PRINCÍPIO DO PRAZER, PRINCÍPIO DA
REALIDADE E PRINCÍPIO DO NIRVANA
O
princípio do prazer/desprazer, frequentemente abreviado como “princípio do
prazer”, impõe ao aparelho psíquico a descarga automática das excitações quando
sua acumulação ultrapassa um certo limiar, experimentado como desprazer. Rege o
funcionamento em processos primários e fundamenta o ponto de vista econômico da
metapsicologia.
A
tradução de Lustprinzip por “princípio do prazer” merece ser comentada.
Com efeito, o alemão Lust tem dois sentidos: o de prazer, gozo, mas
também o de desejo, cobiça. Lust haben auf é a expressão mais corrente
para dizer “ter vontade de, desejar”. Assim, o princípio do prazer é também um
“princípio do desejo”: o aparelho psíquico não pode fazer outra coisa senão
desejar, enunciou Freud. Da mesma forma, a tradução de Unlustprinzip por
“princípio de desprazer” em A interpretação dos sonhos não deve fazer
esquece que Unlust em alemão também significa “aversão”. A consciência
desvia-se do que lhe causa aversão.
Se
os filósofos de todas as épocas, e em especial Epicuro, sempre opuseram prazer
e dor, ou ligaram o prazer à ausência de dor, o conceito de princípio do prazer
tem sua dupla origem, por um lado, no utilitarismo de Jonh Stuart Mill, que
designava o prazer e as ações para evitar a dor como as duas finalidades da
vida, e por outro, na filosofia da natureza de Gustav Fechner, que tinha
publicado em 1848 um ensaio intitulado Über das Lustprinzip des Handelns
(“Do princípio do prazer na ação”). Sabe-se também que Freud tinha
traduzido o ensaio de Jonh Stuart Mill a respeito do Platão de George Grote
(1866).
Entretanto,
foi no decurso da elaboração teórica dos primeiros tratamentos analíticos
relatados nos Estudos sobre a histeria (1895) que Freud e Breuer
descobriram, num primeiro tempo, o papel do prazer e do desprazer como
qualidades psíquicas determinantes do recalcamento, e enunciaram o princípio de
constância, inspirado na homeostase do meio interno em fisiologia.
No
capítulo VII de A interpretação dos sonhos (1900), Freud considera que o
prazer e o desprazer são as únicas qualidades psíquicas apreendidas pela
consciência, à parte as excitações recebidas do exterior pelo sistema
perceptivo. As excitações de prazer e desprazer revelam-se assim ser quase os
únicos elementos que permitem caracterizar uma transformação da energia no
interior do aparelho psíquico. “As manifestações de prazer e desprazer” regulam
automaticamente a marcha dos processos de investimento, a que Freud chamou
“princípio do desprazer”.
Em
sua ficção do aparelho psíquico primitivo, Freud partiu da ideia de que a
acumulação de excitação é sentida como tensão que suscita o desprazer, e de que
ela ativa o aparelho psíquico com o propósito de repetir a vivência da
satisfação, a qual, a seu tempo, já tinha produzido uma diminuição da excitação
sentida como prazer. Assim, o prazer é definido como essa corrente do aparelho
psíquico que vai do desprazer ao prazer, sendo a única que pode fazer funcionar
o aparelho psíquico. A obtenção do prazer é primitivamente procurada num modo
alucinatório por identidade de percepção com o traço registrado quando de uma
primeira experiência de prazer: é o modo de funcionamento dos processos
psíquicos primários. Por outro lado, o princípio do desprazer proíbe ao
aparelho psíquico introduzir no curso de seus pensamentos um elemento penoso, e
todo e qualquer ato psíquico suscetível de acarretar um sinal de desprazer será
objeto de recalcamento.
Freud
nota, entretanto, nos Três ensaios sobre a sexualidade (1905), a
necessidade de diferençar melhor as tensões e, talvez, de não associar sempre
tensão e desprazer, pois não caberia enquadrar a tensão própria do estado de
excitação sexual entre os sentimentos de desprazer; portanto, prazer e tensão
sexual só estão indiretamente ligados. Ele define então o prazer preliminar,
que institui como princípio de prazer preliminar em Os chistes e sua relação
com o inconsciente.
Em
Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (1911), o
princípio do desprazer é denominado “princípio do prazer/desprazer”, e depois,
mais sucintamente, “princípio do prazer”; ele caracteriza o funcionamento do
Eu-prazer, mas sofre uma modificação no decurso do desenvolvimento do aparelho
psíquico: o princípio da realidade impõe um desvio ao princípio do prazer,
retardando-lhe a satisfação, ou suprime-lhe certas possibilidades, subordinando-a
a um exame preliminar das condições favoráveis na realidade. Mas tal
modificação garante a sobrevivência, pois a submissão total ao princípio do
prazer teria poucas chances de permitir a vida, mesmo se o bebê, “na condição
de se lhe adicionar os cuidados maternos”, não estivesse longe de realizar um
tal sistema psíquico, observa Freud numa nota de pé de página, onde Winnicott
reconhecerá a unidade mãe-bebê na base de sua teoria do desenvolvimento humano.
Em
Além do princípio do prazer (1920), Freud reexamina algumas de suas
concepções teóricas quando coloca em evidência a compulsão de repetição:
demarcada clinicamente nos sonhos, nas neuroses traumáticas, nas brincadeiras
infantis e nas neuroses de transferência, ela coloca-se acima do princípio de
prazer. Mais tarde, em O problema econômico do masoquismo (1924), ele
dissocia os estados de prazer e desprazer dos fatores econômicos de relaxamento
e tensão. Prazer e desprazer não parecem depender desse fator quantitativo, mas
de um caráter qualitativo, do qual Freud sugere alguns traços: o ritmo, o
escoamento temporal das modificações, as elevações e quedas da quantidade de
excitação. Embora ele confirme a tendência do aparelho psíquico para anular ou
reduzir ao máximo as excitações, passa agora a dar-lhe o nome, a exemplo de
Barbara Low, de princípio de nirvana, que consiste em reduzir a zero o nível
geral de excitação do aparelho psíquico. Trata-se daí em diante de uma
tendência da pulsão de morte, ao passo que o princípio de prazer é uma
reivindicação da libido; o princípio da realidade impõe, por seu lado, uma
modificação do princípio de prazer que leve em conta a influência do mundo
exterior.
MIJOLLA, Alain de. Dicionário
internacional da psicanálise. Vol. II – M-Z. Rio de Janeiro: Imago, 2005.
Verbete princípio do prazer/desprazer. p. 1423 e 1424.
Princípio
da realidade: um dos dois princípios que, segundo Freud, regem o funcionamento
mental. Forma par com o princípio de prazer, e modifica-o; na medida em que
consegue impor-se como princípio regulador, a procura da satisfação já não se
efetua pelos caminhos mais curtos, mas faz desvios e adia o seu resultado em
função das condições impostas pelo mundo exterior.
Encarado
do ponto de vista econômico, o princípio de realidade corresponde a uma
transformação da energia livre em energia ligada; do ponto de vista tópico,
caracteriza essencialmente o sistema pré-consciente-consciente; do ponto de
vista dinâmico, a psicanálise procura basear a intervenção do princípio de
realidade num certo tipo de energia pulsional que estaria mais especialmente a
serviço do ego.
Prefigurado
desde as primeiras elaborações metapsicológicas de Freud, o princípio de
realidade é enunciado como tal em 1911, em Formulações sobre os dois
princípios do funcionamento mental (Formulierungen über die zwei
Prinzipien des psychischen Geschehens); é relacionado, numa perspectiva
genética, com o princípio de prazer, ao qual sucede. O bebê começaria por
tentar encontrar, numa modalidade alucinatória, uma possibilidade de
descarregar de forma imediata a tensão pulsional: “... só a carência persistente
da satisfação esperada, a decepção, acarretou o abandono dessa tentativa de
satisfação por meio da alucinação. No seu lugar, o aparelho psíquico teve de
decidir-se a representar as condições reais do mundo exterior e a procurar
nelas uma modificação real. Assim foi introduzido um novo princípio da
atividade psíquica: já não se representava o que era agradável, mas o que era
real, mesmo que fosse desagradável”.
O
princípio de realidade, princípio regulador do funcionamento psíquico, aparece
secundariamente como uma modificação do princípio de prazer, que começa por ser
único soberano; a sua instauração corresponde a uma série de adaptações que o
aparelho psíquico tem de sofrer: desenvolvimento das funções conscientes,
atenção, juízo, memória; substituição da descarga motora por uma ação que tende
a transformar apropriadamente a realidade; nascimento do pensamento, este
definido como uma ‘‘atividade de prova” em que são deslocadas pequenas quantidades
de investimento, o que supõe uma transformação da energia livre, tendente a
circular sem barreiras de uma representação para outra, em energia ligada.
A
passagem do princípio de prazer para o princípio de realidade não suprime,
porém, o primeiro. Por um lado, o princípio de realidade garante a obtenção das
satisfações no real e, por outro, o princípio de prazer continua a reinar em um
amplo campo de atividades psíquicas, espécie de domínio reservado entregue à
fantasia e que funciona segundo as leis do processo primário: o inconsciente.
É
este o modelo mais geral elaborado por Freud (...). Ele assinala que esse
esquema se aplica de forma diferente conforme se encare a evolução das pulsões
sexuais ou a evolução das pulsões de autoconservação. Se estas, no seu
desenvolvimento, são progressivamente levadas a reconhecer plenamente o domínio
do princípio de realidade, as pulsões sexuais, por sua vez, só se “educariam”
com atraso e sempre de modo imperfeito. Daí resultaria, secundariamente, que as
pulsões sexuais continuariam a ser o domínio privilegiado do princípio de
prazer, enquanto as pulsões de autoconservação representariam rapidamente, no
seio do aparelho psíquico, as exigências da realidade. Enfim, o conflito
psíquico entre o ego e o recalcado teria raízes no dualismo pulsional, que corresponderia
também ao dualismo dos princípios. (...)
As
funções de autoconservação põem em jogo montagens de comportamentos, esquemas
perceptivos que visam, de saída, embora de forma inábil, um objeto real
adequado (o seio, o alimento). A pulsão sexual nasce de modo marginal no
decorrer da realização dessa função natural; só se torna verdadeiramente
autônoma no movimento que a separa da função e do objeto, repetindo o prazer na
modalidade do autoerotismo e visando agora as representações eletivas que se
organizam em fantasia. Vemos assim que, nesta perspectiva, a ligação entre os
dois tipos de pulsões considerados e os dois princípios não surge de modo
nenhum como uma aquisição secundária; é desde o início estreita a ligação entre
autoconservação e realidade; inversamente, o momento de emergência da sexualidade
coincide com o da fantasia e da realização alucinatória do desejo. (...)
Na
medida em que Freud, com a sua última tópica, define o ego como uma
diferenciação do id que resultaria do contato direto com a realidade
exterior, faz dele a instância à qual está entregue a tarefa de garantir a
supremacia do princípio de realidade. O ego “...intercala, entre a
reivindicação pulsional e a ação que proporciona a satisfação, a atividade de
pensamento que, tendo-se orientado para o presente e utilizado as experiências
anteriores, tenta adivinhar por ações de prova o resultado do que pretende
fazer. O ego consegue deste modo discernir se a tentativa de obter a satisfação
deve ser efetuada ou adiada, ou se a reivindicação da pulsão não deverá ser
pura e simplesmente reprimida como perigosa (princípio de realidade)”. Essa
formulação representa a expressão mais nítida da tentativa de Freud para fazer
depender do ego as funções adaptativas do indivíduo. (...)
A
noção de princípio de prazer intervém principalmente na teoria psicanalítica de
par com a noção de princípio de realidade. Assim, quando Freud enuncia
explicitamente os dois princípios do funcionamento psíquico, é esse grande eixo
de referência que ele põe em posição de destaque. De início, as pulsões só
procurariam descarregar-se, satisfazer-se pelos caminhos mais curtos. Fariam
progressivamente a aprendizagem da realidade, a única que lhes permite atingir,
através dos desvios e dos adiamentos necessários, a satisfação procurada.
Nesta
tese simplificada, vemos como a relação prazer-realidade levanta um problema
que, por sua vez, depende da significação que se dá em psicanálise ao termo
prazer. Se entendemos essencialmente por prazer o apaziguamento de uma
necessidade, do qual teríamos um modelo na satisfação das pulsões de
autoconservação, a oposição princípio de prazer - princípio de realidade nada
oferece de radical, tanto mais que podemos facilmente admitir no organismo vivo
a existência de um equipamento natural, de predisposições que fazem do prazer
um guia da vida, subordinando-o a comportamentos e a funções adaptativas. Mas
se a psicanálise colocou em primeiro plano a noção de prazer foi num contexto
totalmente diferente, em que, pelo contrário, aparece ligado a processos (vivência
de satisfação), a fenômenos (o sonho), cujo caráter desreal é evidente. Nesta
perspectiva, os dois princípios surgem como fundamentalmente antagônicos, pois
a realização de um desejo inconsciente (Wunscherfüllung) corresponde a
exigências e funciona segundo leis completamente diferentes da satisfação (Befriedigung)
das necessidades vitais. (...)
Princípio
de nirvana: denominação proposta por Barbara Low e retomada por Freud para
designar a tendência do aparelho psíquico para levar a zero ou pelo menos para
reduzir o mais possível nele qualquer quantidade de excitação de origem externa
ou interna.
O
termo “Nirvana”, difundido no Ocidente por Schopenhauer, é tirado da religião
budista, onde designa a “extinção” do desejo humano, o aniquilamento da
individualidade que se funde na alma coletiva, um estado de quietude e de
felicidade perfeita.
Em
Além do princípio do prazer (Jenseits des Lustprinzips, 1920),
Freud, retomando a expressão proposta pela psicanalista inglesa Barbara Low,
enuncia o princípio de Nirvana como “...tendência para a redução, para a
constância, para a supressão da tensão de excitação interna”. Esta formulação é
idêntica à que Freud apresenta, no mesmo texto, do princípio de constância, e
contém, portanto, a ambiguidade de considerar equivalentes a tendência para
manter constante um determinado nível e a tendência para reduzir a zero
qualquer excitação.
Não
é indiferente, contudo, observar que Freud introduz o termo Nirvana, com sua
ressonância filosófica, num texto onde avança muito no caminho da especulação;
no Nirvana hindu ou schopenhaueriano, Freud encontra uma correspondência com a
noção de pulsão de morte. Essa correspondência é sublinhada em O problema
econômico do masoquismo (Das ôkonomische Problem des Masochismus,
1924): “O princípio de Nirvana exprime a tendência da pulsão de morte.” Nesta
medida, o “princípio de Nirvana” designa algo diferente de uma lei de
constância ou de homeostase: a tendência radical para levar a excitação ao
nível zero, tal como outrora Freud a tinha enunciado sob o nome de “princípio
de inércia”.
Por
outro lado, o termo Nirvana sugere uma ligação profunda entre o prazer e o
aniquilamento, ligação que para Freud permaneceu problemática.
LAPLANCHE e
PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. Verbetes:
Princípio do Prazer, Princípio da Realidade e Princípio de Nirvana. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 363 a 371.
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