Módulo 5


PRINCÍPIO DO PRAZER, PRINCÍPIO DA

 REALIDADE E PRINCÍPIO DO NIRVANA

 


O princípio do prazer/desprazer, frequentemente abreviado como “princípio do prazer”, impõe ao aparelho psíquico a descarga automática das excitações quando sua acumulação ultrapassa um certo limiar, experimentado como desprazer. Rege o funcionamento em processos primários e fundamenta o ponto de vista econômico da metapsicologia.

A tradução de Lustprinzip por “princípio do prazer” merece ser comentada. Com efeito, o alemão Lust tem dois sentidos: o de prazer, gozo, mas também o de desejo, cobiça. Lust haben auf é a expressão mais corrente para dizer “ter vontade de, desejar”. Assim, o princípio do prazer é também um “princípio do desejo”: o aparelho psíquico não pode fazer outra coisa senão desejar, enunciou Freud. Da mesma forma, a tradução de Unlustprinzip por “princípio de desprazer” em A interpretação dos sonhos não deve fazer esquece que Unlust em alemão também significa “aversão”. A consciência desvia-se do que lhe causa aversão.

Se os filósofos de todas as épocas, e em especial Epicuro, sempre opuseram prazer e dor, ou ligaram o prazer à ausência de dor, o conceito de princípio do prazer tem sua dupla origem, por um lado, no utilitarismo de Jonh Stuart Mill, que designava o prazer e as ações para evitar a dor como as duas finalidades da vida, e por outro, na filosofia da natureza de Gustav Fechner, que tinha publicado em 1848 um ensaio intitulado Über das Lustprinzip des Handelns (“Do princípio do prazer na ação”). Sabe-se também que Freud tinha traduzido o ensaio de Jonh Stuart Mill a respeito do Platão de George Grote (1866).

Entretanto, foi no decurso da elaboração teórica dos primeiros tratamentos analíticos relatados nos Estudos sobre a histeria (1895) que Freud e Breuer descobriram, num primeiro tempo, o papel do prazer e do desprazer como qualidades psíquicas determinantes do recalcamento, e enunciaram o princípio de constância, inspirado na homeostase do meio interno em fisiologia.

No capítulo VII de A interpretação dos sonhos (1900), Freud considera que o prazer e o desprazer são as únicas qualidades psíquicas apreendidas pela consciência, à parte as excitações recebidas do exterior pelo sistema perceptivo. As excitações de prazer e desprazer revelam-se assim ser quase os únicos elementos que permitem caracterizar uma transformação da energia no interior do aparelho psíquico. “As manifestações de prazer e desprazer” regulam automaticamente a marcha dos processos de investimento, a que Freud chamou “princípio do desprazer”.

Em sua ficção do aparelho psíquico primitivo, Freud partiu da ideia de que a acumulação de excitação é sentida como tensão que suscita o desprazer, e de que ela ativa o aparelho psíquico com o propósito de repetir a vivência da satisfação, a qual, a seu tempo, já tinha produzido uma diminuição da excitação sentida como prazer. Assim, o prazer é definido como essa corrente do aparelho psíquico que vai do desprazer ao prazer, sendo a única que pode fazer funcionar o aparelho psíquico. A obtenção do prazer é primitivamente procurada num modo alucinatório por identidade de percepção com o traço registrado quando de uma primeira experiência de prazer: é o modo de funcionamento dos processos psíquicos primários. Por outro lado, o princípio do desprazer proíbe ao aparelho psíquico introduzir no curso de seus pensamentos um elemento penoso, e todo e qualquer ato psíquico suscetível de acarretar um sinal de desprazer será objeto de recalcamento.

Freud nota, entretanto, nos Três ensaios sobre a sexualidade (1905), a necessidade de diferençar melhor as tensões e, talvez, de não associar sempre tensão e desprazer, pois não caberia enquadrar a tensão própria do estado de excitação sexual entre os sentimentos de desprazer; portanto, prazer e tensão sexual só estão indiretamente ligados. Ele define então o prazer preliminar, que institui como princípio de prazer preliminar em Os chistes e sua relação com o inconsciente.

Em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (1911), o princípio do desprazer é denominado “princípio do prazer/desprazer”, e depois, mais sucintamente, “princípio do prazer”; ele caracteriza o funcionamento do Eu-prazer, mas sofre uma modificação no decurso do desenvolvimento do aparelho psíquico: o princípio da realidade impõe um desvio ao princípio do prazer, retardando-lhe a satisfação, ou suprime-lhe certas possibilidades, subordinando-a a um exame preliminar das condições favoráveis na realidade. Mas tal modificação garante a sobrevivência, pois a submissão total ao princípio do prazer teria poucas chances de permitir a vida, mesmo se o bebê, “na condição de se lhe adicionar os cuidados maternos”, não estivesse longe de realizar um tal sistema psíquico, observa Freud numa nota de pé de página, onde Winnicott reconhecerá a unidade mãe-bebê na base de sua teoria do desenvolvimento humano.

Em Além do princípio do prazer (1920), Freud reexamina algumas de suas concepções teóricas quando coloca em evidência a compulsão de repetição: demarcada clinicamente nos sonhos, nas neuroses traumáticas, nas brincadeiras infantis e nas neuroses de transferência, ela coloca-se acima do princípio de prazer. Mais tarde, em O problema econômico do masoquismo (1924), ele dissocia os estados de prazer e desprazer dos fatores econômicos de relaxamento e tensão. Prazer e desprazer não parecem depender desse fator quantitativo, mas de um caráter qualitativo, do qual Freud sugere alguns traços: o ritmo, o escoamento temporal das modificações, as elevações e quedas da quantidade de excitação. Embora ele confirme a tendência do aparelho psíquico para anular ou reduzir ao máximo as excitações, passa agora a dar-lhe o nome, a exemplo de Barbara Low, de princípio de nirvana, que consiste em reduzir a zero o nível geral de excitação do aparelho psíquico. Trata-se daí em diante de uma tendência da pulsão de morte, ao passo que o princípio de prazer é uma reivindicação da libido; o princípio da realidade impõe, por seu lado, uma modificação do princípio de prazer que leve em conta a influência do mundo exterior.

MIJOLLA, Alain de. Dicionário internacional da psicanálise. Vol. II – M-Z. Rio de Janeiro: Imago, 2005. Verbete princípio do prazer/desprazer. p. 1423 e 1424. 


Princípio da realidade: um dos dois princípios que, segundo Freud, regem o funcionamento mental. Forma par com o princípio de prazer, e modifica-o; na medida em que consegue impor-se como princípio regulador, a procura da satisfação já não se efetua pelos caminhos mais curtos, mas faz desvios e adia o seu resultado em função das condições impostas pelo mundo exterior.

Encarado do ponto de vista econômico, o princípio de realidade corresponde a uma transformação da energia livre em energia ligada; do ponto de vista tópico, caracteriza essencialmente o sistema pré-consciente-consciente; do ponto de vista dinâmico, a psicanálise procura basear a intervenção do princípio de realidade num certo tipo de energia pulsional que estaria mais especialmente a serviço do ego.

Prefigurado desde as primeiras elaborações metapsicológicas de Freud, o princípio de realidade é enunciado como tal em 1911, em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (Formulierungen über die zwei Prinzipien des psychischen Geschehens); é relacionado, numa perspectiva genética, com o princípio de prazer, ao qual sucede. O bebê começaria por tentar encontrar, numa modalidade alucinatória, uma possibilidade de descarregar de forma imediata a tensão pulsional: “... só a carência persistente da satisfação esperada, a decepção, acarretou o abandono dessa tentativa de satisfação por meio da alucinação. No seu lugar, o aparelho psíquico teve de decidir-se a representar as condições reais do mundo exterior e a procurar nelas uma modificação real. Assim foi introduzido um novo princípio da atividade psíquica: já não se representava o que era agradável, mas o que era real, mesmo que fosse desagradável”.

O princípio de realidade, princípio regulador do funcionamento psíquico, aparece secundariamente como uma modificação do princípio de prazer, que começa por ser único soberano; a sua instauração corresponde a uma série de adaptações que o aparelho psíquico tem de sofrer: desenvolvimento das funções conscientes, atenção, juízo, memória; substituição da descarga motora por uma ação que tende a transformar apropriadamente a realidade; nascimento do pensamento, este definido como uma ‘‘atividade de prova” em que são deslocadas pequenas quantidades de investimento, o que supõe uma transformação da energia livre, tendente a circular sem barreiras de uma representação para outra, em energia ligada.

A passagem do princípio de prazer para o princípio de realidade não suprime, porém, o primeiro. Por um lado, o princípio de realidade garante a obtenção das satisfações no real e, por outro, o princípio de prazer continua a reinar em um amplo campo de atividades psíquicas, espécie de domínio reservado entregue à fantasia e que funciona segundo as leis do processo primário: o inconsciente.

É este o modelo mais geral elaborado por Freud (...). Ele assinala que esse esquema se aplica de forma diferente conforme se encare a evolução das pulsões sexuais ou a evolução das pulsões de autoconservação. Se estas, no seu desenvolvimento, são progressivamente levadas a reconhecer plenamente o domínio do princípio de realidade, as pulsões sexuais, por sua vez, só se “educariam” com atraso e sempre de modo imperfeito. Daí resultaria, secundariamente, que as pulsões sexuais continuariam a ser o domínio privilegiado do princípio de prazer, enquanto as pulsões de autoconservação representariam rapidamente, no seio do aparelho psíquico, as exigências da realidade. Enfim, o conflito psíquico entre o ego e o recalcado teria raízes no dualismo pulsional, que corresponderia também ao dualismo dos princípios. (...)

As funções de autoconservação põem em jogo montagens de comportamentos, esquemas perceptivos que visam, de saída, embora de forma inábil, um objeto real adequado (o seio, o alimento). A pulsão sexual nasce de modo marginal no decorrer da realização dessa função natural; só se torna verdadeiramente autônoma no movimento que a separa da função e do objeto, repetindo o prazer na modalidade do autoerotismo e visando agora as representações eletivas que se organizam em fantasia. Vemos assim que, nesta perspectiva, a ligação entre os dois tipos de pulsões considerados e os dois princípios não surge de modo nenhum como uma aquisição secundária; é desde o início estreita a ligação entre autoconservação e realidade; inversamente, o momento de emergência da sexualidade coincide com o da fantasia e da realização alucinatória do desejo. (...)

Na medida em que Freud, com a sua última tópica, define o ego como uma diferenciação do id que resultaria do contato direto com a realidade exterior, faz dele a instância à qual está entregue a tarefa de garantir a supremacia do princípio de realidade. O ego “...intercala, entre a reivindicação pulsional e a ação que proporciona a satisfação, a atividade de pensamento que, tendo-se orientado para o presente e utilizado as experiências anteriores, tenta adivinhar por ações de prova o resultado do que pretende fazer. O ego consegue deste modo discernir se a tentativa de obter a satisfação deve ser efetuada ou adiada, ou se a reivindicação da pulsão não deverá ser pura e simplesmente reprimida como perigosa (princípio de realidade)”. Essa formulação representa a expressão mais nítida da tentativa de Freud para fazer depender do ego as funções adaptativas do indivíduo. (...)

A noção de princípio de prazer intervém principalmente na teoria psicanalítica de par com a noção de princípio de realidade. Assim, quando Freud enuncia explicitamente os dois princípios do funcionamento psíquico, é esse grande eixo de referência que ele põe em posição de destaque. De início, as pulsões só procurariam descarregar-se, satisfazer-se pelos caminhos mais curtos. Fariam progressivamente a aprendizagem da realidade, a única que lhes permite atingir, através dos desvios e dos adiamentos necessários, a satisfação procurada.

Nesta tese simplificada, vemos como a relação prazer-realidade levanta um problema que, por sua vez, depende da significação que se dá em psicanálise ao termo prazer. Se entendemos essencialmente por prazer o apaziguamento de uma necessidade, do qual teríamos um modelo na satisfação das pulsões de autoconservação, a oposição princípio de prazer - princípio de realidade nada oferece de radical, tanto mais que podemos facilmente admitir no organismo vivo a existência de um equipamento natural, de predisposições que fazem do prazer um guia da vida, subordinando-o a comportamentos e a funções adaptativas. Mas se a psicanálise colocou em primeiro plano a noção de prazer foi num contexto totalmente diferente, em que, pelo contrário, aparece ligado a processos (vivência de satisfação), a fenômenos (o sonho), cujo caráter desreal é evidente. Nesta perspectiva, os dois princípios surgem como fundamentalmente antagônicos, pois a realização de um desejo inconsciente (Wunscherfüllung) corresponde a exigências e funciona segundo leis completamente diferentes da satisfação (Befriedigung) das necessidades vitais. (...)

Princípio de nirvana: denominação proposta por Barbara Low e retomada por Freud para designar a tendência do aparelho psíquico para levar a zero ou pelo menos para reduzir o mais possível nele qualquer quantidade de excitação de origem externa ou interna.

O termo “Nirvana”, difundido no Ocidente por Schopenhauer, é tirado da religião budista, onde designa a “extinção” do desejo humano, o aniquilamento da individualidade que se funde na alma coletiva, um estado de quietude e de felicidade perfeita.

Em Além do princípio do prazer (Jenseits des Lustprinzips, 1920), Freud, retomando a expressão proposta pela psicanalista inglesa Barbara Low, enuncia o princípio de Nirvana como “...tendência para a redução, para a constância, para a supressão da tensão de excitação interna”. Esta formulação é idêntica à que Freud apresenta, no mesmo texto, do princípio de constância, e contém, portanto, a ambiguidade de considerar equivalentes a tendência para manter constante um determinado nível e a tendência para reduzir a zero qualquer excitação.

Não é indiferente, contudo, observar que Freud introduz o termo Nirvana, com sua ressonância filosófica, num texto onde avança muito no caminho da especulação; no Nirvana hindu ou schopenhaueriano, Freud encontra uma correspondência com a noção de pulsão de morte. Essa correspondência é sublinhada em O problema econômico do masoquismo (Das ôkonomische Problem des Masochismus, 1924): “O princípio de Nirvana exprime a tendência da pulsão de morte.” Nesta medida, o “princípio de Nirvana” designa algo diferente de uma lei de constância ou de homeostase: a tendência radical para levar a excitação ao nível zero, tal como outrora Freud a tinha enunciado sob o nome de “princípio de inércia”.

Por outro lado, o termo Nirvana sugere uma ligação profunda entre o prazer e o aniquilamento, ligação que para Freud permaneceu problemática.

LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. Verbetes: Princípio do Prazer, Princípio da Realidade e Princípio de Nirvana. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 363 a 371.


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