Módulo 12

  FREUD E O COMPLEXO DE ÉDIPO

 

 



 

         Uma das concepções (...) de Freud relativas à sexualidade (...) mais conhecidas e discutidas  (...) é (...) chamada "complexo de Édipo". Só agora podemos abordar esse problema porque, para bem entendê-lo, precisamos levar em conta que o complexo de Édipo é um fenômeno que pode ocorrer de três formas diferentes: na infância, na adolescência e na idade adulta. Em cada um desses períodos, o complexo de Édipo se apresenta de uma determinada forma. Em virtude das explicações que demos até aqui, o leitor já se encontra em condições de compreender que, por exemplo, durante a primeira infância o complexo de Édipo, embora tenha natureza sexual, não pode apresentar características genitais. Sendo desnecessário insistir sobre esse ponto, vejamos em que consiste o complexo de Édipo antes da fase genital.

         Para começar, o que quer dizer Édipo? Édipo é o personagem principal de uma antiga lenda grega, cuja história foi marcada por dois acontecimentos trágicos: Édipo casou-se com sua mãe e matou o seu próprio pai. Depois disso, corroído pelo remorso, furou os seus próprios olhos para se punir. Essa mesma história, diz Freud, repete-se na vida das crianças em relação aos seus pais e mães.

         De modo geral, segundo Freud, isso acontece quando o menino começa a manifestar uma exagerada preferência pela mãe. O menino passa a desejar que a mãe exista somente para ele, torna-se ciumento em relação ao pai e faz tudo para eliminá-lo de sua convivência com a mãe. Ao mesmo tempo, ou posteriormente, sente-se culpado de uma falta grave, experimenta remorsos em relação ao pai. A mesma coisa acontece com a menina: ela passa a desejar o pai e a repelir a mãe.[1] (...)

         Esta situação aparece claramente em certos diálogos muito comuns entre pais e filhos. Por exemplo:

         - Mamãe, quando eu for grande vou me casar com você.

         - E o papai? Que ele vai dizer?

         - Papai?... Ele estará morto

         Também nos desenhos feitos pelas crianças podemos encontrar a manifestação do complexo de Édipo. Num desses desenhos, um garoto traçou a sua figura e a da mãe dentro de uma igreja. Na frente dos dois ele desenhou um padre. No fundo, havia uma porta fechada e atrás da porta ele desenhou o pai. Com essas imagens é evidente que o garoto estava representando o fato de que ele se casa com a mãe e mata o pai, colocando-o atrás da porta, fora da igreja e incapaz de interferir.

         O fato de que as crianças sejam capazes de ter sentimentos amorosos em relação a seus pais não constitui motivo de espanto para nós, pois já sabemos que as crianças tem vida sexual e o seu sexo não se manifesta de forma genital. Freud afirma, além disso, que o complexo de Édipo não só é normal, como também que ele aparece e depois desaparece normalmente durante a infância. Com o passar do tempo, o complexo vai se dissolvendo e surge em seu lugar um perfeito equilíbrio nas relações entre pais e filhos (...) quando a evolução é normal. (...)

         Quando, entretanto, por algum motivo, determinados fatores impedem esse desenvolvimento normal, aí as consequências podem ser muito dolorosas. (...) Quando o complexo de Édipo não é eliminado normalmente durante a infância é de se esperar que ele continue a atuar e venha a se manifestar sob a forma de vários sintomas durante a vida adulta.

ESTEVAM, Carlos. Freud: vida & obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 81 a 85.



[1] Numa primeira fase muito primitiva do complexo de Édipo, também a menina deseja a mãe.


Complexo de Édipo: conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criança sente em relação aos pais. Sob a sua forma dita positiva, o complexo apresenta-se como na história de Édipo Rei: desejo da morte do rival que é a personagem do mesmo sexo e desejo sexual pela personagem do sexo oposto. Sob a sua forma negativa, apresenta-se de modo inverso: amor pelo progenitor do mesmo sexo e ódio ciumento ao progenitor do sexo oposto. Na realidade, essas duas formas encontram-se em graus diversos na chamada forma completa do complexo de Édipo.

Segundo Freud, o apogeu do complexo de Édipo é vivido entre os três e os cinco anos, durante a fase fálica; o seu declínio marca a entrada no período de latência. É revivido na puberdade e é superado com maior ou menor êxito num tipo especial de escolha de objeto.

O complexo de Édipo desempenha papel fundamental na estruturação da personalidade e na orientação do desejo humano.

Para os psicanalistas, ele é o principal eixo de referência da psicopatologia; para cada tipo patológico eles procuram determinar as formas particulares da sua posição e da sua solução.

A antropologia psicanalítica procura encontrara estrutura triangular do complexo de Édipo, afirmando a sua universalidade nas culturas mais diversas, e não apenas naquelas em que predomina a família conjugal.

A expressão “complexo de Édipo” só aparece nos escritos de Freud em 1910, mas em termos que provam que era já admitida na linguagem psicanalítica. A descoberta do complexo de Édipo, preparada há muito pela análise dos seus pacientes[1], concretiza-se para Freud no decorrer da sua autoanálise, que o leva a reconhecer em si o amor pela mãe e, em relação ao pai, um ciúme em conflito com a afeição que lhe dedica; a 15 de outubro de 1897, escreve a Fliess: "o poder de dominação de Édipo Rei torna-se inteligível. O mito grego salienta uma compulsão que todos reconhecem por terem percebido em si mesmos marcas da sua existência”.

Notemos que, já nessa primeira formulação, Freud faz espontaneamente referência a um mito além da história e das variações da vivência habitual. Afirma imediatamente a universalidade do Édipo, tese que ainda irá reforçar-se mais tarde: “A todo ser humano é imposta a tarefa de dominar o complexo de Édipo...” (...)

O complexo de Édipo foi descoberto sob a sua forma chamada simples e positiva (aliás, é assim que ele aparece no mito) mas, como Freud notou, trata-se apenas de uma “simplificação ou esquematização” relativamente à complexidade da experiência: “...o menino não tem apenas uma atitude ambivalente e uma escolha objetal terna dirigida à mãe; ao mesmo tempo ele também se comporta como uma menina mostrando uma atitude feminina terna em relação ao pai e a atitude correspondente de hostilidade ciumenta em relação à mãe”. Na realidade, entre a forma positiva e a forma negativa verifica-se toda uma série de casos mistos em que essas duas formas coexistem numa relação dialética, e em que o analista procura determinar as diferentes posições adotadas pelo sujeito para assumir e resolver o seu Édipo.

Nesta perspectiva, como sublinhou Ruth Mack Brunswick, o complexo de Édipo exprime a situação da criança no triângulo. A descrição do complexo de Édipo sob a forma completa permite a Freud explicar a ambivalência para com o pai (no menino) através do funcionamento das componentes heterossexuais e homossexuais, e não como simples resultado de uma situação de rivalidade.

As primeiras elaborações da teoria foram constituídas a partir do modelo do menino. Durante muito tempo Freud admitiu que, mutatis mutandis, o complexo podia ser transposto tal e qual para o caso feminino. Este postulado foi rebatido (...) pela importância conferida ao apego pré-edipiano à mãe. Essa fase pré-edipiana é particularmente visível na menina, na medida em que o complexo de Édipo significará para ela uma mudança de objeto de amor, da mãe para o pai. (...) Os psicanalistas trabalharam no sentido de evidenciar a especificidade do Édipo feminino.

No início, a idade em que se situa o complexo de Édipo permaneceu relativamente indeterminada para Freud. Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie, 1905), por exemplo, só na puberdade a escolha objetal se efetua plenamente, e a sexualidade infantil conserva-se essencialmente autoerótica. Nesta perspectiva, o complexo de Édipo, embora esboçado na infância, só surgiria em plena luz no momento da puberdade para ser rapidamente ultrapassado. Esta incerteza encontra-se ainda em 1916-17 (Conferências introdutórias sobre psicanálise, (Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse), apesar de Freud reconhecer nessa época a existência de uma escolha objetal infantil muito próxima da escolha adulta.

Na sua perspectiva final, uma vez afirmada a existência de uma organização genital infantil, ou fase fálica, Freud relaciona o Édipo a essa fase, ou seja, esquematicamente, ao período que vai dos três aos cinco anos.

Vê-se que Freud sempre admitiu a existência na vida do indivíduo de um período anterior ao Édipo. Quando se diferencia, e até mesmo se contrapõe o pré-edipiano ao Édipo, pretende-se ir além do reconhecimento deste simples fato. Enfatiza-se a existência e os efeitos de uma relação complexa, de tipo dual, entre a mãe e o filho, e procura-se descobrir, nas estruturas psicopatológicas mais diversas, as fixações nessa relação. Nesta perspectiva, poderemos ainda considerar absolutamente válida a célebre fórmula que faz do Édipo o “complexo nuclear das neuroses”?

Numerosos autores sustentam que existe uma relação puramente dual que precede a estrutura triangular do Édipo, e que os conflitos que se referem a esse período podem ser analisados sem fazer intervir a rivalidade com um terceiro.

A escola kleiniana, que, como se sabe, atribui importância primordial aos estágios mais precoces da infância, não designa nenhuma fase como pré-edipiana propriamente dita. Faz remontar o complexo de Édipo à chamada posição depressiva, logo que intervém a relação com pessoas totais.

Quanto à questão de uma estrutura pré-edipiana, a posição de Freud conservar-se-á moderada; declara ter demorado em reconhecer todo o alcance da ligação primitiva com a mãe e ter sido surpreendido pelo que as psicanalistas, sobretudo, descobriam da fase pré-edipiana na menina. Mas pensa igualmente que não é necessário, para explicar estes fatos, invocar um outro eixo de referência que não seja o Édipo (...).

O complexo de Édipo tem para Freud, (...) caráter fundamental, (...) verificado particularmente na hipótese, aventada em Totem e tabu (Totem und Tabu, 1912-3), do assassínio do pai primitivo considerado como momento original da humanidade. Discutível do ponto de vista histórico, essa hipótese deve ser entendida principalmente como um mito que traduz a exigência imposta a todo ser humano de ser um “rebento de Édipo”. O complexo de Édipo não é redutível a uma situação real, à influência efetivamente exercida sobre a criança pelo casal parental. A sua eficácia vem do fato de fazer intervir uma instância interditória (proibição do incesto) que barra o acesso à satisfação naturalmente procurada e que liga inseparavelmente o desejo à lei (ponto que J. Lacan acentuou). Isto reduz o alcance da objeção introduzida por Malinovski e retomada pela chamada escola culturalista, segundo a qual, em determinadas civilizações em que o pai é desprovido de toda função repressiva, não existiria complexo de Édipo, mas um complexo nuclear característico de tal estrutura social. Na realidade, nessas civilizações, os psicanalistas procuram descobrir em que personagens reais, e mesmo em que instituição, se encarna a instância interditória, em que modalidades sociais se especifica a estrutura triangular constituída pela criança, o seu objeto natural e o portador da lei.

Essa concepção estrutural do Édipo vai ao encontro da tese do autor de Estruturas elementares do parentesco (Lévi-Strauss), que faz da interdição do incesto a lei universal e mínima para que uma “cultura” se diferencie da “natureza”.

Outra noção freudiana vem apoiar uma interpretação segundo a qual o Édipo transcende a vivência individual em que se encarna: é a de fantasias originárias, “filogeneticamente transmitidas”, esquemas que estruturam a vida imaginária do sujeito e que são outras tantas variantes da situação triangular (sedução, cena originária, castração etc.).

Indiquemos para finalizar que, fazendo incidir o nosso interesse sobre a própria relação triangular, somos levados a atribuir um papel essencial, na constituição de um determinado complexo de Édipo, não apenas ao sujeito e às suas pulsões, mas também aos outros núcleos da relação (desejo inconsciente do pai e da mãe, sedução, relações entre os pais). O que irá ser interiorizado e sobreviver na estruturação da personalidade são, pelo menos tanto como esta ou aquela imagem parental, os diferentes tipos de relações que existem entre os diferentes vértices do triângulo.

LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. Verbete: Complexo de Édipo. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 77 a 81.


O complexo de Édipo é uma noção tão central em psicanálise quanto a universalidade da interdição do incesto a que está ligado. Sua invenção deve se a Sigmund Freud, que pensou, através do vocábulo Ödipuskomplex, num complexo ligado ao personagem de Édipo, criado por Sófocles.

O complexo de Édipo é a representação inconsciente pela qual se exprime o desejo sexual ou amoroso da criança pelo genitor do sexo oposto e sua hostilidade para com o genitor do mesmo sexo. Essa representação pode inverter-se e exprimir o amor pelo genitor do mesmo sexo e o ódio pelo do sexo oposto. Chama-se Édipo à primeira representação, Édipo invertido à segunda, e Édipo completo à mescla das duas. O complexo de Édipo aparece entre os 3 e os 5 anos. Seu declínio marca a entrada num período chamado de latência, e sua resolução após a puberdade concretiza-se num novo tipo de escolha de objeto.

Na história da psicanálise, a palavra Édipo acabou substituindo a expressão complexo de Édipo. Nesse sentido, o Édipo designa, ao mesmo tempo, o complexo definido por Freud e o mito fundador sobre o qual repousa a doutrina psicanalítica como elucidação das relações do ser humano com suas origens e sua genealogia familiar e histórica.

Mais do que qualquer outro no Ocidente, o mito de Édipo confundiu-se, de início, com a tragédia de Sófocles, que transforma a vida do rei de Tebas num paradigma do destino humano (o fatum), e depois, com o complexo inventado por Freud, que relaciona o destino com uma determinação psíquica vinda do inconsciente.

Na mitologia grega, Édipo é filho de Laio e Jocasta. Para evitar que se realize o oráculo de Apolo, que lhe previra que ele seria morto pelo filho, Laio entrega seu menino recém-nascido a um criado, para que ele o abandone no monte Citerão, depois de lhe transpassar os pés com um prego. Em vez de obedecer, o criado confia o menino a um pastor de ovelhas, que em seguida o entrega a Políbio, rei de Corinto, e à mulher deste, Mérope, que não têm descendentes. Eles lhe dão o nome de Édipo (oidipos: pés inchados) e o criam como seu filho.

Édipo cresce e ouve rumores que dizem que ele não seria filho de seus pais. Por isso, dirige se a Delfos para consultar o oráculo, que de pronto lhe responde que ele matará o pai e desposará a mãe. Para escapar a essa previsão, Édipo viaja. Na estrada para Tebas, cruza por acaso com Laio, a quem não conhece. Os dois homens brigam e Édipo o mata. Nessa época, Tebas vinha sendo aterrorizada pela Esfinge, monstro feminino alado e dotado de garras, que mata todos aqueles que não decifram o enigma que ela propõe sobre a essência do homem: “Quem é aquele que anda sobre quatro pés, depois, sobre dois e, depois, sobre três?” Édipo dá a resposta certa e a Esfinge se mata. Como recompensa, Creonte, o regente de Tebas, dá-lhe por esposa sua irmã, Jocasta, com quem ele tem dois filhos, Eteoclés e Polinices, e duas filhas, Antígona e Ismene.

Os anos passam. Um dia, a peste e a fome se abatem sobre Tebas. O oráculo declara que os flagelos desaparecerão quando o assassino de Laio tiver sido expulso da cidade. Édipo pede então a todos que se manifestem. Tirésias, o adivinho cego, conhece a verdade, mas se recusa a falar. Por fim, Édipo é informado de seu destino por um mensageiro de Corinto, que lhe anuncia a morte de Políbio e lhe conta como ele próprio, no passado, havia recolhido um menino das mãos do pastor para entregá-lo ao rei. Ao saber da verdade, Jocasta se enforca. Édipo vaza os próprios olhos e em seguida se exila em Colono com Antígona, enquanto Creonte retoma o poder. Em Édipo rei, Sófocles adapta apenas uma parte do mito (a que se relaciona com as origens de Tebas) e a faz verter-se no molde da tragédia.

Embora Sigmund Freud nunca tenha dedicado nenhum artigo ao complexo de Édipo, Édipo rei (e o complexo relacionado com ele) acha-se presente em toda a sua obra, desde 1897 até 1938. Em sua pena, aliás, a figura de Édipo é quase sempre associada à de Hamlet. Vamos encontrá-la igualmente no trabalho de Otto Rank sobre o nascimento do herói (o romance familiar).

Em 1967, no prefácio a um livro de Ernest Jones, Hamlet e Édipo, Jean Starobinski mostrou que, se Édipo rei era para Freud a tragédia da revelação, Hamlet era o drama do recalcamento: “Herói antigo, Édipo simboliza o universal do inconsciente, disfarçado de destino; herói moderno, Hamlet remete ao nascimento de uma subjetividade culpada, contemporânea de uma época em que se desfaz a imagem tradicional do Cosmo.”

Freud tinha perfeita consciência dessa diferença e, em 1927, juntou à tragédia antiga e ao drama shakespeariano uma terceira vertente: Os irmãos Karamazov. Segundo ele, o romance de Fiodor Dostoievski (1821-1881) era o mais “freudiano” dos três. Em vez de mostrar um inconsciente disfarçado de destino (Édipo) ou uma inibição culpada, ele põe em cena, sem máscara alguma, a própria pulsão assassina, isto é, o caráter universal do desejo parricida: cada um dos três irmãos, com efeito, é habitado pelo desejo de matar realmente o pai.

Foi numa carta de 15 de outubro de 1897, dirigida a Wilhelm Fliess, que Freud interpretou pela primeira vez a tragédia de Sófocles, fazendo dela o ponto nodal de um desejo incestuoso infantil: “Encontrei em mim, como em toda parte, sentimentos amorosos em relação à minha mãe e de ciúme a respeito de meu pai, sentimentos estes que, penso eu, são comuns a todas as crianças pequenas, mesmo quando seu aparecimento não é tão precoce quanto naquelas que ficam histéricas (de maneira análoga à ‘romantização’ da origem nos paranoicos - heróis fundadores de religiões). Se realmente é assim, é compreensível, a despeito de todas as objeções racionais que se opõem à hipótese de uma fatalidade inexorável, o efeito cativante de Édipo rei (...). A lenda grega apoderou-se de uma compulsão que todos reconhecem, porque todos a sentiram. Todo espectador, um dia, foi em germe, na imaginação, um Édipo, e se assombra diante da realização de seu sonho, transposto para a realidade.” No Esboço de psicanálise, seu último livro, Freud reivindicou a importância da lenda que havia descoberto quarenta anos antes: “Permito-me pensar que, se a psicanálise não tivesse em seu ativo senão a simples descoberta do complexo de Édipo recalcado, isso bastaria para situá-la entre as preciosas novas aquisições do gênero humano.”

Portanto, o mito de Édipo surge na pena de Freud no exato momento do nascimento da psicanálise (consecutivo ao abandono da teoria da sedução), para depois servir de trama a todos os seus textos e a todos os debates da antropologia moderna em torno de Totem e tabu e da sexualidade feminina, desde Bronislaw Malinowski até Geza Roheim, passando por Karen Horney e Helene Deutsch. Às vésperas da morte, Freud continuava a lhe atribuir um lugar soberano, a ponto de, mais tarde, a psicanálise ser qualificada de edipiana, tanto por seus partidários quanto por seus opositores.

Em psicanálise, a questão do Édipo pode ser abordada de duas maneiras diferentes, conforme nos coloquemos no ponto de vista do complexo (e portanto, da clínica) ou no ponto de vista da interpretação do mito. A definição do complexo nuclear e de suas sucessivas revisões, por parte do kleinismo, da Self Psychology e do lacanismo, é relativamente simples, ao passo que a discussão interpretativa é de grande complexidade. Com efeito, centenas de livros foram escritos sobre o mito, a tragédia e sua atualização por Freud.

Segundo a tese canônica, o complexo de Édipo está ligado à fase (estádio) fálica da sexualidade infantil. Aparece quando o menino (por volta dos 2 ou 3 anos) começa a sentir sensações voluptuosas. Apaixonado pela mãe, ele quer possuí-la, colocando-se como rival do pai, outrora admirado. Mas adota igualmente a posição inversa: ternura em relação ao pai e hostilidade para com a mãe. Há então, ao mesmo tempo que o Édipo, um “Édipo invertido”. E essas duas posições - positiva e negativa - perante cada genitor são complementares e constituem o Édipo completo, exposto por Freud em O eu e o isso.

O complexo de Édipo desaparece com o complexo de castração: o menino reconhece então na figura paterna o obstáculo à realização de seus desejos. Abandona o investimento feito na mãe e evolui para uma identificação com o pai, a qual lhe permite, mais tarde, uma outra escolha de objeto e novas identificações: ele se desliga da mãe (desaparecimento do complexo de Édipo) para escolher um objeto do mesmo sexo.

Ao Édipo, Freud acrescenta a tese da libido única, de essência masculina, que cria uma dissimetria entre as organizações edipianas feminina e masculina. Se o menino sai do Édipo através da angústia de castração, a menina ingressa nele pela descoberta da castração e pela inveja do pênis. Nela, o complexo se manifesta pelo desejo de ter um filho do pai. Ao contrário do menino, a menina desliga-se de um objeto do mesmo sexo (a mãe) por outro de sexo diferente (o pai). Não há, portanto, um paralelismo exato entre o Édipo masculino e seu homólogo feminino. Não obstante, subsiste uma simetria, uma vez que nos dois sexos o apego à mãe é o elemento comum e primeiro.

A partir da reformulação feita por Karl Abraham (em 1924) da teoria dos estádios, Melanie Klein revisou inteiramente a doutrina edipiana da escola vienense, interessando-se pelas chamadas relações pré-edipianas, isto é, anteriores à entrada no complexo. Segundo a perspectiva kleiniana, não existe uma libido única, mas um dualismo sexual, e a famosa relação triangular que caracteriza o Édipo freudiano é abandonada em favor de uma estrutura anterior e muito mais determinante: a do vínculo que une a mãe ao filho. Em outras palavras, Klein contesta em Freud a ideia de um corte entre um antes não edipiano (a mãe) e um depois edipiano (o pai). Ela substitui a organização estrutural por uma continuidade sempre atuante: o mundo angustiante da simbiose, das imagens introjetadas e das relações de objeto. Em síntese, um mundo arcaico e sem limites, no qual a lei (paterna) não intervém.

Se o kleinismo desloca a questão do Édipo, remontando até estádios anteriores, os clínicos da psicologia do self abandonam parcialmente a problemática edipiana para se debruçar sobre o narcisismo e os distúrbios que ele gera. A partir de meados da década de 1960, numerosos comentadores assinalaram que, entre os freudianos norte-americanos, o mito de Narciso estava em vias de substituir a antiga mitologia edipiana. Esse desdobramento se confirmaria com os trabalhos de Heinz Kohut.

Em 1953, Jacques Lacan tornou a centrar a questão edipiana na triangulação, mas levando em conta as contribuições da escola kleiniana. No âmbito de sua teoria do significante e de sua tópica (imaginário, real e simbólico), ele definiu o complexo de Édipo como uma função simbólica: o pai intervém sob a forma da lei, para privar a criança da fusão com a mãe. Segundo essa perspectiva, o mito edipiano atribui ao pai, por conseguinte, a exigência da castração: “A lei primordial”, escreveu Lacan em 1953, “é, pois, aquela que, regulando a aliança, superpõe o reino da cultura ao reino da natureza, entregue à lei do acasalamento. Essa lei, portanto, faz-se conhecer suficientemente como idêntica a uma ordem de linguagem.”

A interpretação freudiana da tragédia de Sófocles, por outro lado, suscitou inúmeras discussões em meio a todos os especialistas da mitologia grega, em especial na França. Num artigo de 1967, intitulado “‘Édipo’ sem complexo”, Jean-Pierre Vernant, por ocasião de uma controvérsia com Didier Anzieu, insurgiu-se contra as interpretações selvagens e psicologizantes que identificava, na época, nos textos psicanalíticos dedicados ao Édipo. Essas interpretações, com efeito, tendiam a transformar o personagem de Sófocles num neurótico moderno, habitado por um complexo freudiano. Se Freud se apoiara em Sófocles para elaborar seu complexo, os psicanalistas, sublinhou Vernant, tinham acabado projetando suas fantasias edipianas no mito e na tragédia.

Opondo-se a essa psicologização, Vernant propôs uma nova interpretação do Édipo, mais conforme às representações da mitologia grega: “Seu destino excepcional”, escreveu ele em 1980, “e a façanha que lhe concedeu a vitória sobre a Esfinge colocaram-no acima dos outros cidadãos, além da condição humana - semelhante ou igual a um deus - e, através do parricídio e do incesto, que consagraram seu acesso ao poder, também o rejeitaram para aquém da vida civilizada, excluíram-no da comunidade dos homens, reduzido a nada, igual ao nada. Os dois crimes que ele cometeu, sem saber nem querer, tornaram-no - a ele, o adulto firme sobre seus dois pés - semelhante a seu pai, ajudado por uma bengala, velho de três pés cujo lugar ele assumiu ao lado de Jocasta, e também semelhante a seus filhos pequenos, ainda andando de quatro, e dos quais ele tanto era irmão quanto pai. Seu erro inexpiável foi misturar em si três gerações etárias, que deviam seguir-se sem jamais se confundir nem se superpor no seio de uma linhagem familiar.”

Esse retrato do verdadeiro Édipo grego não está longe, na realidade, do Édipo freudiano, uma vez que, em Freud, o complexo liga-se desde o começo à dupla questão do desejo incestuoso e de sua proibição necessária, a fim de que nunca se transgrida o encadeamento das gerações.

Em 1972, num belo livro de inspiração reichiana, o Anti-Édipo, Gilles Deleuze (1925 1995) e Félix Guattari criticaram o edipianismo freudiano, que, a seu ver, reduzia a libido plural da loucura (e da esquizofrenia) a um fechamento familiarista, de tipo burguês e patriarcal.

ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Verbete: Complexo de Édipo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 166 a 169.



[1] Por exemplo, a importância da questão da sedução no início da clínica de Freud. 


TEXTOS IMPORTANTES SOBRE O COMPLEXO DE ÉDIPO

 

“É a coragem de ir até o fim dos problemas que faz o filósofo. Ele deve ser como o Édipo de Sófocles, que, procurando elucidar o seu terrível destino, obstina-se infatigavelmente em sua investigação, mesmo quando pressagia que a resposta só lhe reserva horror e espanto. Mas a maior parte entre nós contém no coração uma Jocasta suplicando a Édipo, pelo amor dos deuses, não ir mais adiante em suas indagações; e nós cedemos a ela, sendo por isso que a filosofia está onde está.”

SCHOPENHAUER, Arthur. Apud FERENCZI, Sandor. A figuração simbólica dos princípios de prazer e de realidade no mito de Édipo. In:  Obras Completas, Vol. 1. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 234.

 

         “Schopenhauer mostrou ter inconscientemente percebido que a mais poderosa das resistências internas era a constituída pela fixação infantil das tendências hostis em relação ao pai e incestuosas em relação à mãe. Essas tendências, que se tornaram muito penosas em consequência da civilização, da raça e do indivíduo, e foram, portanto, recalcadas, arrastam com elas para o recalcamento um grande número de ideias e de tendências vinculadas aos mesmos complexos, excluindo-as da livre circulação das ideias ou, pelo menos, impedindo que elas sejam tratadas com objetividade científica. O ‘complexo de Édipo’ não é somente o complexo nuclear das neuroses (Freud); a atitude adotada a seu propósito determina os principais traços de caráter do indivíduo normal, assim como, em parte, da faculdade de objetividade do cientista”

FERENCZI, Sandor. A figuração simbólica dos princípios de prazer e de realidade no mito de Édipo. In:  Obras Completas, Vol. 1. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 234.

 

         “Deveremos afirmar que os dois heróis principais da tragédia de Sófocles simbolizam igualmente os dois princípios da atividade psíquica. Édipo, ‘que procurando elucidar seu terrível destino, obstina-se infatigavelmente em sua investigação, mesmo quando pressagia que a resposta só lhe reserva horror e espanto’[1], representa o princípio da realidade do espírito humano que impede o recalcamento das ideias incidentes, por mais penosas que sejam, exigindo que todas sejam submetidas ao teste da realidade. Jocasta, ‘suplicando a Édipo, pelo amor dos deuses, não ir mais adiante em suas indagações’, é a personificação do princípio de prazer que, sem se preocupar com a realidade objetiva, não tem outro propósito senão poupar ao ego todo sentimento penoso, propiciando-lhe o máximo de prazer; e, para conseguir isso, expulsa da consciência, tanto quanto possível, todas as representações e ideias suscetíveis de produzir desprazer”

FERENCZI, Sandor. A figuração simbólica dos princípios de prazer e de realidade no mito de Édipo. In:  Obras Completas, Vol. 1. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 236.

 

         "A obra do dramaturgo atenienese (Sófocles) mostra a maneira como o feito de Édipo, realizado num passado já remoto, é gradualmente trazido à luz por uma investigação engenhosamente prolongada e restituído à vida por meio de sempre novas séries de provas. Nesse aspecto, tem certa semelhança com o progresso de uma psicanálise. (...) O expectador reage (...) como se, por autoanálise, tivesse reconhecido o complexo de Édipo em si próprio e desvendado a vontade dos deuses e do oráculo como disfarces enaltecidos de seu próprio inconsciente."

FREUD, Sigmund. Conferências introdutórias sobre psicanálise. In: Obras completas, Volume XVI, Conferência XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.  p. 334, 335.

            

“A experiência central dos anos de infância, o maior problema do início da vida e a fonte mais intensa de inadequação posterior, é tão completamente esquecida que sua reconstrução, durante o trabalho de análise, se defronta nos adultos com a descrença mais decidida. Na verdade, a aversão a ela é tão grande que as pessoas tentam silenciar qualquer menção ao assunto proscrito e os mais óbvios lembretes dele são menosprezados por uma estranha cegueira intelectual. Pode-se ouvir objetar, por exemplo, que a lenda do rei Édipo não tem de fato nenhuma conexão com a construção feita pela análise: os casos são inteiramente diferentes, visto Édipo não saber que o homem a quem matara era seu pai e a mulher com que casara era sua mãe. O que não se leva em conta aí é que uma deformação desse tipo é inevitável se se faz uma tentativa de manejo poético do material, e que não há introdução de material estranho, mas apenas um emprego hábil dos fatores apresentados pelo tema. A ignorância de Édipo constitui representação legítima do estado inconsciente em que, para os adultos, toda a experiência caiu, e a força coercitiva do oráculo, que torna ou deveria tornar inocente o herói, é um reconhecimento da inevitabilidade do destino que condenou todo filho a passar pelo complexo de Édipo. Foi ainda ressaltado, por parte das fileiras psicanalíticas, quão facilmente o enigma de outro herói dramático, o procrastinador de Shakespeare, Hamlet, pode ser solucionado tendo como ponto de referência o complexo de Édipo, desde que o príncipe fracassou na tarefa de punir outrem pelo que coincidia com a substância de seu próprio desejo edipiano - em consequência do que a falta geral de compreensão por parte do mundo literário demonstrou quão pronto está o grosso da humanidade a aferrar-se às suas repressões infantis. Entretanto, mais de um século antes do surgimento da Psicanálise, o filósofo francês Diderot deu testemunho da importância do complexo de Édipo, ao expressar a diferença entre os mundos primitivo e civilizado nesta frase: (...) ‘Se o pequeno selvagem fosse abandonado a si mesmo, se conservasse toda a sua imbecilidade e reunisse ao pouco de razão da criança de berço à violência das paixões do homem de trinta anos, estrangularia o pai e dormiria com a mãe’. Aventuro-me a dizer que, se a Psicanálise não pudesse gabar-se de mais nenhuma realização além da descoberta do complexo de Édipo reprimido, só isso já lhe daria direito a ser incluída entre as preciosas nova aquisições da humanidade.”

FREUD, Sigmund. Esboço de psicanálise. In: Obras completas, Volume  XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.  p. 203 e 204.

 

“Há uma indicação inconfundível no texto da própria tragédia de Sófocles, de que a lenda de Édipo brotou de algum material onírico primitivo que tinha como conteúdo a aflitiva perturbação da relação de uma criança com seus pais, em virtude dos primeiros sobressaltos da sexualidade. Num ponto em que Édipo, embora não tenha sido ainda esclarecido, começa a se sentir perturbado por sua recordação do oráculo, Jocasta o consola fazendo referência a um sonho que muitas pessoas têm, ainda que, na opinião dela, não tenha nenhuma sentido:

Muito homem desde outrora em sonhos tem deitado

Com aquela que o gerou. Menos se aborrece

Quem com tais presságios sua alma não perturba.

Hoje, tal como outrora, muitos homens sonham ter relações sexuais com suas mães, e mencionam esse fato com indignação e assombro. Essa é claramente a chave da tragédia e o complemento do sonho de o pai do sonhador estar morto. A história de Édipo é a reação da imaginação a esses dois sonhos típicos. E, assim como esses sonhos, quando produzidos por adultos, são acompanhados por sentimentos de repulsa, também a lenda precisa incluir horror e autopunição. Sua modificação adicional se origina, mais uma vez, numa mal concebida elaboração secundária do material, que procurou explorá-la para fins teológicos.”

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. In: Obras Completas, Volume IV. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 290 e 291.

 

    “Se considerarmos o processo genital sob esse ângulo que eu qualificaria de ‘bioanalítico’, estaríamos em condições de compreender, enfim, por que o desejo edipiano, o desejo de coito com a mãe, é reencontrado com essa regularidade quase enfadonha por sua monotonia como tendência nuclear na análise dos homens neuróticos. O desejo edipiano é a expressão psíquica de uma tendência biológica muito mais geral que impele os seres vivos ao retorno ao estado de repouso de que desfrutavam antes do nascimento.”

FERENCZI, Sandor. Thalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade. In: Obras completas. Volume III. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 292 e 293.

 

         “A primeira manifestação evidente do impulso sexual será o complexo de Édipo, cuja relação com o desejo de retorno ao útero materno foi interpretada por Jung como uma fantasia anagógica de segundo nascimento, enquanto Ferenczi o recolocou em seu devido lugar; ou seja, como sendo o fundamento biológico do desejo em questão. De fato, a questão obscura e fatal da origem do homem está subjacente à lenda de Édipo, que pretende resolvê-la não de forma abstrata, mas pelo retorno real ao corpo materno. Isso se realiza de forma simbólica, mas também completa pois, na verdade, sua cegueira representa o retorno à escuridão do interior do corpo materno e, no final, seu desaparecimento em direção ao mundo subterrâneo através da fenda de um rochedo será expressão do mesmo desejo em relação à mãe terra.”

RANK, Otto. O trauma do nascimento e seu significado para a psicanálise. São Paulo: Cienbook, 2016. p. 56 e 57.

 

“Num outro texto (O trauma do nascimento), Rank fez remontar o vínculo com a mãe à pré-história embrionária, assim indicando a fundamentação biológica do complexo de Édipo.”

FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In:  Obras completas, volume VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 214.



[1] Ferenczi está citando Schopenhauer.

[2] Em outras passagens, Freud vai falar que o sentimento de impotência e derrota da criança na situação edípica vai provocar uma “ferida narcísica” e deixar uma “cicatriz narcísica” para o resto da vida, origem do “sentimento de inferioridade” típico dos neuróticos.



ÉDIPO E NARCISO

 

"Enquanto o poeta vai trazendo à luz a culpa de Édipo naquela investigação, ele nos força a conhecer nosso próprio íntimo, no qual aqueles impulsos, embora reprimidos, ainda existem. A contraposição com a qual o coro nos deixa,

Vede bem, habitantes de Tebas, meus concidadãos!

Este é Édipo, decifrador dos enigmas famosos;

ele foi um senhor poderoso e por certo o invejastes

em seus dias passados de prosperidade invulgar.

Em que abismos de imensa desdita ele agora caiu!,

 

é uma advertência que atinge a nós próprios e ao nosso orgulho, a nós que desde os anos de infância nos tornamos tão sábios e poderosos, conforme nossa apreciação. Tal como Édipo, vivemos na ignorância de desejos que ofendem a moral, impostos a nós pela natureza, e depois de sua revelação por certo todos gostaríamos de desviar o olhar das cenas de nossa infância."

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. L&PM Editores, 2016. p. 285 e 286.

 

O florescimento precoce da vida sexual infantil está condenado à extinção porque seus desejos são incompatíveis com a realidade e com a etapa inadequada de desenvolvimento a que a criança chegou. Esse florescimento chega ao fim nas mais aflitivas circunstâncias e com o acompanhamento dos mais penosos sentimentos. A perda do amor e o fracasso deixam atrás de si um dano permanente à autoconsideração, sob a forma de uma cicatriz narcisista, o que, em minha opinião, bem como na de Marcinowski (1918), contribui mais do que qualquer outra coisa para o ‘sentimento de inferioridade’, tão comum aos neuróticos. As explorações sexuais infantis, às quais seu desenvolvimento físico impõe limites, não conduzem a nenhuma conclusão satisfatória; daí as queixas posteriores, tais como ‘Não consigo realizar nada; não tenho sucesso em nada’. O laço da afeição, que via de regra liga a criança ao genitor do sexo oposto, sucumbe ao desapontamento, a uma vã expectativa de satisfação, ou ao ciúme pelo nascimento de um novo bebê, prova inequívoca da infidelidade do objetivo da afeição da criança. Sua própria tentativa de fazer um bebê, efetuada com trágica seriedade, fracassa vergonhosamente. A menor quantidade de afeição que recebe, as exigências crescentes da educação, palavras duras e um castigo ocasional mostram-lhe por fim toda a extensão do desdém que lhe concederam. Estes são alguns exemplos típicos e constantemente recorrentes das maneiras pelas quais o amor característico da idade infantil é levado a um término.

FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. In: Obras completas Volume XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 31 e 32.

 

         O ciúme (...) se compõe de pesar, do sofrimento causado pelo pensamento de perder o objeto amado, e da ferida narcísica (...). O ciúme não é, em absoluto, completamente racional, isto é, derivado da situação real, proporcionado às circunstâncias reais e sob o controle completo do ego consciente; isso por achar-se profundamente enraizado no inconsciente, ser uma continuação das primeiras manifestações da vida emocional da criança e originar-se do complexo de Édipo ou de irmão-e-irmã do primeiro período sexual.

FREUD, Sigmund. Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e no homossexualismo. In: Obras completas, Volume XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 237.

 

         Complexo de Édipo: esta expressão designa o conjunto de desejos amorosos e hostis que a criança experimenta com relação aos seus pais. Freud situou-o por volta dos três anos e M. Klein postulou o seu surgimento aproximadamente aos seis ou oito meses de idade. Porém, com essa concepção ela desfigurou bastante a conceituação original de Freud acerca de Édipo. Para Freud, o complexo de Édipo comporta duas formas: uma positiva, que genericamente consiste num desejo sexual pelo genitor do sexo oposto, bem como de um desejo de morte pelo do mesmo sexo, e uma forma negativa, na qual há um desejo amoroso pelo genitor do mesmo sexo e um ciúme ou desejo de desaparecimento do outro. Na clínica, o mais frequente é que ambas formas coexistam nos indivíduos, embora uma delas predomine nitidamente.

O complexo edípico sempre foi considerado como o núcleo central na estruturação de toda e qualquer neurose, sendo que, na atualidade, essa concepção tem sido contestada por alguns autores que acreditam que nos pacientes bastante regressivos não é a má resolução propriamente edípica a responsável maior pela neurose, mas, sim, que ela é apenas o reflexo das complicações das fases anteriores, particularmente das fixações narcisistas. (...)

Na atualidade, mudou o perfil do paciente que procura tratamento psicanalítico. Já não se trata tanto de “puros” histéricos, obsessivos ou fóbicos que constituíam a clínica dos psicanalistas pioneiros; pelo contrário, a demanda nos dias de hoje constitui-se por pessoas que nos procuram por problemas relativos aos transtornos de autoestima, a falta de um definido senso de identidade, o desconforto de ser um falso self, assim como também a psicanálise tem aberto as suas portas para um contingente de pacientes bastante regressivos, como costumam ser os psicóticos, borderline, caracteropatas, somatizadores e, dentre outros mais, também aos portadores de alguma forma de perversão.

Ademais, é consensual entre os psicanalistas hodiernos o fato de que uma análise dos pacientes considerados unicamente como “neuróticos” deve, necessariamente, transitar pela “parte psicótica da personalidade”, composta por núcleos bastante regressivos, e da qual todo e qualquer indivíduo é portador, em algum grau e modalidade. Em caso contrário, se esses núcleos regressivos e primitivos não tiverem sido suficientemente analisados, o mínimo que se pode afirmar é que o referido processo analítico foi incompleto.

Tudo isso converge para o fato de que se impõe ao psicanalista a necessidade de trabalhar com os conflitos manifestos – incluídos os sexuais, obviamente – em uma dimensão que precede a conflitiva do complexo de Édipo típico. Ou seja, é imprescindível que tenhamos um profundo conhecimento da normalidade e patologia do narcisismo, e as influências do mesmo na estruturação edípica, sendo que a recíproca também é verdadeira. (...)

Adquire uma fundamental importância para a prática psicanalítica uma atenção especial para as inter-relações entre Narciso e Édipo, muito particularmente para a observação do latente ego narcísico que está ocultado pela manifesta, e às vezes enganadoramente florida, configuração edípica dos quadros clínicos que atendemos no cotidiano de nossas clínicas.

Por tudo isso, é útil considerar a passagem, progressiva, de Narciso a Édipo, e a – regressiva – de Édipo a Narciso. Assim, no mito de Narciso, tal como consta na “Metamorfosis” de Ovídio, pode se depreender que é necessário que morra Narciso (a díade especular) para que ele possa se transformar em Édipo. No entanto, por mais que se dê a transformação para a genitalidade adulta – própria de um Édipo suficientemente bem resolvido – sempre haverá a presença ativa de vestígios de Narciso, sendo que ambos, de alguma forma, interagem durante toda a vida de qualquer indivíduo. (...)

Para ocorrer na criança essa transformação e passagem evolutiva de Narciso para Édipo, são necessários, no mínimo, dois fatores: o primeiro deles é a presença de um pai forte e seguro que se interponha entre a mãe e o filho, promovendo uma castração (simbólica) nas fantasias onipotentes do filho, ou filha, que imagina ter a posse absoluta da mãe. É claro que esse imaginário fantasmático cresce na proporção direta das estimulações erotizadas ou narcisizadas por parte de uma mãe excessivamente simbiótica e que, ainda por cima, esvazia e desqualifica a imagem do seu marido perante o filho. (...) Vale destacar (...) um reconhecimento da existência real de uma terceira pessoa, logo, do pai, no contexto edipiano. Assim, a criança está saindo da díade fusional e confusional própria do narcisismo e ingressando num “socialismo”, representado pelo triângulo edípico. (...)

A patologia de Édipo é indissociada de Narciso. Assim, clinicamente falando, antes do que a disjunção alternativa de Narciso ou Édipo, é muito mais útil a conjunção copulativa Narciso e Édipo, sendo que cada um deles pode funcionar como um refúgio do outro.

No entanto, uma regressão narcisista nem sempre resulta de uma fuga de Édipo (e vice-versa) e nem como uma forma de resistência contra a progressão até Édipo. Pelo contrário, essa regressão pode representar um necessário e estruturante retorno às origens, a fim de recomeçar tudo de novo, de uma maneira mais sadia e em um ambiente mais adequado, como é o espaço da experiência psicanalítica. Em Narciso, a relação é diádica, enquanto em Édipo ela é triangular (...).

No mito de Narciso, o que prevalece não é o amor por si próprio, mas sim a con-fusão com a mãe (identificação primária de Freud) e a falta de discriminação e consideração pelos demais, enquanto que em Édipo já há o reconhecimento de um terceiro, além da capacidade de discriminação com os demais. (...)

A clássica e simplista versão de que Narciso mirava-se nas águas da fonte porque estaria apaixonado por si mesmo pode ser, hoje, ampliada por um entendimento bem mais complexo. A partir da versão de Ovídio, acredita-se que o elemento essencial do mito consiste na busca de Narciso por uma fusão especular: no reflexo das águas da fonte (mãe, fonte da vida), ele busca a si mesmo.

No entanto, ele está condenado a nunca encontrar a sua real imagem refletida, pelo fato de que esta corresponde a uma etapa evolutiva em que ela está indiscriminada e confundida com a da mãe. Na versão de Pausânias, Narciso mirava-se no espelho para acalmar a pena pela perda de sua irmã gêmea que, como ele, também era belíssima. Também aí pode se reconhecer a busca gemelar, a sombra, o duplo, ou seja, a parte que lhe faltava para compor a totalidade de sua imagem corporal.

Narciso comporta-se da mesma forma como a flor que lhe dá o nome, tal como é descrita por Brandão[1], como “bela, inútil, decorativa, estéril, venenosa, dá junto às águas, é estupefaciente (de acordo com a sua raiz etimológica Narke – de onde vem narcótico), é de vida breve e simboliza a morte e a ressurreição”.

Tirésias – o personagem articulador entre Narciso e Édipo, pelo fato de ter presença relevante em ambos os mitos – profetizara a Liríope que o seu filho Narciso viveria enquanto ele não conhecesse a si próprio. Essa profecia pode ser entendida como um atestado de que há uma incompatibilidade entre o (não) conhecimento que resulta de mirar-se no espelho da díade narcisista e a forma de conhecimento da formação simbólica que é própria da tríade edípica. A transição do espelho da ilusão para o da realidade exige que Narciso morra, como no mito, e metamorfoseie-se em Édipo. (...)

A própria obra de Freud permite observar uma íntima conexão entre o narcisismo original de “sua majestade, o bebê” com as diversas formas da configuração edípica[2]. Como este assunto referente às intersecções entre Narciso e Édipo demandaria um espaço extenso, vou, aqui, me restringir a ilustrações contidas em algumas passagens míticas.

Assim, uma atenta observação do original contexto histórico da tragédia edípica permite verificar que a homossexualidade, com a consequente maldição e punição, precede o incesto e o parricídio, portanto em contraposição ao que geralmente se pensa. Destarte, no mito, Laio foge de Tebas para Élida, onde é afetuosamente acolhido pelo rei Pélope, cujo filho, Crísipo, estabelece um enorme amor homossexual com Laio. A descoberta desse amor proibido e repudiado acarreta consequências trágicas: Crísipo suicida-se; Pélope, ferido, traído e humilhado diante tamanho opróbio roga aos deuses do Olimpo uma vingança contra Laio; os deuses o atendem e impõem a Laio o destino trágico dele ser assassinado pelo seu próprio filho, Édipo. Como se pode perceber, toda a tragédia começa com a homossexualidade...

Ainda em relação ao mito de Édipo, vale transcrever esta bela passagem que Fairbairn[3]  nos brinda e que tão bem ilustra o que aqui estamos enfocando: “É notável que o interesse psicanalítico sobre a clássica história de Édipo tenha se concentrado sobre os atos finais do drama. No entanto, como uma unidade, é importante reconhecer que Édipo que mata a seu pai e desposa sua mãe começou sua vida exposto em uma montanha, e assim esteve privado de cuidados maternais em todos seus aspectos, durante uma etapa na qual sua mãe deveria constituir-se no seu objeto essencial e exclusivo”.

No entanto, parece-me que é no mito de Narciso, que aparece mais claramente a continuidade e o ponto de intersecção entre Narciso e Édipo, tanto que em ambos mitos aparece a figura do cego profeta Tirésias como que estabelecendo uma conexão, ao mesmo tempo em que o final do drama de Narciso permite entender que é necessário que ele (a díade fusional) morra, para que de sua morte nasça Édipo com a respectiva triangularidade, que pressupõe a existência e o reconhecimento de um terceiro, inicialmente o pai.

Com outras palavras, no mito de Narciso, o que prevalece não é tanto o amor por si próprio, mas, sim, uma con-fusão com a mãe (identificação primária de Freud) e a falta de discriminação e de consideração pelos demais, enquanto que em Édipo já há o reconhecimento de um outro e a capacidade de diferenciação com os demais.

É óbvio que os exemplos que inter-relacionam Narciso e Édipo poderiam se multiplicar, porém o importante, na prática analítica, é considerar a passagem, tanto a progressiva – de Narciso a Édipo quanto a regressiva – de Édipo a Narciso – e, muito particularmente para a observação do oculto e latente ego narcísico que está encoberto pela manifesta, e às vezes enganadoramente florida configuração manifestamente edípica. (...)

Do ponto de vista evolutivo, uma atualização dos fundamentais estudos sobre o complexo de Édipo e sobre o narcisismo, justifica a seguinte máxima: “Onde houver Narciso, deve estar Édipo”

ZIMERMAN, David E. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica - uma abordagem didática. Porto Alegre: Artmed, 2007. p. 94, 191,192, 268, 269, 403, 404, 405, 406, 415.



[1] BRANDÃO, J.S. O mito de Narciso. In: Mitologia grega. v. II. Vozes, 1987.

[2] A respeito disso, ver as citações de Freud logo acima deste texto.

[3] FAIRBAIRN, W.R.D. Observaciones sobre la naturaleza de los estados histéricos. In: SAURI, J. Las histerias. Buenos Aires: Nueva Vision, 1975. p.215-250.


 
 

 
 

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