CATARSE
Método
catártico: o chamado método “catártico” é uma técnica de tratamento dos
distúrbios psíquicos desenvolvida por Josef Breuer com sua paciente Anna O. em
1881-1882. Tratava-se de, sob hipnose, fazer a paciente reencontrar a lembrança
de uma cena traumatizante na origem do sintoma de que ele a queria libertar, e
“purgar” assim da reminiscência patogênica. O seu qualificativo é inspirado
pelo efeito de “purgação (catharsis) das paixões” que as representações
teatrais de Atenas produziam nos seus espectadores, segundo Aristóteles.
A leitura do caso mostra seu
progressivo aperfeiçoamento. No início, Breuer limitava-se a tirar proveito dos
estados de auto-hipnose em que a sua paciente se colocava para a incitar a
exprimir o que, sem seus períodos vígeis, ela preferia calar. Mais tarde, Anna
O. passou a inventar descrições de fatos a partir de uma palavra ouvida e, uma
vez terminado o relato, ela despertava tranquilizada. Após a morte de seu pai,
esses relatos evocaram os medos e as alucinações que a dominavam ao longo do
dia. Sem nenhuma intenção etiológica, necessitavam da escuta do médico e
apresentavam um efeito catártico ligado ao estado emocional que os acompanhava.
Anna O. deu a essa parte do tratamento “o nome apropriado de talking cure
[cura pela palavra] e o nome humorístico de chimney sweeping [limpeza de
chaminé]. Breuer começou então a utilizar de modo sistemático a técnica de uma
palavra indutora.
Foi provavelmente em agosto de 1881 que
o método adquiriu sua forma definitiva, quando Anna O., tendo recusado se
dessedentar apesar do calor que fazia, reencontrou a lembrança da repugnância
que tinha sentido ao surpreender o cão de uma governanta bebendo água no seu
copo. Após descrever a cena, ela pediu água e “o sintoma nunca mais voltou a
manifestar-se”. Outros exemplos vieram provar a Breuer que “nessa doente os
sintomas desapareciam sempre que os incidentes que os haviam provocado eram
reproduzidos”, e que uma utilização sistemática dessa “narração depurativa” ia
permitir tratar, um após outros, todos esses sintomas mórbidos. Para acelerar o
processo, ele contraiu o hábito de a hipnotizar, o que não vinha sendo
sistematicamente feito até então.
Freud e Breuer completarão a noção de
catarse com a de “ab-reação”: uma certa quantidade de afetos ligados à
lembrança do acontecimento patogênico traumatizante não pôde ser evacuada pelas
vias físicas ou orgânicas normais, conforme exigido pelo “princípio da
constância”, e viu-se acuada (eingeklemment) e desviada para o somático,
situado na origem do sintoma patológico.
Cansado dos maus resultados e da
monotonia das sugestões, Freud parece estar decidido a empregar em 1889, por
ocasião do caso de Emmy von N., o “método catártico” de J. Breuer. Mas os seus
fracassos na obtenção do “sono”, incitam-no em 1892 a abandonar a hipnose, à
qual a sua paciente Elisabeth von R. se mostrou refratária. Ele pede-lhe que se
deite, de olhos fechados, mas permite-lhe que se mova, que abra os olhos, que
se sente, e experimenta com ela a “técnica de concentração”: “Adotei o
procedimento de colocar uma mão sobre a fronte da doente ou de tomar sua cabeça
entre as minhas mãos e dizer-lhe: ‘a pressão da minha mão despertará em você a
lembrança procurada. No momento em que eu afastar as mãos e a pressão cessar,
você verá algo ou uma ideia surgirá em sua cabeça. Retenha-a bem, porque isso
será o que procuramos. Bem, agora diga-me o que viu ou o que foi que lhe
ocorreu ao espírito’.” Esse procedimento, acrescenta Freud, “quase nunca me
decepcionou”, a ponto de adquirir uma tal confiança que, quando um paciente
dizia não ter visto nem lhe ocorrido nada, ele respondia rotundamente ser isso
impossível e que se tratava de uma forma que o paciente tinha de evitar que “a
informação lhe fosse extorquida”.
O método de Breuer transformou-se
assim, pouco a pouco, numa “análise psíquica”, a qual prefigura a
“psicanálise”, palavra que só aparecerá quatro anos mais tarde, e cuja
elaboração ocorrerá progressivamente até 1909, data em que Freud empreende, de
acordo com um novo método, a análise do “Homem dos Ratos”.
A tese de Freud segundo a qual o
traumatismo na origem do deslocamento da energia para o soma é sempre de
natureza sexual causará o seu rompimento com Breuer mas determinará todo o
futuro da psicanálise. O mesmo ocorreu com a sua explicação para as
dificuldades opostas pelos pacientes no decorrer do tratamento por uma defesa
contra a reminiscência patogênica, uma “resistência”, e com a sua compreensão
para a “transferência” do brusco término do tratamento de Anna O, ou para o
episódio no decorrer do qual uma paciente, ao despertar, tinha lançado os
braços ao seu pescoço para o abraçar.
Purgação catártica e ab-reação, se os
seus efeitos são sempre observáveis no decorrer de uma cura psicanalítica, já
não constituem mais uma meta do tratamento, como em 1895. Permanecem, em
compensação, no primeiro plano de várias técnicas psicoterapêuticas, como, por
exemplo, o “grito primal” ou certas práticas de “psicodrama”.
MIJOLLA,
Alain (Org.) Dicionário Internacional da Psicanálise. Vol. A-L. Rio
de Janeiro: Imago, 2005. Verbete “Método Catártico”. p. 311 e 312.
Ab-reação: Descarga emocional pela qual um
sujeito se liberta do afeto ligado à recordação de um acontecimento traumático,
permitindo assim que ele não se torne ou não continue sendo patogênico. A
ab-reação, que pode ser provocada no decorrer da psicoterapia, principalmente
sob hipnose, e produzir então um efeito de catarse, também pode surgir de modo
espontâneo, separada do traumatismo inicial por um intervalo mais ou menos
longo.
A noção de ab-reação não pode ser
compreendida sem nos referirmos à teoria de Freud sobre a gênese do sintoma
histérico, tal como ele a expôs em Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos
histéricos (Über den psychischen Mechanismus hysterischer Phänomene,
1893). A persistência do afeto que se liga a uma recordação depende de diversos
fatores, e o mais importante deles está ligado ao modo como o sujeito reagiu a
um determinado acontecimento. Esta reação pode ser constituída por
reflexos voluntários ou involuntários, pode ir das lágrimas à vingança. Se tal
reação for suficientemente importante, grande parte do afeto ligado ao
acontecimento desaparecerá. Se essa reação for reprimida (unterdrückt),
o afeto se conservará ligado à recordação.
A ab-reação é assim o caminho normal que
permite ao sujeito reagir a um acontecimento e evitar que ele conserve um quantum
de afeto demasiado importante. No entanto, é preciso que essa reação seja
“adequada” para que possa ter um efeito catártico.
A ab-reação pode ser espontânea, isto é,
seguir-se ao acontecimento com um intervalo tão curto que impeça que a sua
recordação se carregue de um afeto demasiado importante para se tornar
patogênico. Ou então a ab-reação pode ser secundária, provocada pela
psicoterapia catártica, que permite ao doente rememorar e objetivar pela
palavra o acontecimento traumático, e libertar-se assim do quantum de
afeto que o tornava patogênico. Freud, efetivamente, nota já em 1895: “É na
linguagem que o homem acha um substituto para o ato, substituto graças ao qual
o afeto pode ser ab-reagido quase da mesma maneira.”
Uma ab-reação total não é a única maneira
pela qual o sujeito pode se desembaraçar da recordação de um acontecimento
traumático: a recordação pode ser integrada numa série associativa que permita
a correção do acontecimento, que o faça voltar ao seu lugar. Já em Estudos
sobre a histeria (Studien über Hysterie, 1895) Freud descreve, às
vezes, como um processo de ab-reação um verdadeiro trabalho de rememoração e de
elaboração psíquica, em que o mesmo afeto se acha reavivado correlativamente à
recordação dos diferentes acontecimentos que o suscitaram.
A ausência de ab-reação tem como efeito
deixar subsistir no estado inconsciente e isolados do curso normal do
pensamento grupos de representações que estão na origem dos sintomas
neuróticos: “As representações que se tomaram patogênicas conservam a sua atividade
porque não são submetidas ao desgaste normal pela ab-reação e porque a sua
reprodução nos estados associativos livres é impossível.”
Breuer e Freud procuram distinguir as
diferentes espécies de condições que não permitem ao sujeito ab-reagir. Umas
estariam ligadas não à natureza do acontecimento, mas ao estado psíquico que
este encontra no sujeito: pavor, auto-hipnose, estado hipnoide; outras estão
ligadas a circunstâncias, geralmente de natureza social, que obrigam o sujeito
a reter as suas reações. Finalmente, pode tratar-se de um acontecimento que
"... o doente quis esquecer e que recalcou, inibiu, reprimiu
intencionalmente fora do seu pensamento consciente”. Estas três espécies de
condições definem os três tipos de histeria: histeria hipnoide, histeria de
retenção e histeria de defesa. Sabe-se que Freud, logo após a publicação de Estudos
sobre a histeria, irá manter apenas esta última forma.
Enfatizar exclusivamente a ab-reação na
eficácia da psicoterapia é antes de mais nada uma característica do período
chamado do “método catártico”. No entanto, a noção continua presente na teoria
do tratamento psicanalítico, por razões de fato (presença em qualquer
tratamento, em diversos graus conforme os tipos de doentes, de manifestações de
descarga emocional) e por razões de direito, na medida em que qualquer teoria
do tratamento leva em consideração não apenas a rememoração, mas a repetição.
Noções como as de transferência, perlaboração, atuação, implicam uma referência
à teoria da ab-reação, ao mesmo tempo que conduzem a concepções do tratamento
mais complexas do que as da pura e simples liquidação do afeto traumatizante.
LAPLANCHE
e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise.
São Paulo: Martins Fontes, 2016. Verbete: Ab-reação. p. 1 e 2.
Método catártico: método de psicoterapia
em que o efeito terapêutico visado é uma “purgação” (catharsis), uma
descarga adequada dos afetos patogênicos. O tratamento permite ao sujeito
evocar e até reviver os acontecimentos traumáticos a que esses afetos estão
ligados, e ab-reagi-los.
Historicamente, o “método catártico” pertence
ao período (1880- 1895) em que a terapia psicanalítica se definia
progressivamente a partir de tratamentos efetuados sob hipnose.
Catharsis
é um termo grego que significa purificação, purgação. Foi utilizado por
Aristóteles para designar o efeito produzido no espectador pela tragédia: “A
tragédia é a imitação de uma ação virtuosa que aconteceu e que, por meio do
temor e da piedade, suscita a purificação de certas paixões.”
Breuer, e depois Freud, retomaram esse
termo, que exprime para eles o efeito esperado de uma ab-reação adequada do
traumatismo. Sabe-se efetivamente que, segundo a teoria desenvolvida em Estudos
sobre a histeria (Studien über Hysterie, 1895), os afetos que não
conseguiram encontrar o caminho para a descarga ficam presos (eingeklemmt),
exercendo então efeitos patogênicos. Resumindo mais tarde a teoria da catarse,
Freud escreveria: “Supunha-se que o sintoma histérico surgia quando a energia
de um processo psíquico não podia chegar à elaboração consciente e era dirigida
para a inervação corporal (conversão) [...]. A cura era obtida pela liberação
do afeto desviado, e a sua descarga por vias normais (ab-reação).”
No seu início, o método catártico estava
estreitamente ligado à hipnose. Mas o hipnotismo logo deixou de ser utilizado
por Freud como processo destinado a provocar diretamente a supressão do sintoma
através da sugestão de que o sintoma não existe. Passou a ser utilizado para
induzir a rememoração reintroduzindo no campo de consciência experiências
subjacentes aos sintomas, mas esquecidas, “recalcadas” pelo sujeito. Essas
recordações evocadas e mesmo revividas com uma intensidade dramática fornecem
ao sujeito ocasião de exprimir, de descarregar os afetos que, originariamente
ligados à experiência traumatizante, tinham sido de início reprimidos.
Freud renunciou rapidamente à hipnose
propriamente dita, substituindo-a pela simples sugestão (auxiliada por um
artifício técnico: uma pressão com a mão na testa do paciente), destinada a
convencer o doente de que iria reencontrar a recordação patogênica. Por fim,
deixou de recorrer à sugestão, fiando-se simplesmente nas associações livres do
doente. Aparentemente, a finalidade do tratamento (curar o doente dos seus
sintomas restabelecendo o caminho normal de descarga dos afetos) manteve-se a
mesma no decorrer dessa evolução dos processos técnicos. Mas, de fato, como
atesta o capítulo de Freud “Psicoterapia da histeria” (Estudos sobre a
histeria), essa evolução técnica é paralela a uma mudança de perspectiva na
teoria do tratamento: levar em consideração as resistências, a transferência,
enfatizar cada vez mais a eficácia da elaboração psíquica e da perlaboração.
Nesta medida, o efeito catártico ligado à ab-reação deixa de ser a mola
principal do tratamento.
A catarse nem por isso deixa de ser uma
das dimensões de toda a psicoterapia analítica. Por um lado, de modo variável
segundo as estruturas psicopatológicas, encontra-se em numerosos tratamentos
uma intensa revivescência de certas lembranças acompanhada de uma descarga
emocional mais ou menos tempestuosa; por outro lado, seria fácil mostrar que o
efeito catártico se encontra nas diversas modalidades da repetição ao longo do
tratamento, e singularmente na atualização transferencial. Do mesmo modo, a
perlaboração e a simbolização pela linguagem já estavam prefiguradas no valor
catártico que Breuer e Freud reconheciam à expressão verbal: “... é na
linguagem que o homem encontra um substituto para o ato, substituto graças ao
qual o afeto pode ser ab-reagido quase da mesma maneira. Em outros casos, é a
própria palavra que constitui o reflexo adequado, sob a forma de queixa ou como
expressão de um segredo pesado (confissão!).”
Além dos efeitos catárticos que se
encontram em toda psicanálise, convém assinalar que existem certos tipos de
psicoterapia que visam antes de mais nada a catarse: a narcoanálise, utilizada
sobretudo nos casos de neurose traumática, provoca, por meios medicamentosos,
efeitos próximos dos que Breuer e Freud obtinham por hipnose. O psicodrama,
segundo Moreno, é definido como uma liberação dos conflitos interiores por meio
da representação dramática.
LAPLANCHE
e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise.
São Paulo: Martins Fontes, 2016.Verbete: Método Catártico. p. 60, 61 e 62.
Catarse: palavra grega utilizada por
Aristóteles para designar o processo de purgação ou eliminação das paixões que
se produz no espectador quando, no teatro, ele assiste à representação de uma
tragédia. O termo foi retomado por Sigmund Freud e Josef Breuer, que, nos Estudos
sobre a histeria, chamam de método catártico o procedimento terapêutico
pelo qual um sujeito consegue eliminar seus afetos patogênicos e então
ab-reagi-los, revivendo os acontecimentos traumáticos a que eles estão ligados.
Fazia séculos que a noção de catarse era
objeto de uma discussão interminável, tanto no campo da estética quanto no da
filosofia. Em 1857, Jacob Bernays (1824-1881), tio de Martha Bernays, futura
mulher de Sigmund Freud, publicou um livro de medicina sobre o assunto.
Opondo-se a Lessing (1729-1781), que dera ao termo uma interpretação moral,
fazendo da catarse um “expurgo” ou uma “purificação”, Bernays sublinhou que
Aristóteles, filho de médico, havia-se inspirado no corpus hipocrático.
Daí a ideia de que o tratamento devia fazer surgir o elemento opressivo, para
provocar um alívio, em vez de fazê-lo regredir através de uma transformação
ética do sujeito. Tratava-se de fazer com que saísse do sujeito, através da
fala, um segredo patogênico, consciente ou inconsciente, que o deixava em
estado de alienação.
Entre 1857 e 1880, foi publicado sobre
essa ideia um número considerável de trabalhos em língua alemã, inspirados no
de Bernays. Em Viena, onde grassava o niilismo terapêutico[1], as teses de Bernays foram
submetidas a diversos exames críticos, e foi na esteira dessa grande onda da
catarse que Josef Breuer e Sigmund Freud, ambos marcados pelo ensino
aristotélico de Franz Brentano[2], recorreram a essa ideia.
Esta surgiu em sua pena pela primeira vez
em 1893, juntamente com a de ab-reação, na “Comunicação preliminar” que, dois
anos depois, serviria de capítulo inaugural para os Estudos sobre a histeria:
“A reação do sujeito que sofre algum prejuízo só tem um efeito realmente
‘catártico’ quando é de fato adequada, como na vingança. Mas o ser humano
encontra na linguagem um equivalente do ato, equivalente graças ao qual o afeto
pode ser ‘ab-reagido’ mais ou menos da mesma maneira.”
Como sublinhou Albrecht Hirschmüller em
1978, fazia muito tempo que os dois autores empregavam esse termo. No entanto,
foi a Breuer que coube a invenção do método. Freud o utilizou, por sua vez, no
tratamento de Emmy von N. (Fanny Moser).
Na França, também Pierre Janet tinha
inventado, mais ou menos na mesma época, um método muito próximo desse -
recordação de uma lembrança e ab-reação -, ao qual dera o nome de dissociação
verbal ou desinfecção moral. Assim, ele reivindicou uma prioridade para sua
invenção. Foi por isso que, para evitar uma disputa pela prioridade entre Paris
e Viena, Breuer, instigado por Freud, apresentou o caso Anna O. (Bertha
Pappenheim) como sendo o protótipo de um tratamento catártico. Os trabalhos da
historiografia acadêmica, inaugurados por Henri F. Ellenberger e prosseguidos
por Hirschmüller, permitiram que se restabelecesse a verdade a respeito desse
caso princeps[3].
Além dessa querela de prioridade, existe
uma diferença radical entre o procedimento de Janet e o de Breuer. Ainda que,
em ambos os casos, o médico interrogue o paciente sob hipnose para ganhar
acesso às representações inconscientes, Janet procede por sugestão, sem
investigar o evento inicial que responde pelo efeito patogênico, ao passo que
Breuer, ao contrário, procura o elemento original para ligá-lo aos afetos e
provocar a ab-reação. Do ponto de vista teórico, portanto, são poucas as
semelhanças existentes entre os dois métodos.
Na história da psicanálise, o método
catártico deriva do campo do hipnotismo. Foi ao se desligar progressivamente da
prática da hipnose, entre 1880 e 1895, que Freud passou pela catarse, para
inventar o método psicanalítico propriamente dito, baseado na associação livre,
ou seja, na fala e na linguagem.
ROUDINESCO,
Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. Verbete:
Catarse. p. 107 e 108.
Ab-reação: termo introduzido por Sigmund
Freud e Josef Breuer em 1893, para definir um processo de descarga emocional
que, liberando o afeto ligado à lembrança de um trauma, anula seus efeitos
patogênicos.
O termo ab-reação aparece pela primeira
vez na “Comunicação preliminar” de Josef Breuer e Sigmund Freud,
dedicada ao estudo do mecanismo psíquico atuante nos fenômenos histéricos.
Nesse texto pioneiro, os autores anunciam
desde logo o sentido de seu procedimento: conseguir, tomando como ponto de
partida as formas de que os sintomas se revestem, identificar o acontecimento
que, a princípio e amiúde num passado distante, provocou o fenômeno histérico.
O estabelecimento dessa gênese esbarra em diversos obstáculos oriundos do
paciente, aos quais Freud posteriormente chamaria de resistências, e que
somente o recurso à hipnose permite superar.
Na maioria das vezes, o sujeito afetado
por um acontecimento reage a ele, voluntariamente ou não, de modo reflexo:
assim, o afeto ligado ao acontecimento é evacuado, por menos que essa reação
seja suficientemente intensa. Nos casos em que a reação não ocorre ou não é
forte o bastante, o afeto permanece ligado à lembrança do acontecimento
traumático, e é essa lembrança - e não o evento em si - que é o agente dos
distúrbios histéricos. Breuer e Freud são muito precisos a esse respeito: “...
é sobretudo de reminiscências que sofre o histérico.” Encontramos a mesma
precisão no que concerne à adequação da reação do sujeito: quer ela seja
imediata, voluntária ou não, quer seja adiada e provocada no âmbito de uma
psicoterapia, sob a forma de rememorações e associações, ela tem que manter uma
relação de intensidade ou proporção com o acontecimento incitador para surtir
um efeito catártico, isto é, liberador. É o caso da vingança como resposta a
uma ofensa, a qual, não sendo proporcional ou ajustada à ofensa, deixa aberta a
ferida ocasionada por esta.
Desde essa época, Breuer e Freud sublinham
como é importante que o ato possa ser substituído pela linguagem, “graças à
qual o afeto pode ser ab-reagido quase da mesma maneira”. Eles acrescentam que,
em alguns casos de queixa ou confissão, somente as palavras constituem “o
reflexo adequado”.
Se o termo ab-reação permanece ligado ao
trabalho com Breuer e à utilização do método catártico, nem por isso a
instauração do método psicanalítico e o emprego, em 1896, do termo
“psico-análise” significam o desaparecimento do termo “ab-reação”, e isso por
duas razões, como deixam claro os autores do Vocabulário da psicanálise[4]: uma razão factual, de um
lado, na medida em que, seja qual for o método, a análise continua sendo,
sobretudo para alguns pacientes, um lugar de fortes reações emocionais; e uma
teórica, de outro, uma vez que a conceituação da análise recorre à rememoração
e à repetição, formas paralelas de ab-reação.
Por que Breuer e Freud empregaram essa
palavra, que este último não renegaria ao evocar o método catártico em sua
autobiografia?
Como neologismo, o termo ab-reação
compõe-se do prefixo alemão ab- e da palavra reação, constituída, por
sua vez, do prefixo re e da palavra ação. A primeira razão dessa
duplicação parece ser o cuidado dos autores de repelir o caráter excessivamente
genérico da palavra reação. Além disso, porém, a palavra remete ao procedimento
da fisiologia do século XIX, em cujo seio ela funciona como sinônima de
reflexo, termo pelo qual se designa o elemento de uma relação que tem a forma
de um arco linear - o arco reflexo[5] - que relaciona, termo a
termo, um estímulo pontual e uma resposta muscular. Essa referência constituía
para Freud, nos anos de 1892-1895, uma espécie de garantia de cientificidade,
consoante com sua esperança de inscrever a abordagem dos fenômenos histéricos
numa continuidade com a fisiologia dos mecanismos cerebrais. Como sublinhou
Jean Starobinski em 1994, a referência ao modelo do arco reflexo sobreviveria à
utilização dessa palavra, já que Freud se refere explicitamente a ela em seu
texto sobre o destino das pulsões, onde distingue as excitações externas, que
provocam respostas no estilo do arco reflexo, das excitações internas, cujos
efeitos são da ordem de uma reação.
Mais tarde, Freud utilizaria o termo
reação num sentido radicalmente diferente: em vez de designar uma descarga
liberadora, ele seria em pregado para evocar um processo de bloqueio ou
contenção, a formação reativa.
ROUDINESCO,
Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. Verbete:
Ab-reação. p. 3 e 4.
[1]
Niilismo terapêutico: descrença na eficiência dos processos de cura, física ou
psíquica.
[2]
Franz Brentano (1838-1917), professor de filosofia alemão, orientou em 1873 uma
tese de doutorado de Freud em filosofia, na qual o fundador da psicanálise
defendia as ideias materialistas de Ludiwig Feuerbach (1804-1872). Em uma carta
a Wilhelm Fliess de 2 de abril de 1896, Freud escreveu: “Nos meus anos de
juventude, aspirei apenas aos conhecimentos filosóficos, e agora estou a ponto
de realizar esse desejo, passando da medicina para a psicologia”. Freud
acreditava, portanto, que a psicologia do inconsciente que ele estava criando
pudesse ser algo equivalente ou semelhante a uma nova “filosofia”.
[3]
De fato, Roudinesco supõe que por este ter sido o primeiro evento clínico em
que ocorreu uma utilização da técnica psicanalítica, o caso princeps (primeiro),
o instaurador da tradição, o tratamento realizado por Breuer com Anna O.
terminou sendo vítima de uma atmosfera idealizada e mistificadora. Em seu Dicionário
de Psicanálise, no verbete sobre Bertha Pappenheim (o verdadeiro nome de
Anna O.), Roudinesco mostra evidências históricas de que o método catártico teve
pouco destaque no tratamento que ocorreu entre 1880 e 1882, mais de uma década
antes da redação de Estudos sobre a histeria (1895), livro que descreve
o “caso Anna O.”, escrito em uma parceria entre Breuer e Freud. Em contraste
com o que foi apresentado nesta obra, que lança os fundamentos de uma nova e
eficiente prática terapêutica voltada para a histeria, Roudinesco apresenta
indícios de que a melhora oferecida pelo incipiente método catártico à paciente
de Breuer parece ter sido bastante tímida, diante do grave quadro sintomático
apresentado na época pela jovem de 21 anos. Ao contrário do que se apreende no
livro, Breuer teria utilizado a morfina como principal instrumento para
combater os sintomas da doença, o que acabou gerando uma dependência química da
jovem em relação a esta droga. Segundo mostra Roudinesco, a adicção foi superada
nos anos subsequentes de forma gradativa. Em outro aspecto relevante,
Roudinesco questiona a veracidade da suposta gravidez histérica de Pappenheim,
afirmando que a interrupção brusca do tratamento foi provavelmente originada pelo
interesse crescente de Breuer pela moça, o que gerou um mal-estar no casamento
do médico.
[4]
Vocabulário de Psicanálise: famoso dicionário sobre a teoria
psicanalítica de Jean Laplanche e Jean-Bertrand Pontalis.
[5]
O arco reflexo é a resposta direta e imediata à excitação de
um nervo, sem a vontade ou consciência daquele que foi estimulado. Por exemplo,
o reflexo patelar, a leve pancada no joelho, muito utilizada em exames
ortopédicos e neurológicos, ativa normalmente um movimento reflexo na perna.
Bertha Poppenheim (...)
se torna, após a Segunda Guerra Mundial, uma figura quase legendária, ao ponto
da República Federal da Alemanha honrar sua memória através de um selo com sua
efígie. Distinção muito merecida, já que é a ela, tanto quanto a Breuer, que se
deve a descoberta do método catártico.
A palavra catarse é tirada da tragédia grega: ela
significa purificação, purgação, e
Aristóteles a utilizava para designar o efeito produzido no espectador pela
tragédia. A tragédia purifica as paixões, permitindo ao espectador liberar-se
ao experimentá-las sob o modo imaginativo. Ora, por volta dos anos 1880, nos
salões e círculos intelectuais de Viena, as pessoas interessavam-se muito pela
catarse aristotélica. É mais do que provável que um homem culto como era Breuer
e uma jovem que não o era menos, conhecessem todas as discussões que
apaixonavam o meio vienense.
O que coube a Breuer foi ter renunciado à sugestão, e a Anna
O., ter utilizado a liberdade que lhe era dada para, nos "estados de
auto-hipnose", proceder ao que ela chamava de "cura pela
palavra" ou sua "limpeza de chaminé". Assim, a propósito de cada
sintoma, ao remontar a cadeia de associações, Anna O. terminava por encontrar
as circunstâncias da primeira aparição do sintoma, e Breuer, para seu grande
espanto, constatava que, tendo chegado assim ao ponto de partida, o sintoma
desaparecia. O método catártico estava inventado. Faltava deduzir suas
implicações teóricas.
Breuer resume “sua” descoberta da seguinte maneira:
“Os sintomas histéricos
desapareciam imediatamente e sem retorno, quando lográvamos trazer à luz a
lembrança do acidente desencadeador, a despertar o afeto ligado a este último e
quando, em seguida, o doente descrevia o que lhe tinha ocorrido de modo bastante
detalhado e dando à sua emoção uma expressão verbal”.
TRILLAT,
Etienne. História da histeria. São
Paulo: Escuta, 1991. p.
230 e 231.
REAÇÃO
E AB-REAGIR [REAKTION UND ABREAGIREN]
É enfatizado por Breuer e Freud que, para
desenvolver-se o quadro de histeria, é preciso que tenham ocorrido experiências
num tempo infantil, as quais influenciam o psiquismo atual da pessoa, mas que
não fazem sentido para ela, pois não consegue ligar essas experiências
anteriores ao seu atual quadro. (...) Porém (...) se o indivíduo consegue
reagir adequadamente a um evento que inclui muita carga afetiva, não ocorre a
separação entre representação e afeto. Nesse caso, a representação e o afeto a
ela ligado permanecem formando um conjunto vinculado.
Consequentemente, eles passam a discutir
sobre o termo “reação”, com o sentido de reflexo voluntário ou involuntário que
permite a liberação do afeto traumático. A vingança pode ser exemplo de reação
que elimina ou reduz o afeto. Se a reação é reprimida, o afeto permanece sem
liberação, condição que está na gênese da neurose. Propõem que o uso da
linguagem também ocupa o lugar da reação, constituindo um caminho adequado para
a descarga do afeto.
Quando não pode haver reação a um trauma
psíquico, este retém seu afeto original. Se, em consequência, o sujeito não
consegue livrar-se do acréscimo de estímulo, o evento pode permanecer como um
trauma psíquico. Um sistema psíquico sadio tem outros métodos de lidar com o
afeto de um trauma psíquico, mesmo que não possa efetuar a reação motora e por
palavras – por exemplo, elaborando-o associativamente e produzindo ideias
contrastantes. Exemplificando: se uma pessoa é insultada, mesmo que não
retribua o golpe nem retruque com grosserias, ela pode reduzir o afeto ligado
ao insulto pela evocação de ideias contrastantes, como aquelas relativas a seu
valor pessoal, à indignidade da pessoa que a insultou e outras soluções
equivalentes. Uma pessoa sadia consegue, de algum modo que lhe é próprio, lidar
com um insulto e assim obter que o afeto originalmente intenso em sua memória
perca sua intensidade e, com o passar do tempo, seja esquecido.
Na eventualidade de não ter havido uma
reação no momento do evento traumático, o afeto pode ser ab-reagido [reação em
outro momento ou posteriormente, uma ab-reação]. Além disso, um evento
que poderia tornar-se traumático tem seu impacto patogênico reduzido ou
eliminado se o indivíduo consegue estabelecer novas associações que reduzam seu
significado deletério. Isto significa que o afeto pode ligar-se a outras representações
para formar novos conjuntos de representações e afetos.
As experiências relativas aos eventos
traumáticos estão inteiramente ausentes da lembrança dos pacientes durante o
estado psíquico normal, ou só se fazem presentes de forma sumária. Considerando
essa condição, Breuer e Freud propõem, nessa época, que apenas quando o
paciente é inquirido e consegue recordar um evento traumático essas lembranças
podem emergir com a nitidez inalterada de um fato recente. Para obter essas
recordações por meio da inquirição, os autores aplicavam a hipnose. Lembranças
relacionadas a fatos traumáticos que não haviam sido ab-reagidas
suficientemente eram recordadas mediante o uso da hipnose, desde que o paciente
fosse inquirido de modo adequado. Surgiu a proposta de procedimento terapêutico
sustentada na busca de uma ab-reação, possível quando a pessoa está no estado
de hipnose.
Assim, eles reconhecem a importância da
reação que evita ou dificulta a formação de um quadro histérico, mas também a
importância de se ab-reagir como fator que permite eliminar o sintoma que se
estabeleceu quando não foi possível a reação adequada durante o evento
traumático.
A dificuldade em reagir abre o caminho
para a formação do recalque, e a dificuldade de ab-reagir dificulta eliminar o
conteúdo recalcado. Os motivos que impedem a reação são de dois tipos. No
primeiro tipo, a natureza do trauma não comporta reação, como no caso de o
sujeito haver perdido uma pessoa querida, ou em eventos em que a situação
social impede a reação, ou porque o trauma se refere a algo que o sujeito se
esforça para esquecer; nesses casos, ocorre o recalcamento das coisas aflitivas
cujos afetos são insuportáveis. Já o segundo tipo decorre dos “estados
psíquicos peculiares” atuantes nas experiências deletérias, como no susto,
estados psíquicos positivamente anormais, estado crepuscular semi-hipnótico de
devaneios e auto-hipnose.
Os dois motivos podem se sobrepor, mas
também pode ocorrer que não esteja presente um estado psíquico peculiar e que
seja o próprio trauma psíquico o fator causal [original] para a produção do
estado psíquico anormal, condição essa que explica a impossibilidade da reação.
Em ambos os casos, há evidências de que também não foi possível ao indivíduo
chegar a uma compreensão [elaboração psíquica] do evento em suas associações
com outros eventos. (...)
O
MÉTODO CATÁRTICO [KATHARTISCHE METHODE]
Fundados na discussão precedente, os
autores postulam a invenção do que denominaram Método Catártico [Kathartische
Methode]. Trata-se de um método clínico que pretende levar o paciente a
entrar em contato com as lembranças “abandonadas” a partir de comandos que
requerem a aplicação da hipnose. Desta forma, o sujeito conseguiria expor, pela
palavra, os eventos traumáticos e, como etapa final, seria facilitado ao
profissional de psicoterapia a aplicação de uma sugestão para induzir o
paciente a deixar de manifestar o sintoma correspondente.
O método é denominado catártico por
referência ao termo catarse, que, do grego, traz a ideia de purgação, limpeza,
e representa uma nova forma de utilizar os recursos da hipnose em prol do
tratamento da histeria e outras neuroses. É constituído, basicamente, de três
etapas, pela ordem: 1. hipnose; 2. fala; e 3. sugestão. Esclarecendo: 1.
procedimento de hipnotizar o paciente; 2. então induzi-lo a falar sobre seus
sintomas e eventos a eles associados; e 3. finalmente, formular sugestões ao
paciente, com o propósito de eliminar sintomas (...). O método está sustentado
no reconhecimento da existência de dois estados de consciência, sendo um deles
de âmbito inconsciente, desconhecido ou minimamente reconhecido pelo estado de
consciência normal. O conteúdo do estado inconsciente precisa ser reconhecido
para que seus efeitos deletérios possam ser eliminados ou reduzidos. Nesse
momento, o psiquismo poderia ser visto como sendo integrado por dois estados
psíquicos.
RANDT, Juan Adolfo. A
psicanálise de Freud explicada. São Paulo: Zagodoni Editora, 2017. p. 25,
26, 27 e 28.
CATARSE SEGUNDO FREUD E BREUER
O esmaecimento de uma lembrança ou a perda de seu afeto dependem de
vários fatores. O mais importante destes é se houve uma reação energética ao
fato capaz de provocar um afeto. Pelo termo “reação” compreendemos aqui
toda a classe de reflexos voluntários e involuntários - das lágrimas aos atos
de vingança - nos quais, como a experiência nos mostra, os afetos são
descarregados. Quando essa reação ocorre em grau suficiente, grande parte do
afeto desaparece como resultado. O uso da linguagem comprova esse fato de
observação cotidiana com expressões como “desabafar pelo pranto” |“sich
ausweinen”| e “desabafar através de um acesso de cólera” |“sich austoben”,
literalmente “esvair-se em cólera”|. Quando a reação é reprimida, o afeto
permanece vinculado à lembrança. Uma ofensa revidada, mesmo que apenas com
palavras, é recordada de modo bem diferente de outra que teve que ser aceita. A
linguagem também reconhece essa distinção, em suas consequências mentais e
físicas; de maneira bem característica, ela descreve uma ofensa sofrida em
silêncio como “uma mortificação” |“Kränkung”, literalmente, um “fazer
adoecer”|. - A reação da pessoa insultada em relação ao trauma só exerce um
efeito inteiramente “catártico” se for uma reação adequada - como, por
exemplo, a vingança. Mas a linguagem serve de substituta para a ação; com sua
ajuda, um afeto pode ser “ab-reagido” quase com a mesma eficácia. Em outros
casos, o próprio falar é o reflexo adequado: quando, por exemplo, essa fala
corresponde a um lamento ou é a enunciação de um segredo torturante, por
exemplo, uma confissão. Quando não há uma reação desse tipo, seja em ações ou
palavras, ou, nos casos mais benignos, por meio de lágrimas, qualquer lembrança
do fato preserva sua tonalidade afetiva do início.
A “ab-reação”, contudo, não é o único método de lidar com a situação
para uma pessoa normal que tenha experimentado um trauma psíquico. Uma
lembrança desse trauma, mesmo que não tenha sido ab-reagida, penetra no grande
complexo de associações, entra em confronto com outras experiências que possam
contradizê-la, e está sujeita à retificação por outras representações. Depois
de um acidente, por exemplo, a lembrança do perigo e a repetição (mitigada) do
medo é associada à lembrança do que ocorreu depois - o socorro e a situação
consciente da segurança atual. Da mesma forma, a lembrança de uma humilhação é
corrigida quando a pessoa situa os fatos nos devidos lugares, considerando seu
próprio valor etc. Desse modo, uma pessoa normal é capaz de provocar o
desaparecimento do afeto concomitante por meio do processo de associação.
A isso devemos acrescentar a obliteração geral das impressões, o
evanescimento das lembranças a que chamamos “esquecimento” e que desgasta as
representações não mais afetivamente atuantes.
Nossas observações demonstraram, por outro lado, que as lembranças que
se tornaram os determinantes de fenômenos histéricos persistem por longo tempo
com surpreendente vigor e com todo o seu colorido afetivo. Devemos, contudo,
mencionar outro fato notável do qual posteriormente poderemos tirar proveito, a
saber, que essas lembranças, em contraste com outras de sua vida passada, não
se acham à disposição do paciente. Pelo contrário, essas experiências estão
inteiramente ausentes da lembrança dos pacientes quando em estado psíquico
normal, ou só se fazem presentes de forma bastante sumária. Apenas quando o
paciente é inquirido sob hipnose é que essas lembranças emergem com a nitidez
inalterada de um fato recente.
Assim, durante nada menos de seis meses, uma de nossas pacientes
reproduziu sob hipnose, com uma nitidez alucinatória, tudo o que a havia
excitado no mesmo dia no ano anterior (durante um ataque de histeria aguda). Um
diário mantido por sua mãe sem o conhecimento da paciente provou a inteireza da
reprodução. Outra paciente, em parte sob hipnose e em parte durante ataques
espontâneos, reviveu com clareza alucinatória todos os fatos de uma psicose
histérica que experimentara dez anos antes e que havia esquecido, em sua maior
parte, até o momento em que ela ressurgiu. Além disso, verificou-se que certas
lembranças de importância etiológica que datavam dos quinze aos vinte e cinco
anos estavam surpreendentemente intactas e possuíam uma intensidade sensorial
notável, e que, ao retornarem, atuaram com toda a força afetiva das
experiências novas.
Isso só pode ser explicado pelo fato de que essas lembranças constituem
uma exceção em sua relação com todos os processos de desgaste que examinamos
atrás. Em outras palavras: parece que essas lembranças correspondem a
traumas que não foram suficientemente ab-reagidos; e se penetrarmos mais a
fundo nos motivos que impediram isso, encontraremos pelo menos dois grupos de
condições sob as quais a reação ao trauma deixa de ocorrer.
No primeiro grupo acham-se os casos em que os pacientes não reagiram a
um trauma psíquico porque a natureza do trauma não comportava reação, como no
caso da perda obviamente irreparável de um ente querido, ou porque as
circunstâncias sociais impossibilitavam uma reação, ou porque se tratava de
coisas que o paciente desejava esquecer, e portanto, recalcara intencionalmente
do pensamento consciente, inibindo-as e suprimindo-as. São precisamente as
coisas aflitivas dessa natureza que, sob hipnose, constatamos serem a base dos
fenômenos histéricos (por exemplo, os delírios histéricos de santos e freiras,
de mulheres que guardam a castidade e de crianças bem-educadas).
O segundo grupo de condições é determinado, não pelo conteúdo das
lembranças, mas pelos estados psíquicos em que o paciente recebeu as
experiências em questão, pois encontramos sob hipnose, dentre as causas dos
sintomas histéricos, representações que em si mesmas não são importantes, mas
cuja persistência se deve ao fato de que se originaram durante a prevalência de
afetos gravemente paralisantes, tais como o susto, ou durante estados psíquicos
positivamente anormais, como o estado crepuscular semi-hipnótico dos devaneios,
a auto-hipnose, etc. Em tais casos, é a natureza dos estados que torna
impossível uma reação ao acontecimento.
É claro que ambas as espécies de condições podem estar presentes ao
mesmo tempo, e isso de fato ocorre com frequência. É o que acontece quando um
trauma que é atuante por si mesmo ocorre enquanto predomina um afeto gravemente
paralisante, ou durante um estado de alteração da consciência. Mas também
parece ser verdade que em muitas pessoas um trauma psíquico produz um
desses estados anormais, o que, por sua vez, torna a reação impossível.
Ambos os grupos de condições, porém, possuem em comum o fato de que os
traumas psíquicos que não foram eliminados pela reação também não podem sê-lo
pela elaboração por meio da associação. No primeiro grupo, o paciente está
decidido a esquecer as experiências aflitivas e, por conseguinte, as exclui
tanto quanto possível da associação; já no segundo grupo, a elaboração
associativa deixa de ocorrer porque não existe nenhuma vinculação associativa
abrangente entre o estado normal da consciência e os estados patológicos em que
as representações surgiram. Logo teremos ocasião de nos aprofundarmos nesse
assunto.
Assim, pode-se dizer que as representações que
se tornaram patológicas persistiram com tal nitidez e intensidade afetiva
porque lhes foram negados os processos normais de desgaste por meio da
ab-reação e da reprodução em estados de associação não inibida.
BREUER, Josef. e FREUD, Sigmund. Sobre o mecanismo psíquico dos
fenômenos histéricos: comunicação preliminar. Obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira. vol. II. Rio de Janeiro:
Imago, 1996. p. 44 a 47.
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