O TRAUMA
Acontecimento
da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que
se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo transtorno e
pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica.
Em
termos econômicos, o traumatismo caracteriza-se por um afluxo de excitações que
é excessivo em relação à tolerância do sujeito e à sua capacidade de dominar e
de elaborar psiquicamente estas excitações.
Trauma
e traumatismo são termos há muito utilizados em medicina e cirurgia. Trauma,
que vem do grego τραύμα
= ferida, e (...) designa uma ferida com efração (rompimento, arrombamento);
traumatismo seria reservado mais para as consequências no conjunto do organismo
de uma lesão resultante de uma violência externa. A noção de efração do revestimento
cutâneo nem sempre, porém, está presente; fala-se, por exemplo, de
“traumatismos crânio-cerebrais fechados”. Houve quem notasse também que os dois
termos "trauma” e “traumatismo” tendem a ser utilizados em medicina de
forma sinônima.
A
psicanálise retomou estes termos (em Freud apenas encontramos trauma),
transpondo para o plano psíquico as três significações que neles estavam
implicadas: a de um choque violento, a de uma efração e a de consequências
sobre o conjunto da organização.
A
noção de traumatismo remete primeiramente, como o próprio Freud apontou, para
uma concepção econômica: “Chamamos assim a uma vivência que, no espaço de pouco
tempo, traz um tal aumento de excitação à vida psíquica, que a sua liquidação
ou a sua elaboração pelos meios normais e habituais fracassa, o que não pode
deixar de acarretar perturbações duradouras no funcionamento energético.” O
afluxo de excitações é excessivo em relação à tolerância do aparelho psíquico,
quer se trate de um só acontecimento muito violento (emoção forte) ou de uma
acumulação de excitações cada uma das quais, tomada isoladamente, seria
tolerável; o princípio de constância[1] começa por ser posto em
xeque, pois o aparelho não é capaz de descarregar a excitação.
Freud,
em Além do princípio do prazer (Jenseits des Lustprinzips, 1920),
apresentou uma representação figurada deste estado de coisas, encarando-o ao
nível de uma relação elementar entre um organismo e o seu meio: a “vesícula
viva” é mantida ao abrigo das excitações externas por uma camada protetora ou para-excitações,
que deixa passar somente quantidades toleráveis de excitação. Se esta camada
vem a sofrer uma extensa efração, temos o traumatismo; a tarefa do aparelho é
então mobilizar todas as forças disponíveis para estabelecer contra-investimentos,
fixar no lugar as quantidades de excitação afluentes e permitir assim o
restabelecimento das condições de funcionamento do princípio de prazer.
É
clássico caracterizar assim o início da psicanálise (entre 1890 e 1897): no
plano teórico, a etiologia da neurose é referida a experiências traumáticas
passadas, sendo a data destas experiências recuada, em uma demarche
sempre mais regrediente, à medida que as investigações analíticas se
aprofundam, da idade adulta para a infância; no plano técnico, a eficácia do
tratamento é procurada numa ab-reação[2] e numa elaboração psíquica
das experiências traumáticas. É clássico, também, indicar que esta concepção
passou progressivamente para segundo plano.
Neste
período em que a psicanálise se constituiu, o traumatismo qualifica em primeiro
lugar um acontecimento pessoal da história do sujeito, datável e subjetivamente
importante pelos afetos penosos que pode desencadear. Não se pode falar de
acontecimentos traumáticos de maneira absoluta, sem considerar a
“suscetibilidade” (Empfänglichkeit) própria do sujeito. Para que haja
traumatismo em sentido restrito, isto é, não ab-reação da experiência que
permanece no psiquismo como um “corpo estranho”, devem estar presentes
condições objetivas. É evidente que o acontecimento pode, pela sua “própria
natureza”, excluir uma ab-reação completa (“perda de um ser amado que parece
insubstituível”, por exemplo); mas, além deste caso-limite, circunstâncias
específicas garantem ao acontecimento o seu valor traumático: condições
psicológicas especiais em que se encontra o sujeito no momento do acontecimento
(“estado hipnoide” de Breuer), situação de fato - circunstâncias sociais,
exigências da missão que se está desempenhando - que não permite ou entrava uma
reação adequada (“retenção”) e, por fim e sobretudo, segundo Freud, conflito
psíquico que impede ao sujeito integrar na sua personalidade consciente a
experiência que lhe ocorre (defesa). Breuer e Freud notam ainda que toda uma
série de acontecimentos, cada um dos quais por si só não agiria como traumatismo,
podem somar os seus efeitos (“adição”).
Sob
a diversidade das condições salientadas nos Estudos sobre a histeria (Studien
über Hysterie, 1895), percebemos que o denominador comum é o fator
econômico, pois as consequências do traumatismo são a incapacidade do aparelho
psíquico para liquidar as excitações segundo o princípio de constância.
Concebe-se igualmente que se possa estabelecer toda uma série que vá do
acontecimento que encontra a sua eficácia patogênica na sua violência e no
caráter inopinado do seu aparecimento (acidente, por exemplo) até o que tira
sua eficácia de sua inserção numa organização psíquica que compreende já os
seus pontos de ruptura bem particulares.
A
valorização por Freud do conflito defensivo na gênese da histeria e, em geral,
das “psiconeuroses de defesa” não vem infirmar a função do traumatismo, mas
torna a sua teoria mais complexa. Note-se em primeiro lugar que a tese segundo
a qual o traumatismo é essencialmente sexual se afirma no decorrer dos anos de
1895-97 e que, no mesmo período, o traumatismo original é descoberto na vida
pré-pubertária. (...)
Vários
textos desse período expõem ou supõem uma tese muito definida que tende a
explicar como o acontecimento traumático desencadeia por parte do ego, em lugar
das defesas normais habitualmente utilizadas contra um acontecimento penoso
(desvio da atenção, por exemplo), uma “defesa patológica” - cujo modelo é então
para Freud o recalque - que opera segundo o processo primário.
O
traumatismo vê a sua ação decomposta em vários elementos e supõe sempre a
existência de, pelo menos, dois acontecimentos: numa primeira cena, chamada de
sedução, a criança sofre uma tentativa sexual por parte do adulto, sem que esta
dê origem nela a qualquer excitação sexual; uma segunda cena, muitas vezes
aparentemente anódina, e ocorrida depois da puberdade, vem evocar a primeira
por qualquer traço associativo. E a lembrança da primeira que desencadeia um
afluxo de excitações sexuais que excede as defesas do ego. Embora Freud chame
traumática à primeira cena, vemos que, do estrito ponto de vista econômico, só a
posteriori esse valor lhe é conferido; ou ainda: só com a lembrança a primeira
cena se torna a posteriori patogênica, na medida em que provoca um
afluxo de excitação interna. Tal teoria confere o seu pleno sentido à famosa
fórmula dos Estudos sobre a histeria: “os histéricos sofrem sobretudo de
reminiscências”.
Vemos
ao mesmo tempo como a apreciação do papel desempenhado pelo acontecimento exterior
se diferencia sutilmente. A ideia do traumatismo psíquico decalcado sobre o
traumatismo físico não se desenvolve, pois a segunda cena não age pela sua
própria energia, mas apenas na medida em que desperta um a excitação de origem
endógena. Neste sentido, a concepção de Freud que aqui resumimos já abre caminho
à ideia segundo a qual os acontecimentos exteriores vão buscar a sua eficácia
nas fantasias que ativam e no afluxo de excitação pulsional que desencadeiam.
LAPLANCHE, Jean. Vocabulário de psicanálise. São Paulo:
Martins Fontes, 1992. Verbetes: “Trauma” (p. 522 a 525), “Princípio da
constância” (p. 355) e “Ab-reação” (p. 1).
[1]
Princípio de constância: Princípio enunciado por Freud, segundo o qual o
aparelho psíquico tende a manter a nível tão baixo ou, pelo menos, tão
constante quanto possível a quantidade de excitação que contém. A constância é
obtida, por um lado, pela descarga da energia já presente e, por outro, pela
evitação do que poderia aumentar a quantidade de excitação e pela defesa contra
esse aumento.
[2]
Ab-reação: Descarga emocional pela qual um sujeito se liberta do afeto ligado à
recordação de um acontecimento traumático, permitindo assim que ele não se
torne ou não continue sendo patogênico. A ab-reação, que pode ser provocada no
decorrer da psicoterapia, principalmente sob hipnose, e produzir então um
efeito de catarse, também pode surgir de modo espontâneo, separada do
traumatismo inicial por um intervalo mais ou menos longo.
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