Módulo 35

 CATARSE




        Método catártico: o chamado método “catártico” é uma técnica de tratamento dos distúrbios psíquicos desenvolvida por Josef Breuer com sua paciente Anna O. em 1881-1882. Tratava-se de, sob hipnose, fazer a paciente reencontrar a lembrança de uma cena traumatizante na origem do sintoma de que ele a queria libertar, e “purgar” assim da reminiscência patogênica. O seu qualificativo é inspirado pelo efeito de “purgação (catharsis) das paixões” que as representações teatrais de Atenas produziam nos seus espectadores, segundo Aristóteles.

         A leitura do caso mostra seu progressivo aperfeiçoamento. No início, Breuer limitava-se a tirar proveito dos estados de auto-hipnose em que a sua paciente se colocava para a incitar a exprimir o que, sem seus períodos vígeis, ela preferia calar. Mais tarde, Anna O. passou a inventar descrições de fatos a partir de uma palavra ouvida e, uma vez terminado o relato, ela despertava tranquilizada. Após a morte de seu pai, esses relatos evocaram os medos e as alucinações que a dominavam ao longo do dia. Sem nenhuma intenção etiológica, necessitavam da escuta do médico e apresentavam um efeito catártico ligado ao estado emocional que os acompanhava. Anna O. deu a essa parte do tratamento “o nome apropriado de talking cure [cura pela palavra] e o nome humorístico de chimney sweeping [limpeza de chaminé]. Breuer começou então a utilizar de modo sistemático a técnica de uma palavra indutora.

         Foi provavelmente em agosto de 1881 que o método adquiriu sua forma definitiva, quando Anna O., tendo recusado se dessedentar apesar do calor que fazia, reencontrou a lembrança da repugnância que tinha sentido ao surpreender o cão de uma governanta bebendo água no seu copo. Após descrever a cena, ela pediu água e “o sintoma nunca mais voltou a manifestar-se”. Outros exemplos vieram provar a Breuer que “nessa doente os sintomas desapareciam sempre que os incidentes que os haviam provocado eram reproduzidos”, e que uma utilização sistemática dessa “narração depurativa” ia permitir tratar, um após outros, todos esses sintomas mórbidos. Para acelerar o processo, ele contraiu o hábito de a hipnotizar, o que não vinha sendo sistematicamente feito até então.

         Freud e Breuer completarão a noção de catarse com a de “ab-reação”: uma certa quantidade de afetos ligados à lembrança do acontecimento patogênico traumatizante não pôde ser evacuada pelas vias físicas ou orgânicas normais, conforme exigido pelo “princípio da constância”, e viu-se acuada (eingeklemment) e desviada para o somático, situado na origem do sintoma patológico.

         Cansado dos maus resultados e da monotonia das sugestões, Freud parece estar decidido a empregar em 1889, por ocasião do caso de Emmy von N., o “método catártico” de J. Breuer. Mas os seus fracassos na obtenção do “sono”, incitam-no em 1892 a abandonar a hipnose, à qual a sua paciente Elisabeth von R. se mostrou refratária. Ele pede-lhe que se deite, de olhos fechados, mas permite-lhe que se mova, que abra os olhos, que se sente, e experimenta com ela a “técnica de concentração”: “Adotei o procedimento de colocar uma mão sobre a fronte da doente ou de tomar sua cabeça entre as minhas mãos e dizer-lhe: ‘a pressão da minha mão despertará em você a lembrança procurada. No momento em que eu afastar as mãos e a pressão cessar, você verá algo ou uma ideia surgirá em sua cabeça. Retenha-a bem, porque isso será o que procuramos. Bem, agora diga-me o que viu ou o que foi que lhe ocorreu ao espírito’.” Esse procedimento, acrescenta Freud, “quase nunca me decepcionou”, a ponto de adquirir uma tal confiança que, quando um paciente dizia não ter visto nem lhe ocorrido nada, ele respondia rotundamente ser isso impossível e que se tratava de uma forma que o paciente tinha de evitar que “a informação lhe fosse extorquida”.

         O método de Breuer transformou-se assim, pouco a pouco, numa “análise psíquica”, a qual prefigura a “psicanálise”, palavra que só aparecerá quatro anos mais tarde, e cuja elaboração ocorrerá progressivamente até 1909, data em que Freud empreende, de acordo com um novo método, a análise do “Homem dos Ratos”.

         A tese de Freud segundo a qual o traumatismo na origem do deslocamento da energia para o soma é sempre de natureza sexual causará o seu rompimento com Breuer mas determinará todo o futuro da psicanálise. O mesmo ocorreu com a sua explicação para as dificuldades opostas pelos pacientes no decorrer do tratamento por uma defesa contra a reminiscência patogênica, uma “resistência”, e com a sua compreensão para a “transferência” do brusco término do tratamento de Anna O, ou para o episódio no decorrer do qual uma paciente, ao despertar, tinha lançado os braços ao seu pescoço para o abraçar.

         Purgação catártica e ab-reação, se os seus efeitos são sempre observáveis no decorrer de uma cura psicanalítica, já não constituem mais uma meta do tratamento, como em 1895. Permanecem, em compensação, no primeiro plano de várias técnicas psicoterapêuticas, como, por exemplo, o “grito primal” ou certas práticas de “psicodrama”.     

MIJOLLA, Alain (Org.) Dicionário Internacional da Psicanálise. Vol. A-L. Rio de Janeiro: Imago, 2005. Verbete “Método Catártico”. p. 311 e 312.


Ab-reação: Descarga emocional pela qual um sujeito se liberta do afeto ligado à recordação de um acontecimento traumático, permitindo assim que ele não se torne ou não continue sendo patogênico. A ab-reação, que pode ser provocada no decorrer da psicoterapia, principalmente sob hipnose, e produzir então um efeito de catarse, também pode surgir de modo espontâneo, separada do traumatismo inicial por um intervalo mais ou menos longo.

A noção de ab-reação não pode ser compreendida sem nos referirmos à teoria de Freud sobre a gênese do sintoma histérico, tal como ele a expôs em Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos (Über den psychischen Mechanismus hysterischer Phänomene, 1893). A persistência do afeto que se liga a uma recordação depende de diversos fatores, e o mais importante deles está ligado ao modo como o sujeito reagiu a um determinado acontecimento. Esta reação pode ser constituída por reflexos voluntários ou involuntários, pode ir das lágrimas à vingança. Se tal reação for suficientemente importante, grande parte do afeto ligado ao acontecimento desaparecerá. Se essa reação for reprimida (unterdrückt), o afeto se conservará ligado à recordação.

A ab-reação é assim o caminho normal que permite ao sujeito reagir a um acontecimento e evitar que ele conserve um quantum de afeto demasiado importante. No entanto, é preciso que essa reação seja “adequada” para que possa ter um efeito catártico.

A ab-reação pode ser espontânea, isto é, seguir-se ao acontecimento com um intervalo tão curto que impeça que a sua recordação se carregue de um afeto demasiado importante para se tornar patogênico. Ou então a ab-reação pode ser secundária, provocada pela psicoterapia catártica, que permite ao doente rememorar e objetivar pela palavra o acontecimento traumático, e libertar-se assim do quantum de afeto que o tornava patogênico. Freud, efetivamente, nota já em 1895: “É na linguagem que o homem acha um substituto para o ato, substituto graças ao qual o afeto pode ser ab-reagido quase da mesma maneira.”

Uma ab-reação total não é a única maneira pela qual o sujeito pode se desembaraçar da recordação de um acontecimento traumático: a recordação pode ser integrada numa série associativa que permita a correção do acontecimento, que o faça voltar ao seu lugar. Já em Estudos sobre a histeria (Studien über Hysterie, 1895) Freud descreve, às vezes, como um processo de ab-reação um verdadeiro trabalho de rememoração e de elaboração psíquica, em que o mesmo afeto se acha reavivado correlativamente à recordação dos diferentes acontecimentos que o suscitaram.

A ausência de ab-reação tem como efeito deixar subsistir no estado inconsciente e isolados do curso normal do pensamento grupos de representações que estão na origem dos sintomas neuróticos: “As representações que se tomaram patogênicas conservam a sua atividade porque não são submetidas ao desgaste normal pela ab-reação e porque a sua reprodução nos estados associativos livres é impossível.”

Breuer e Freud procuram distinguir as diferentes espécies de condições que não permitem ao sujeito ab-reagir. Umas estariam ligadas não à natureza do acontecimento, mas ao estado psíquico que este encontra no sujeito: pavor, auto-hipnose, estado hipnoide; outras estão ligadas a circunstâncias, geralmente de natureza social, que obrigam o sujeito a reter as suas reações. Finalmente, pode tratar-se de um acontecimento que "... o doente quis esquecer e que recalcou, inibiu, reprimiu intencionalmente fora do seu pensamento consciente”. Estas três espécies de condições definem os três tipos de histeria: histeria hipnoide, histeria de retenção e histeria de defesa. Sabe-se que Freud, logo após a publicação de Estudos sobre a histeria, irá manter apenas esta última forma.

Enfatizar exclusivamente a ab-reação na eficácia da psicoterapia é antes de mais nada uma característica do período chamado do “método catártico”. No entanto, a noção continua presente na teoria do tratamento psicanalítico, por razões de fato (presença em qualquer tratamento, em diversos graus conforme os tipos de doentes, de manifestações de descarga emocional) e por razões de direito, na medida em que qualquer teoria do tratamento leva em consideração não apenas a rememoração, mas a repetição. Noções como as de transferência, perlaboração, atuação, implicam uma referência à teoria da ab-reação, ao mesmo tempo que conduzem a concepções do tratamento mais complexas do que as da pura e simples liquidação do afeto traumatizante.

LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2016. Verbete: Ab-reação. p. 1 e 2.

 

Método catártico: método de psicoterapia em que o efeito terapêutico visado é uma “purgação” (catharsis), uma descarga adequada dos afetos patogênicos. O tratamento permite ao sujeito evocar e até reviver os acontecimentos traumáticos a que esses afetos estão ligados, e ab-reagi-los.

Historicamente, o “método catártico” pertence ao período (1880- 1895) em que a terapia psicanalítica se definia progressivamente a partir de tratamentos efetuados sob hipnose.

Catharsis é um termo grego que significa purificação, purgação. Foi utilizado por Aristóteles para designar o efeito produzido no espectador pela tragédia: “A tragédia é a imitação de uma ação virtuosa que aconteceu e que, por meio do temor e da piedade, suscita a purificação de certas paixões.”

Breuer, e depois Freud, retomaram esse termo, que exprime para eles o efeito esperado de uma ab-reação adequada do traumatismo. Sabe-se efetivamente que, segundo a teoria desenvolvida em Estudos sobre a histeria (Studien über Hysterie, 1895), os afetos que não conseguiram encontrar o caminho para a descarga ficam presos (eingeklemmt), exercendo então efeitos patogênicos. Resumindo mais tarde a teoria da catarse, Freud escreveria: “Supunha-se que o sintoma histérico surgia quando a energia de um processo psíquico não podia chegar à elaboração consciente e era dirigida para a inervação corporal (conversão) [...]. A cura era obtida pela liberação do afeto desviado, e a sua descarga por vias normais (ab-reação).”

No seu início, o método catártico estava estreitamente ligado à hipnose. Mas o hipnotismo logo deixou de ser utilizado por Freud como processo destinado a provocar diretamente a supressão do sintoma através da sugestão de que o sintoma não existe. Passou a ser utilizado para induzir a rememoração reintroduzindo no campo de consciência experiências subjacentes aos sintomas, mas esquecidas, “recalcadas” pelo sujeito. Essas recordações evocadas e mesmo revividas com uma intensidade dramática fornecem ao sujeito ocasião de exprimir, de descarregar os afetos que, originariamente ligados à experiência traumatizante, tinham sido de início reprimidos.

Freud renunciou rapidamente à hipnose propriamente dita, substituindo-a pela simples sugestão (auxiliada por um artifício técnico: uma pressão com a mão na testa do paciente), destinada a convencer o doente de que iria reencontrar a recordação patogênica. Por fim, deixou de recorrer à sugestão, fiando-se simplesmente nas associações livres do doente. Aparentemente, a finalidade do tratamento (curar o doente dos seus sintomas restabelecendo o caminho normal de descarga dos afetos) manteve-se a mesma no decorrer dessa evolução dos processos técnicos. Mas, de fato, como atesta o capítulo de Freud “Psicoterapia da histeria” (Estudos sobre a histeria), essa evolução técnica é paralela a uma mudança de perspectiva na teoria do tratamento: levar em consideração as resistências, a transferência, enfatizar cada vez mais a eficácia da elaboração psíquica e da perlaboração. Nesta medida, o efeito catártico ligado à ab-reação deixa de ser a mola principal do tratamento.

A catarse nem por isso deixa de ser uma das dimensões de toda a psicoterapia analítica. Por um lado, de modo variável segundo as estruturas psicopatológicas, encontra-se em numerosos tratamentos uma intensa revivescência de certas lembranças acompanhada de uma descarga emocional mais ou menos tempestuosa; por outro lado, seria fácil mostrar que o efeito catártico se encontra nas diversas modalidades da repetição ao longo do tratamento, e singularmente na atualização transferencial. Do mesmo modo, a perlaboração e a simbolização pela linguagem já estavam prefiguradas no valor catártico que Breuer e Freud reconheciam à expressão verbal: “... é na linguagem que o homem encontra um substituto para o ato, substituto graças ao qual o afeto pode ser ab-reagido quase da mesma maneira. Em outros casos, é a própria palavra que constitui o reflexo adequado, sob a forma de queixa ou como expressão de um segredo pesado (confissão!).”

Além dos efeitos catárticos que se encontram em toda psicanálise, convém assinalar que existem certos tipos de psicoterapia que visam antes de mais nada a catarse: a narcoanálise, utilizada sobretudo nos casos de neurose traumática, provoca, por meios medicamentosos, efeitos próximos dos que Breuer e Freud obtinham por hipnose. O psicodrama, segundo Moreno, é definido como uma liberação dos conflitos interiores por meio da representação dramática.

LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2016.Verbete: Método Catártico. p. 60, 61 e 62.


Catarse: palavra grega utilizada por Aristóteles para designar o processo de purgação ou eliminação das paixões que se produz no espectador quando, no teatro, ele assiste à representação de uma tragédia. O termo foi retomado por Sigmund Freud e Josef Breuer, que, nos Estudos sobre a histeria, chamam de método catártico o procedimento terapêutico pelo qual um sujeito consegue eliminar seus afetos patogênicos e então ab-reagi-los, revivendo os acontecimentos traumáticos a que eles estão ligados.

Fazia séculos que a noção de catarse era objeto de uma discussão interminável, tanto no campo da estética quanto no da filosofia. Em 1857, Jacob Bernays (1824-1881), tio de Martha Bernays, futura mulher de Sigmund Freud, publicou um livro de medicina sobre o assunto. Opondo-se a Lessing (1729-1781), que dera ao termo uma interpretação moral, fazendo da catarse um “expurgo” ou uma “purificação”, Bernays sublinhou que Aristóteles, filho de médico, havia-se inspirado no corpus hipocrático. Daí a ideia de que o tratamento devia fazer surgir o elemento opressivo, para provocar um alívio, em vez de fazê-lo regredir através de uma transformação ética do sujeito. Tratava-se de fazer com que saísse do sujeito, através da fala, um segredo patogênico, consciente ou inconsciente, que o deixava em estado de alienação.

Entre 1857 e 1880, foi publicado sobre essa ideia um número considerável de trabalhos em língua alemã, inspirados no de Bernays. Em Viena, onde grassava o niilismo terapêutico[1], as teses de Bernays foram submetidas a diversos exames críticos, e foi na esteira dessa grande onda da catarse que Josef Breuer e Sigmund Freud, ambos marcados pelo ensino aristotélico de Franz Brentano[2], recorreram a essa ideia.

Esta surgiu em sua pena pela primeira vez em 1893, juntamente com a de ab-reação, na “Comunicação preliminar” que, dois anos depois, serviria de capítulo inaugural para os Estudos sobre a histeria: “A reação do sujeito que sofre algum prejuízo só tem um efeito realmente ‘catártico’ quando é de fato adequada, como na vingança. Mas o ser humano encontra na linguagem um equivalente do ato, equivalente graças ao qual o afeto pode ser ‘ab-reagido’ mais ou menos da mesma maneira.”

Como sublinhou Albrecht Hirschmüller em 1978, fazia muito tempo que os dois autores empregavam esse termo. No entanto, foi a Breuer que coube a invenção do método. Freud o utilizou, por sua vez, no tratamento de Emmy von N. (Fanny Moser).

Na França, também Pierre Janet tinha inventado, mais ou menos na mesma época, um método muito próximo desse - recordação de uma lembrança e ab-reação -, ao qual dera o nome de dissociação verbal ou desinfecção moral. Assim, ele reivindicou uma prioridade para sua invenção. Foi por isso que, para evitar uma disputa pela prioridade entre Paris e Viena, Breuer, instigado por Freud, apresentou o caso Anna O. (Bertha Pappenheim) como sendo o protótipo de um tratamento catártico. Os trabalhos da historiografia acadêmica, inaugurados por Henri F. Ellenberger e prosseguidos por Hirschmüller, permitiram que se restabelecesse a verdade a respeito desse caso princeps[3].

Além dessa querela de prioridade, existe uma diferença radical entre o procedimento de Janet e o de Breuer. Ainda que, em ambos os casos, o médico interrogue o paciente sob hipnose para ganhar acesso às representações inconscientes, Janet procede por sugestão, sem investigar o evento inicial que responde pelo efeito patogênico, ao passo que Breuer, ao contrário, procura o elemento original para ligá-lo aos afetos e provocar a ab-reação. Do ponto de vista teórico, portanto, são poucas as semelhanças existentes entre os dois métodos.

Na história da psicanálise, o método catártico deriva do campo do hipnotismo. Foi ao se desligar progressivamente da prática da hipnose, entre 1880 e 1895, que Freud passou pela catarse, para inventar o método psicanalítico propriamente dito, baseado na associação livre, ou seja, na fala e na linguagem.

ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. Verbete: Catarse. p. 107 e 108.

 

Ab-reação: termo introduzido por Sigmund Freud e Josef Breuer em 1893, para definir um processo de descarga emocional que, liberando o afeto ligado à lembrança de um trauma, anula seus efeitos patogênicos.

O termo ab-reação aparece pela primeira vez na “Comunicação preliminar” de Josef Breuer e Sigmund Freud, dedicada ao estudo do mecanismo psíquico atuante nos fenômenos histéricos.

Nesse texto pioneiro, os autores anunciam desde logo o sentido de seu procedimento: conseguir, tomando como ponto de partida as formas de que os sintomas se revestem, identificar o acontecimento que, a princípio e amiúde num passado distante, provocou o fenômeno histérico. O estabelecimento dessa gênese esbarra em diversos obstáculos oriundos do paciente, aos quais Freud posteriormente chamaria de resistências, e que somente o recurso à hipnose permite superar.

Na maioria das vezes, o sujeito afetado por um acontecimento reage a ele, voluntariamente ou não, de modo reflexo: assim, o afeto ligado ao acontecimento é evacuado, por menos que essa reação seja suficientemente intensa. Nos casos em que a reação não ocorre ou não é forte o bastante, o afeto permanece ligado à lembrança do acontecimento traumático, e é essa lembrança - e não o evento em si - que é o agente dos distúrbios histéricos. Breuer e Freud são muito precisos a esse respeito: “... é sobretudo de reminiscências que sofre o histérico.” Encontramos a mesma precisão no que concerne à adequação da reação do sujeito: quer ela seja imediata, voluntária ou não, quer seja adiada e provocada no âmbito de uma psicoterapia, sob a forma de rememorações e associações, ela tem que manter uma relação de intensidade ou proporção com o acontecimento incitador para surtir um efeito catártico, isto é, liberador. É o caso da vingança como resposta a uma ofensa, a qual, não sendo proporcional ou ajustada à ofensa, deixa aberta a ferida ocasionada por esta.

Desde essa época, Breuer e Freud sublinham como é importante que o ato possa ser substituído pela linguagem, “graças à qual o afeto pode ser ab-reagido quase da mesma maneira”. Eles acrescentam que, em alguns casos de queixa ou confissão, somente as palavras constituem “o reflexo adequado”.

Se o termo ab-reação permanece ligado ao trabalho com Breuer e à utilização do método catártico, nem por isso a instauração do método psicanalítico e o emprego, em 1896, do termo “psico-análise” significam o desaparecimento do termo “ab-reação”, e isso por duas razões, como deixam claro os autores do Vocabulário da psicanálise[4]: uma razão factual, de um lado, na medida em que, seja qual for o método, a análise continua sendo, sobretudo para alguns pacientes, um lugar de fortes reações emocionais; e uma teórica, de outro, uma vez que a conceituação da análise recorre à rememoração e à repetição, formas paralelas de ab-reação.

Por que Breuer e Freud empregaram essa palavra, que este último não renegaria ao evocar o método catártico em sua autobiografia?

Como neologismo, o termo ab-reação compõe-se do prefixo alemão ab- e da palavra reação, constituída, por sua vez, do prefixo re e da palavra ação. A primeira razão dessa duplicação parece ser o cuidado dos autores de repelir o caráter excessivamente genérico da palavra reação. Além disso, porém, a palavra remete ao procedimento da fisiologia do século XIX, em cujo seio ela funciona como sinônima de reflexo, termo pelo qual se designa o elemento de uma relação que tem a forma de um arco linear - o arco reflexo[5] - que relaciona, termo a termo, um estímulo pontual e uma resposta muscular. Essa referência constituía para Freud, nos anos de 1892-1895, uma espécie de garantia de cientificidade, consoante com sua esperança de inscrever a abordagem dos fenômenos histéricos numa continuidade com a fisiologia dos mecanismos cerebrais. Como sublinhou Jean Starobinski em 1994, a referência ao modelo do arco reflexo sobreviveria à utilização dessa palavra, já que Freud se refere explicitamente a ela em seu texto sobre o destino das pulsões, onde distingue as excitações externas, que provocam respostas no estilo do arco reflexo, das excitações internas, cujos efeitos são da ordem de uma reação.

Mais tarde, Freud utilizaria o termo reação num sentido radicalmente diferente: em vez de designar uma descarga liberadora, ele seria em pregado para evocar um processo de bloqueio ou contenção, a formação reativa.

ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. Verbete: Ab-reação. p. 3 e 4.



[1] Niilismo terapêutico: descrença na eficiência dos processos de cura, física ou psíquica.

[2] Franz Brentano (1838-1917), professor de filosofia alemão, orientou em 1873 uma tese de doutorado de Freud em filosofia, na qual o fundador da psicanálise defendia as ideias materialistas de Ludiwig Feuerbach (1804-1872). Em uma carta a Wilhelm Fliess de 2 de abril de 1896, Freud escreveu: “Nos meus anos de juventude, aspirei apenas aos conhecimentos filosóficos, e agora estou a ponto de realizar esse desejo, passando da medicina para a psicologia”. Freud acreditava, portanto, que a psicologia do inconsciente que ele estava criando pudesse ser algo equivalente ou semelhante a uma nova “filosofia”.

[3] De fato, Roudinesco supõe que por este ter sido o primeiro evento clínico em que ocorreu uma utilização da técnica psicanalítica, o caso princeps (primeiro), o instaurador da tradição, o tratamento realizado por Breuer com Anna O. terminou sendo vítima de uma atmosfera idealizada e mistificadora. Em seu Dicionário de Psicanálise, no verbete sobre Bertha Pappenheim (o verdadeiro nome de Anna O.), Roudinesco mostra evidências históricas de que o método catártico teve pouco destaque no tratamento que ocorreu entre 1880 e 1882, mais de uma década antes da redação de Estudos sobre a histeria (1895), livro que descreve o “caso Anna O.”, escrito em uma parceria entre Breuer e Freud. Em contraste com o que foi apresentado nesta obra, que lança os fundamentos de uma nova e eficiente prática terapêutica voltada para a histeria, Roudinesco apresenta indícios de que a melhora oferecida pelo incipiente método catártico à paciente de Breuer parece ter sido bastante tímida, diante do grave quadro sintomático apresentado na época pela jovem de 21 anos. Ao contrário do que se apreende no livro, Breuer teria utilizado a morfina como principal instrumento para combater os sintomas da doença, o que acabou gerando uma dependência química da jovem em relação a esta droga. Segundo mostra Roudinesco, a adicção foi superada nos anos subsequentes de forma gradativa. Em outro aspecto relevante, Roudinesco questiona a veracidade da suposta gravidez histérica de Pappenheim, afirmando que a interrupção brusca do tratamento foi provavelmente originada pelo interesse crescente de Breuer pela moça, o que gerou um mal-estar no casamento do médico.

[4] Vocabulário de Psicanálise: famoso dicionário sobre a teoria psicanalítica de Jean Laplanche e Jean-Bertrand Pontalis.

[5]arco reflexo é a resposta direta e imediata à excitação de um nervo, sem a vontade ou consciência daquele que foi estimulado. Por exemplo, o reflexo patelar, a leve pancada no joelho, muito utilizada em exames ortopédicos e neurológicos, ativa normalmente um movimento reflexo na perna.


        Bertha Poppenheim (...) se torna, após a Segunda Guerra Mundial, uma figura quase legendária, ao ponto da República Federal da Alemanha honrar sua memória através de um selo com sua efígie. Distinção muito merecida, já que é a ela, tanto quanto a Breuer, que se deve a descoberta do método catártico.

         A palavra catarse é tirada da tragédia grega: ela significa  purificação, purgação, e Aristóteles a utilizava para designar o efeito produzido no espectador pela tragédia. A tragédia purifica as paixões, permitindo ao espectador liberar-se ao experimentá-las sob o modo imaginativo. Ora, por volta dos anos 1880, nos salões e círculos intelectuais de Viena, as pessoas interessavam-se muito pela catarse aristotélica. É mais do que provável que um homem culto como era Breuer e uma jovem que não o era menos, conhecessem todas as discussões que apaixonavam o meio vienense.

         O que coube a Breuer foi ter renunciado à sugestão, e a Anna O., ter utilizado a liberdade que lhe era dada para, nos "estados de auto-hipnose", proceder ao que ela chamava de "cura pela palavra" ou sua "limpeza de chaminé". Assim, a propósito de cada sintoma, ao remontar a cadeia de associações, Anna O. terminava por encontrar as circunstâncias da primeira aparição do sintoma, e Breuer, para seu grande espanto, constatava que, tendo chegado assim ao ponto de partida, o sintoma desaparecia. O método catártico estava inventado. Faltava deduzir suas implicações teóricas.

         Breuer resume “sua” descoberta da seguinte maneira:

“Os sintomas histéricos desapareciam imediatamente e sem retorno, quando lográvamos trazer à luz a lembrança do acidente desencadeador, a despertar o afeto ligado a este último e quando, em seguida, o doente descrevia o que lhe tinha ocorrido de modo bastante detalhado e dando à sua emoção uma expressão verbal”.

TRILLAT, Etienne. História da histeria. São Paulo: Escuta, 1991. p. 230 e 231.


REAÇÃO E AB-REAGIR [REAKTION UND ABREAGIREN]

É enfatizado por Breuer e Freud que, para desenvolver-se o quadro de histeria, é preciso que tenham ocorrido experiências num tempo infantil, as quais influenciam o psiquismo atual da pessoa, mas que não fazem sentido para ela, pois não consegue ligar essas experiências anteriores ao seu atual quadro. (...) Porém (...) se o indivíduo consegue reagir adequadamente a um evento que inclui muita carga afetiva, não ocorre a separação entre representação e afeto. Nesse caso, a representação e o afeto a ela ligado permanecem formando um conjunto vinculado.

Consequentemente, eles passam a discutir sobre o termo “reação”, com o sentido de reflexo voluntário ou involuntário que permite a liberação do afeto traumático. A vingança pode ser exemplo de reação que elimina ou reduz o afeto. Se a reação é reprimida, o afeto permanece sem liberação, condição que está na gênese da neurose. Propõem que o uso da linguagem também ocupa o lugar da reação, constituindo um caminho adequado para a descarga do afeto.

Quando não pode haver reação a um trauma psíquico, este retém seu afeto original. Se, em consequência, o sujeito não consegue livrar-se do acréscimo de estímulo, o evento pode permanecer como um trauma psíquico. Um sistema psíquico sadio tem outros métodos de lidar com o afeto de um trauma psíquico, mesmo que não possa efetuar a reação motora e por palavras – por exemplo, elaborando-o associativamente e produzindo ideias contrastantes. Exemplificando: se uma pessoa é insultada, mesmo que não retribua o golpe nem retruque com grosserias, ela pode reduzir o afeto ligado ao insulto pela evocação de ideias contrastantes, como aquelas relativas a seu valor pessoal, à indignidade da pessoa que a insultou e outras soluções equivalentes. Uma pessoa sadia consegue, de algum modo que lhe é próprio, lidar com um insulto e assim obter que o afeto originalmente intenso em sua memória perca sua intensidade e, com o passar do tempo, seja esquecido.

Na eventualidade de não ter havido uma reação no momento do evento traumático, o afeto pode ser ab-reagido [reação em outro momento ou posteriormente, uma ab-reação]. Além disso, um evento que poderia tornar-se traumático tem seu impacto patogênico reduzido ou eliminado se o indivíduo consegue estabelecer novas associações que reduzam seu significado deletério. Isto significa que o afeto pode ligar-se a outras representações para formar novos conjuntos de representações e afetos.

As experiências relativas aos eventos traumáticos estão inteiramente ausentes da lembrança dos pacientes durante o estado psíquico normal, ou só se fazem presentes de forma sumária. Considerando essa condição, Breuer e Freud propõem, nessa época, que apenas quando o paciente é inquirido e consegue recordar um evento traumático essas lembranças podem emergir com a nitidez inalterada de um fato recente. Para obter essas recordações por meio da inquirição, os autores aplicavam a hipnose. Lembranças relacionadas a fatos traumáticos que não haviam sido ab-reagidas suficientemente eram recordadas mediante o uso da hipnose, desde que o paciente fosse inquirido de modo adequado. Surgiu a proposta de procedimento terapêutico sustentada na busca de uma ab-reação, possível quando a pessoa está no estado de hipnose.

Assim, eles reconhecem a importância da reação que evita ou dificulta a formação de um quadro histérico, mas também a importância de se ab-reagir como fator que permite eliminar o sintoma que se estabeleceu quando não foi possível a reação adequada durante o evento traumático.

A dificuldade em reagir abre o caminho para a formação do recalque, e a dificuldade de ab-reagir dificulta eliminar o conteúdo recalcado. Os motivos que impedem a reação são de dois tipos. No primeiro tipo, a natureza do trauma não comporta reação, como no caso de o sujeito haver perdido uma pessoa querida, ou em eventos em que a situação social impede a reação, ou porque o trauma se refere a algo que o sujeito se esforça para esquecer; nesses casos, ocorre o recalcamento das coisas aflitivas cujos afetos são insuportáveis. Já o segundo tipo decorre dos “estados psíquicos peculiares” atuantes nas experiências deletérias, como no susto, estados psíquicos positivamente anormais, estado crepuscular semi-hipnótico de devaneios e auto-hipnose.

Os dois motivos podem se sobrepor, mas também pode ocorrer que não esteja presente um estado psíquico peculiar e que seja o próprio trauma psíquico o fator causal [original] para a produção do estado psíquico anormal, condição essa que explica a impossibilidade da reação. Em ambos os casos, há evidências de que também não foi possível ao indivíduo chegar a uma compreensão [elaboração psíquica] do evento em suas associações com outros eventos. (...)

O MÉTODO CATÁRTICO [KATHARTISCHE METHODE]

         Fundados na discussão precedente, os autores postulam a invenção do que denominaram Método Catártico [Kathartische Methode]. Trata-se de um método clínico que pretende levar o paciente a entrar em contato com as lembranças “abandonadas” a partir de comandos que requerem a aplicação da hipnose. Desta forma, o sujeito conseguiria expor, pela palavra, os eventos traumáticos e, como etapa final, seria facilitado ao profissional de psicoterapia a aplicação de uma sugestão para induzir o paciente a deixar de manifestar o sintoma correspondente.

         O método é denominado catártico por referência ao termo catarse, que, do grego, traz a ideia de purgação, limpeza, e representa uma nova forma de utilizar os recursos da hipnose em prol do tratamento da histeria e outras neuroses. É constituído, basicamente, de três etapas, pela ordem: 1. hipnose; 2. fala; e 3. sugestão. Esclarecendo: 1. procedimento de hipnotizar o paciente; 2. então induzi-lo a falar sobre seus sintomas e eventos a eles associados; e 3. finalmente, formular sugestões ao paciente, com o propósito de eliminar sintomas (...). O método está sustentado no reconhecimento da existência de dois estados de consciência, sendo um deles de âmbito inconsciente, desconhecido ou minimamente reconhecido pelo estado de consciência normal. O conteúdo do estado inconsciente precisa ser reconhecido para que seus efeitos deletérios possam ser eliminados ou reduzidos. Nesse momento, o psiquismo poderia ser visto como sendo integrado por dois estados psíquicos.

RANDT, Juan Adolfo. A psicanálise de Freud explicada. São Paulo: Zagodoni Editora, 2017. p. 25, 26, 27 e 28.


CATARSE SEGUNDO FREUD E BREUER

 

O esmaecimento de uma lembrança ou a perda de seu afeto dependem de vários fatores. O mais importante destes é se houve uma reação energética ao fato capaz de provocar um afeto. Pelo termo “reação” compreendemos aqui toda a classe de reflexos voluntários e involuntários - das lágrimas aos atos de vingança - nos quais, como a experiência nos mostra, os afetos são descarregados. Quando essa reação ocorre em grau suficiente, grande parte do afeto desaparece como resultado. O uso da linguagem comprova esse fato de observação cotidiana com expressões como “desabafar pelo pranto” |“sich ausweinen”| e “desabafar através de um acesso de cólera” |“sich austoben”, literalmente “esvair-se em cólera”|. Quando a reação é reprimida, o afeto permanece vinculado à lembrança. Uma ofensa revidada, mesmo que apenas com palavras, é recordada de modo bem diferente de outra que teve que ser aceita. A linguagem também reconhece essa distinção, em suas consequências mentais e físicas; de maneira bem característica, ela descreve uma ofensa sofrida em silêncio como “uma mortificação” |“Kränkung”, literalmente, um “fazer adoecer”|. - A reação da pessoa insultada em relação ao trauma só exerce um efeito inteiramente “catártico” se for uma reação adequada - como, por exemplo, a vingança. Mas a linguagem serve de substituta para a ação; com sua ajuda, um afeto pode ser “ab-reagido” quase com a mesma eficácia. Em outros casos, o próprio falar é o reflexo adequado: quando, por exemplo, essa fala corresponde a um lamento ou é a enunciação de um segredo torturante, por exemplo, uma confissão. Quando não há uma reação desse tipo, seja em ações ou palavras, ou, nos casos mais benignos, por meio de lágrimas, qualquer lembrança do fato preserva sua tonalidade afetiva do início.

A “ab-reação”, contudo, não é o único método de lidar com a situação para uma pessoa normal que tenha experimentado um trauma psíquico. Uma lembrança desse trauma, mesmo que não tenha sido ab-reagida, penetra no grande complexo de associações, entra em confronto com outras experiências que possam contradizê-la, e está sujeita à retificação por outras representações. Depois de um acidente, por exemplo, a lembrança do perigo e a repetição (mitigada) do medo é associada à lembrança do que ocorreu depois - o socorro e a situação consciente da segurança atual. Da mesma forma, a lembrança de uma humilhação é corrigida quando a pessoa situa os fatos nos devidos lugares, considerando seu próprio valor etc. Desse modo, uma pessoa normal é capaz de provocar o desaparecimento do afeto concomitante por meio do processo de associação.

A isso devemos acrescentar a obliteração geral das impressões, o evanescimento das lembranças a que chamamos “esquecimento” e que desgasta as representações não mais afetivamente atuantes.

Nossas observações demonstraram, por outro lado, que as lembranças que se tornaram os determinantes de fenômenos histéricos persistem por longo tempo com surpreendente vigor e com todo o seu colorido afetivo. Devemos, contudo, mencionar outro fato notável do qual posteriormente poderemos tirar proveito, a saber, que essas lembranças, em contraste com outras de sua vida passada, não se acham à disposição do paciente. Pelo contrário, essas experiências estão inteiramente ausentes da lembrança dos pacientes quando em estado psíquico normal, ou só se fazem presentes de forma bastante sumária. Apenas quando o paciente é inquirido sob hipnose é que essas lembranças emergem com a nitidez inalterada de um fato recente.

Assim, durante nada menos de seis meses, uma de nossas pacientes reproduziu sob hipnose, com uma nitidez alucinatória, tudo o que a havia excitado no mesmo dia no ano anterior (durante um ataque de histeria aguda). Um diário mantido por sua mãe sem o conhecimento da paciente provou a inteireza da reprodução. Outra paciente, em parte sob hipnose e em parte durante ataques espontâneos, reviveu com clareza alucinatória todos os fatos de uma psicose histérica que experimentara dez anos antes e que havia esquecido, em sua maior parte, até o momento em que ela ressurgiu. Além disso, verificou-se que certas lembranças de importância etiológica que datavam dos quinze aos vinte e cinco anos estavam surpreendentemente intactas e possuíam uma intensidade sensorial notável, e que, ao retornarem, atuaram com toda a força afetiva das experiências novas.

Isso só pode ser explicado pelo fato de que essas lembranças constituem uma exceção em sua relação com todos os processos de desgaste que examinamos atrás. Em outras palavras: parece que essas lembranças correspondem a traumas que não foram suficientemente ab-reagidos; e se penetrarmos mais a fundo nos motivos que impediram isso, encontraremos pelo menos dois grupos de condições sob as quais a reação ao trauma deixa de ocorrer.

No primeiro grupo acham-se os casos em que os pacientes não reagiram a um trauma psíquico porque a natureza do trauma não comportava reação, como no caso da perda obviamente irreparável de um ente querido, ou porque as circunstâncias sociais impossibilitavam uma reação, ou porque se tratava de coisas que o paciente desejava esquecer, e portanto, recalcara intencionalmente do pensamento consciente, inibindo-as e suprimindo-as. São precisamente as coisas aflitivas dessa natureza que, sob hipnose, constatamos serem a base dos fenômenos histéricos (por exemplo, os delírios histéricos de santos e freiras, de mulheres que guardam a castidade e de crianças bem-educadas).

O segundo grupo de condições é determinado, não pelo conteúdo das lembranças, mas pelos estados psíquicos em que o paciente recebeu as experiências em questão, pois encontramos sob hipnose, dentre as causas dos sintomas histéricos, representações que em si mesmas não são importantes, mas cuja persistência se deve ao fato de que se originaram durante a prevalência de afetos gravemente paralisantes, tais como o susto, ou durante estados psíquicos positivamente anormais, como o estado crepuscular semi-hipnótico dos devaneios, a auto-hipnose, etc. Em tais casos, é a natureza dos estados que torna impossível uma reação ao acontecimento.

É claro que ambas as espécies de condições podem estar presentes ao mesmo tempo, e isso de fato ocorre com frequência. É o que acontece quando um trauma que é atuante por si mesmo ocorre enquanto predomina um afeto gravemente paralisante, ou durante um estado de alteração da consciência. Mas também parece ser verdade que em muitas pessoas um trauma psíquico produz um desses estados anormais, o que, por sua vez, torna a reação impossível.

Ambos os grupos de condições, porém, possuem em comum o fato de que os traumas psíquicos que não foram eliminados pela reação também não podem sê-lo pela elaboração por meio da associação. No primeiro grupo, o paciente está decidido a esquecer as experiências aflitivas e, por conseguinte, as exclui tanto quanto possível da associação; já no segundo grupo, a elaboração associativa deixa de ocorrer porque não existe nenhuma vinculação associativa abrangente entre o estado normal da consciência e os estados patológicos em que as representações surgiram. Logo teremos ocasião de nos aprofundarmos nesse assunto.

Assim, pode-se dizer que as representações que se tornaram patológicas persistiram com tal nitidez e intensidade afetiva porque lhes foram negados os processos normais de desgaste por meio da ab-reação e da reprodução em estados de associação não inibida.

BREUER, Josef. e FREUD, Sigmund. Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira. vol. II. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 44 a 47.



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