esse efeito, a construção tem, segundo Freud, uma eficácia terapêutica: “Frequentemente não conseguimos levar o paciente a recordar-se do recalcado. Obtemos em lugar disso, se tivermos conduzido corretamente a análise, uma firme convicção da verdade da construção, convicção que tem o mesmo efeito terapêutico de uma lembrança reencontrada.”

A ideia particularmente interessante expressa pelo termo “construção” não pode ser reduzida ao uso quase técnico que Freud faz dele no seu artigo de 1937. Aliás, poderíamos encontrar na sua obra muitas indicações que atestam que o tema de uma construção, de uma organização do material, está presente desde o início, e sob diversos aspectos. Ao mesmo tempo que descobre o inconsciente, Freud descreve-o como uma organização que a cura deve permitir reconstituir. No discurso do paciente, com efeito, “...o conjunto da massa, espacialmente dispersa, do material patogênico é esticada através de uma fenda estreita e chega assim à consciência como dividida em fragmentos ou tiras. A tarefa do psicoterapeuta é recompor a partir daí a organização suposta. Para quem gosta de comparações, podemos evocar aqui um jogo de paciência”.

Em Uma criança é espancada (Ein Kind wird geschlagen, 1919), é toda a evolução de uma fantasia que Freud tenta reconstituir; certos momentos dessa evolução são como que essencialmente inacessíveis à recordação, mas há uma verdadeira lógica interna que torna necessário supor a sua existência e reconstituí-los.

De um modo mais geral, não se pode falar apenas de construção pelo analista ou no decorrer do tratamento: a concepção freudiana da fantasia supõe que esta seja também um modo de elaboração pelo sujeito, uma construção que encontra um apoio parcial na realidade, como bem ilustra a existência das “teorias” sexuais infantis. Finalmente, é todo o problema das estruturas inconscientes e da estruturação pelo tratamento que é levantado pelo termo “construção”.

LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2016. Verbete: Construção. p. 97 e 98.


CONSTRUÇÕES EM ANÁLISE : RESUMOS DO TEXTO

 UMA TAREFA ANÁLOGA A DO ARQUEÓLOGO

Freud mostra primeiramente que o trabalho do analista visa eliminar as repressões ocorridas na infância e que estão na origem dos sintomas e inibições neuróticos. Para chegar a esse objetivo terapêutico, é preciso que o paciente encontre lembranças de experiências afetivas precoces, e estas aparecem através das associações livres, dos sonhos e da repetição de relações afetivas na transferência. Se a tarefa do analisado consiste em rememorar o que viveu e reprimiu, a do psicanalista consiste em restituir, a partir dessas indicações, uma imagem tão fiel quanto possível dos anos esquecidos pelo paciente: "É necessário que, a partir das indicações que escaparam ao esquecimento, ele descubra ou, mais exatamente, construa o que foi esquecido".

Esse trabalho de construção ou, se preferirmos, de reconstrução, apresenta analogias com o do arqueólogo. Mas, diferentemente deste último, de um lado, “o objeto psíquico é incomparavelmente mais complicado que o objeto material do arqueólogo” e, de outro, “para o arqueólogo, a reconstrução o objetivo e a finalidade de seu esforço, é enquanto que para o analista a construção é apenas um trabalho preliminar”.

 QUE VALOR ATRIBUIR ÀS NOSSAS RECONSTRUÇÕES?

“O que garante o acerto de nossas reconstruções?”, prossegue Freud. Por exemplo, o que acontece se o analista se enganar? Suas reconstruções operam unicamente pela via da sugestão? Freud refuta essas objeções. Evidentemente, pode ocorrer que o analista apresente ao paciente uma construção inexata como sendo a verdade histórica provável: "mas um único erro desse gênero é inofensivo. O que costuma acontecer num caso desses é que o paciente não se sente tocado; ele não reage nem com um sim nem com um não". Ele refuta também a crítica de que, através das construções, o analista faz um uso abusivo da sugestão.

Depois de ter descartado essas objeções, Freud passa a examinar a reação do paciente quando o analista lhe comunica uma reconstrução. Ele reconhece que há uma parte de verdade quando se diz brincando que os psicanalistas têm sempre razão, não importa o que o paciente diga: se o paciente diz sim, é porque ele aceita a interpretação; se diz não, é porque resiste, e o analista tem sempre razão! Mas Freud esclarece que o analista não atribui um valor absoluto nem a um "sim" e nem a um "não", pois considera tanto uma como a outra resposta equívocas. Para o analista, o "sim" do analisado pode exprimir uma aceitação, mas pode ser também a expressão de uma resistência; quanto ao "não", ele é tão equívoco quanto o "sim" e pode ser tanto a manifestação de uma recusa quanto de uma resistência. Nessas condições, como saber? Existem meios indiretos de confirmação nos quais se pode confiar inteiramente, diz Freud, que são as confirmações indiretas obtidas pela via das associações: "Estamos diante de uma confirmação muito valiosa, mas expressada desta vez de uma forma positiva, quando o analisado responde por uma associação que contém alguma coisa de semelhante ou de análogo ao conteúdo da construção". Obtêm-se outras formas de confirmação indireta quando ocorre um ato falho ou uma reação terapêutica negativa e, neste caso, se a reconstrução terapêutica é correta, o paciente reage com um agravamento de seus sintomas. Em outras palavras, ao contrário do que pretendem seus detratores, Freud afirma que o analista leva muito em conta as reações do paciente e delas extrai referências valiosas: "Mas essas reações do paciente são quase sempre equívocas e não autorizam uma conclusão definitiva. Somente prosseguindo a análise poderemos decidir se nossas construções são corretas ou inutilizáveis. Atribuímos à construção isolada apenas o valor de uma suposição sujeita a exame, confirmação ou rejeição". 

O DELÍRIO, EQUIVALENTE A UMA CONSTRUÇÃO EM ANÁLISE

Por que caminhos nossa suposição se transforma em convicção no paciente? É a experiência cotidiana que demonstra isso a todo psicanalista. Porém, persiste uma questão importante: em geral, espera-se que uma construção proposta durante a análise leve ao despertar da lembrança correspondente no paciente, pelo menos na teoria. Contudo, na prática, é muito mais comum que o paciente não lembre do conteúdo significativo reprimido: isso não tem muita importância, diz Freud, pois se observa que, quando a paciente adquire a convicção da justeza de uma construção, isso produz o mesmo efeito do ponto de vista terapêutico que uma lembrança recuperada. Por quê? Isso ainda é um mistério. Esperemos para ver o que dirá a pesquisa futura.

Em certos casos, Freud observa que a comunicação de uma construção estimula não a lembrança no paciente, mas uma rica produção de lembranças vivas, muito próximas do conteúdo da lembrança significativa. Freud atribui esse fenômeno a uma resistência que chega a desviar a consciência da lembrança determinante e atraí-la para lembranças secundárias. Entretanto, a despeito de sua vivacidade, essas lembranças não são alucinações, esclarece ele. Mas há exceções que o levarão a conclusões inesperadas. Freud constatou, de fato, que às vezes se tratava de verdadeiras alucinações, e que isso não ocorria apenas com psicóticos, mas também em casos "que certamente não eram psicóticos". Essa observação crucial o leva a postular a ideia de que uma alucinação seria o produto de uma lembrança infantil esquecida: "Ainda não estudamos suficientemente esse caráter talvez geral da alucinação de ser o retorno de um acontecimento esquecido dos primeiros anos de vida, de alguma coisa que a criança viu ou ouviu em uma época em que ainda não sabia falar". Prosseguindo sua investigação, ele supõe que mesmo as formações delirantes, muitas vezes acompanhadas de alucinações, seriam igualmente o resultado "do impulso do inconsciente para o alto e do retorno do reprimido".

Finalmente, levando ainda mais longe suas deduções, Freud levanta a hipótese de que a própria loucura conteria "uma parcela de verdade histórica", e que a crença no delírio extrairia sua força de sua fonte infantil. Nessa eventualidade, o trabalho terapêutico visa reconhecer o núcleo de verdade contido no delírio livrando-o de suas deformações. Em outros termos, Freud chegou à conclusão de que os delírios dos doentes seriam equivalentes de construções que realizamos em análise e que constituem ao mesmo tempo tentativas de restituições, como ele já havia mostrado muitas vezes antes. Porém, ele acrescenta, "(...) nas condições da psicose, [os delírios] só podem levar a substituir a parte da realidade que se nega no presente por uma outra parte que se negara igualmente em um período remoto da infância". (...)

Para concluir, ele estabelece um paralelo eloquente entre a psicose e a histeria: "Do mesmo modo que o efeito de nossa construção se deve ao fato de que ela nos oferece uma parte que se perdeu da história vivida, o delírio deve sua força convincente à parte de verdade histórica que ele põe no lugar da realidade repelida. Dessa maneira, eu poderia aplicar ao delírio aquilo que outrora enunciei apenas para a histeria: o doente sofre de suas reminiscências".

QUINODOZ, Jean-Michel. Ler Freud: guia de leitura da obra de S. Freud. Porto Alegre: Artmed, 2007. p. 283 a 285.

 

         O artigo intitulado “Construções em análise” foi escrito em 1937 e publicado no final desse mesmo ano. Freud parece tê-lo redigido em resposta às críticas a respeito das interpretações formuladas pelos analistas aos seus pacientes.

         O artigo começa pela questão da avaliação do “sim” e do “não” do paciente em resposta à interpretação e pela justificação de uma técnica destinada a levar em conta o valor defensivo da negação. O objetivo da análise é suprimir os recalques a fim de permitir que o sujeito tenha reações em harmonia com um estado de maturidade psíquica e restaure uma imagem fiel dos anos esquecidos. O analista dispõe de indícios: recordações fragmentadas e deformadas surgem nos sonhos, ideias acidentais alusivas ao recalcado, enfim, sobretudo, a repetição de afetos na transferência pertinentes ao recalcado. (...)

         O analista em por tarefa, a partir dos indícios fornecidos pelo paciente, construir o que foi esquecido e comunicá-lo no momento oportuno. Comparado ao trabalho do arqueólogo, seu trabalho beneficia-se do fato de que não há destruição total de uma formação psíquica, mas a construção psicanalítica é mais complexa que a dedução arqueológica e somente preliminar no que se liga ao trabalho da análise.

         A construção diz respeito a todo um período esquecido da pré-história  do analisado, enquanto a interpretação versa sobre um elemento isolado do material. Mas como avaliar sua validade? Uma construção errada, se estiver isolada, não acarreta danos e o paciente não reage a ela. O risco de sugestão é insignificante. As reações do paciente a uma construção constituem indícios preciosos. O “sim” é equívoco e só tem valor quando confirmado secundariamente. O “não” só nos informa sobre o caráter incompleto da construção. Os modos indiretos de resposta tipo “nunca pensei nisso” assinalam o fato de que o analista tocou o inconsciente e são mais confiáveis, mas eles interessam mais a uma interpretação do que a uma construção. Valiosas são também as associações e os atos falhos que se produzem no mesmo sentido da construção. Durante uma reação terapêutica negativa, uma construção correta acarreta um agravamento do estado clínico.

         De toda forma, as construções só possuem um valor de suposição na expectativa de confirmação. Uma construção correta culminará na convicção do paciente, embora a recordação nem sempre tenha sido reencontrada, e terá o mesmo efeito terapêutico. Por vezes, após a comunicação de uma construção, surgem recordações excessivamente claras envolvendo elementos vizinhos da construção. A resistência é responsável por um deslocamento e essas recordações estão próximas da alucinação.

         Este fenômeno leva a considerar a alucinação, mesmo na psicose, como o retorno de um acontecimento esquecido nos primeiros anos, visto ou ouvido, deslocado e deformado pela resistência. Assim, o impulso para o alto na psicose implicaria ao mesmo tempo o desejo e o recalcado, ambos deformados como no sonho. O delírio seria uma construção e conteria um “núcleo de verdade histórica”, desmentida à época, extraindo sua força de convicção da sua origem infantil. O doente sofre, como o histérico, de reminiscências. No fundo, a força convincente da construção do analista é devida aos mesmos efeitos da convicção delirante: a reconstituição de um fragmento da história vivida. Num plano mais amplo, as crenças da humanidade são inacessíveis à crítica porque contêm uma parte de verdade histórica sobre os tempos originários esquecidos.

         Acolhido como um artigo técnico, este trabalho contribuiu ulteriormente para guindar o termo “construção” à categoria de um conceito psicanalítico. O acento incide sobre a repetição e sobre as relações entre a convicção e a verdade histórica. Os traços mnésicos suplantam o desejo e a fantasia, o que conduz a uma perspectiva fecunda a propósito do delírio psicótico. Uma dialética pode situar-se entre o passado redescoberto e a construção como criação ligada ao tratamento.

MIJOLLA, Alain (Org.) Dicionário Internacional da Psicanálise. Vol. A-L. Rio de Janeiro: Imago, 2005. Verbete “Construções em análise”. p. 396 e 397.



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