Módulo 19

 O TRAUMA




Acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica.

Em termos econômicos, o traumatismo caracteriza-se por um afluxo de excitações que é excessivo em relação à tolerância do sujeito e à sua capacidade de dominar e de elaborar psiquicamente estas excitações.

Trauma e traumatismo são termos há muito utilizados em medicina e cirurgia. Trauma, que vem do grego τραύμα = ferida, e (...) designa uma ferida com efração (rompimento, arrombamento); traumatismo seria reservado mais para as consequências no conjunto do organismo de uma lesão resultante de uma violência externa. A noção de efração do revestimento cutâneo nem sempre, porém, está presente; fala-se, por exemplo, de “traumatismos crânio-cerebrais fechados”. Houve quem notasse também que os dois termos "trauma” e “traumatismo” tendem a ser utilizados em medicina de forma sinônima.

A psicanálise retomou estes termos (em Freud apenas encontramos trauma), transpondo para o plano psíquico as três significações que neles estavam implicadas: a de um choque violento, a de uma efração e a de consequências sobre o conjunto da organização.

A noção de traumatismo remete primeiramente, como o próprio Freud apontou, para uma concepção econômica: “Chamamos assim a uma vivência que, no espaço de pouco tempo, traz um tal aumento de excitação à vida psíquica, que a sua liquidação ou a sua elaboração pelos meios normais e habituais fracassa, o que não pode deixar de acarretar perturbações duradouras no funcionamento energético.” O afluxo de excitações é excessivo em relação à tolerância do aparelho psíquico, quer se trate de um só acontecimento muito violento (emoção forte) ou de uma acumulação de excitações cada uma das quais, tomada isoladamente, seria tolerável; o princípio de constância[1] começa por ser posto em xeque, pois o aparelho não é capaz de descarregar a excitação.

Freud, em Além do princípio do prazer (Jenseits des Lustprinzips, 1920), apresentou uma representação figurada deste estado de coisas, encarando-o ao nível de uma relação elementar entre um organismo e o seu meio: a “vesícula viva” é mantida ao abrigo das excitações externas por uma camada protetora ou para-excitações, que deixa passar somente quantidades toleráveis de excitação. Se esta camada vem a sofrer uma extensa efração, temos o traumatismo; a tarefa do aparelho é então mobilizar todas as forças disponíveis para estabelecer contra-investimentos, fixar no lugar as quantidades de excitação afluentes e permitir assim o restabelecimento das condições de funcionamento do princípio de prazer.

É clássico caracterizar assim o início da psicanálise (entre 1890 e 1897): no plano teórico, a etiologia da neurose é referida a experiências traumáticas passadas, sendo a data destas experiências recuada, em uma demarche sempre mais regrediente, à medida que as investigações analíticas se aprofundam, da idade adulta para a infância; no plano técnico, a eficácia do tratamento é procurada numa ab-reação[2] e numa elaboração psíquica das experiências traumáticas. É clássico, também, indicar que esta concepção passou progressivamente para segundo plano.

Neste período em que a psicanálise se constituiu, o traumatismo qualifica em primeiro lugar um acontecimento pessoal da história do sujeito, datável e subjetivamente importante pelos afetos penosos que pode desencadear. Não se pode falar de acontecimentos traumáticos de maneira absoluta, sem considerar a “suscetibilidade” (Empfänglichkeit) própria do sujeito. Para que haja traumatismo em sentido restrito, isto é, não ab-reação da experiência que permanece no psiquismo como um “corpo estranho”, devem estar presentes condições objetivas. É evidente que o acontecimento pode, pela sua “própria natureza”, excluir uma ab-reação completa (“perda de um ser amado que parece insubstituível”, por exemplo); mas, além deste caso-limite, circunstâncias específicas garantem ao acontecimento o seu valor traumático: condições psicológicas especiais em que se encontra o sujeito no momento do acontecimento (“estado hipnoide” de Breuer), situação de fato - circunstâncias sociais, exigências da missão que se está desempenhando - que não permite ou entrava uma reação adequada (“retenção”) e, por fim e sobretudo, segundo Freud, conflito psíquico que impede ao sujeito integrar na sua personalidade consciente a experiência que lhe ocorre (defesa). Breuer e Freud notam ainda que toda uma série de acontecimentos, cada um dos quais por si só não agiria como traumatismo, podem somar os seus efeitos (“adição”).

Sob a diversidade das condições salientadas nos Estudos sobre a histeria (Studien über Hysterie, 1895), percebemos que o denominador comum é o fator econômico, pois as consequências do traumatismo são a incapacidade do aparelho psíquico para liquidar as excitações segundo o princípio de constância. Concebe-se igualmente que se possa estabelecer toda uma série que vá do acontecimento que encontra a sua eficácia patogênica na sua violência e no caráter inopinado do seu aparecimento (acidente, por exemplo) até o que tira sua eficácia de sua inserção numa organização psíquica que compreende já os seus pontos de ruptura bem particulares.

A valorização por Freud do conflito defensivo na gênese da histeria e, em geral, das “psiconeuroses de defesa” não vem infirmar a função do traumatismo, mas torna a sua teoria mais complexa. Note-se em primeiro lugar que a tese segundo a qual o traumatismo é essencialmente sexual se afirma no decorrer dos anos de 1895-97 e que, no mesmo período, o traumatismo original é descoberto na vida pré-pubertária. (...)

Vários textos desse período expõem ou supõem uma tese muito definida que tende a explicar como o acontecimento traumático desencadeia por parte do ego, em lugar das defesas normais habitualmente utilizadas contra um acontecimento penoso (desvio da atenção, por exemplo), uma “defesa patológica” - cujo modelo é então para Freud o recalque - que opera segundo o processo primário.

O traumatismo vê a sua ação decomposta em vários elementos e supõe sempre a existência de, pelo menos, dois acontecimentos: numa primeira cena, chamada de sedução, a criança sofre uma tentativa sexual por parte do adulto, sem que esta dê origem nela a qualquer excitação sexual; uma segunda cena, muitas vezes aparentemente anódina, e ocorrida depois da puberdade, vem evocar a primeira por qualquer traço associativo. E a lembrança da primeira que desencadeia um afluxo de excitações sexuais que excede as defesas do ego. Embora Freud chame traumática à primeira cena, vemos que, do estrito ponto de vista econômico, só a posteriori esse valor lhe é conferido; ou ainda: só com a lembrança a primeira cena se torna a posteriori patogênica, na medida em que provoca um afluxo de excitação interna. Tal teoria confere o seu pleno sentido à famosa fórmula dos Estudos sobre a histeria: “os histéricos sofrem sobretudo de reminiscências”.

Vemos ao mesmo tempo como a apreciação do papel desempenhado pelo acontecimento exterior se diferencia sutilmente. A ideia do traumatismo psíquico decalcado sobre o traumatismo físico não se desenvolve, pois a segunda cena não age pela sua própria energia, mas apenas na medida em que desperta um a excitação de origem endógena. Neste sentido, a concepção de Freud que aqui resumimos já abre caminho à ideia segundo a qual os acontecimentos exteriores vão buscar a sua eficácia nas fantasias que ativam e no afluxo de excitação pulsional que desencadeiam.

LAPLANCHE, Jean. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Verbetes: “Trauma” (p. 522 a 525), “Princípio da constância” (p. 355) e “Ab-reação” (p. 1).



[1] Princípio de constância: Princípio enunciado por Freud, segundo o qual o aparelho psíquico tende a manter a nível tão baixo ou, pelo menos, tão constante quanto possível a quantidade de excitação que contém. A constância é obtida, por um lado, pela descarga da energia já presente e, por outro, pela evitação do que poderia aumentar a quantidade de excitação e pela defesa contra esse aumento.

[2] Ab-reação: Descarga emocional pela qual um sujeito se liberta do afeto ligado à recordação de um acontecimento traumático, permitindo assim que ele não se torne ou não continue sendo patogênico. A ab-reação, que pode ser provocada no decorrer da psicoterapia, principalmente sob hipnose, e produzir então um efeito de catarse, também pode surgir de modo espontâneo, separada do traumatismo inicial por um intervalo mais ou menos longo.




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