TRANSFERÊNCIA
Talvez
se possa dizer que a teoria da psicanálise é uma tentativa de explicar dois
fatos surpreendentes e inesperados que se observam sempre que se tenta remontar
os sintomas de um neurótico a suas fontes no passado: a transferência e a
resistência. Qualquer linha de investigação que reconheça esses dois fatos e os
tome como ponto de partida de seu trabalho tem o direito de chamar-se
psicanálise, mesmo que chegue a resultados diferentes dos meus. Mas quem quer
que aborde outros aspectos do problema, evitando essas duas hipóteses,
dificilmente poderá escapar à acusação de apropriação indébita por tentativa de
imitação, se insistir em chamar-se a si próprio de psicanalista.[1]
FREUD, Sigmund.
A
história do movimento psicanalítico. Obras completas
vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 26.
A transferência é um conceito fundamental da psicanálise.
Juntamente com a investigação dos conteúdos inconscientes, foi a percepção da
existência e do funcionamento da transferência, seu manejo e interpretação e,
finalmente, sua dissolução que confeririam à psicanálise um tratamento
psicológico diferenciado das outras terapias.
As primeiras noções sobre o mecanismo da transferência foram
introduzidas por Sigmund Freud em 1895, e tinham uma conotação negativa. Em Estudos
sobre a histeria, a transferência (do paciente) foi retratada por Freud
como uma “falsa ligação”, um simples “deslocamento de afetos”, um “tipo de
resistência” que se colocava como um “obstáculo ao tratamento”. Nessa época,
seu então parceiro Josef Breuer não pôde suportar a transferência erótica de
uma paciente (Anna O.) e acabou por abandoná-la.
Tal noção da transferência foi se modificando
paulatinamente. Se, no início, a transferência se revelou como um obstáculo
incômodo ao tratamento, passou a ser estudada por Freud e, em seguida,
utilizada como um instrumento do trabalho analítico.
Em 1905, Freud atribuiu o fracasso do tratamento de uma
paciente (caso Dora) ao insuficiente trabalho de administração da
transferência. Nessa ocasião, percebeu também a forte influência da própria
transferência – a qual chamaria posteriormente de contratransferência – no
desenrolar do tratamento.
Em 1914, no artigo Recordar, repetir, elaborar, Freud
nomeou neurose de transferência – que designa não apenas a transferência
espontânea dos neuróticos, mas também aquela que deveria ser estimulada pelo
analista, e que consiste em substituir a neurose comum por uma neurose de
transferência na qual o paciente repete com ele, analista, seus conflitos
infantis.
Em 1915, em Observações sobre amor transferencial,
Freud discriminou dois tipos de transferência: a positiva e a negativa.
Em suas Conferências introdutórias sobre a psicanálise
(1916), ele afirmou que os psicóticos não respondiam ao tratamento
psicanalítico por não serem capazes de estabelecer a neurose de transferência
com o analista. Posteriormente, ao lado de sua filha Anna Freud, considerou
também as crianças pequenas incapazes de realizar a transferência, sendo,
portanto, contraindicadas para o tratamento psicanalítico.
A ideia da inanalisabilidade de crianças da primeira
infância e de psicóticos foi questionada principalmente por Melanie Klein, que
argumentava que tanto as crianças como os psicóticos estabeleciam
transferência. Klein, apoiada em seu conceito sobre fantasia inconsciente,
relacionou-o à transferência e entendeu que, ao brincar, as crianças não apenas
encenavam suas experiências atuais, mas também suas fantasias e conflitos
inconscientes, que eram naturalmente transferidos para o analista.
As observações e experiências freudianas sobre a
transferência foram ganhando corpo, até que, afirmando que “a análise é a
análise da transferência”, ele fez dela o eixo central em torno do qual se
acomodaria todo o tratamento psicanalítico, e cuja elucidação seria
fundamental.
Portanto, juntamente com a investigação dos fenômenos do
inconsciente, a compreensão e a análise das diversas modalidades de
transferência (e gostaríamos de acrescentar, da contratransferência), sua
interpretação ou manejo e sua discriminação e elucidação, esses são os
principais fatores que diferenciam a psicanálise das outras psicoterapias.
Em 1909, Ferenczi fez uma observação importante sobre a
universalidade do fenômeno transferencial. Ressaltou que a transferência é um
fenômeno presente em todos os relacionamentos e não se limita apenas à relação
analista-paciente. Mais ainda, ele percebeu que estabelecemos relações
transferenciais com todos os objetos do nosso universo, como, por exemplo,
objetos inanimados, animais, pessoas, teorias, instituições etc. Ele disse:
“Mas,
à medida que nos familiarizamos cada vez mais com o psiquismo do neurótico,
constatamos que essa tendência para a transferência por parte dos
psiconeuróticos não se manifesta apenas no âmbito de uma psicanálise, nem
unicamente em relação ao médico; muito mais do que isso, a transferência
apresenta-se como um mecanismo psíquico característico da neurose geral, que se
manifesta em todas as circunstâncias da vida, e abrange a maior parte das
manifestações mórbidas”[2].
Mas, afinal, como Ferenczi definiu o fenômeno transferencial
na psicanálise? Nesse mesmo artigo, ele escreveu:
“O que são as
transferências? São reedições de tendências e de fantasias que a progressão da
análise desperta e deve tornar conscientes, e que se caracterizam pela
substituição de pessoas outrora importantes pela pessoa do médico”[3].
Várias modalidades de transferência foram sendo descobertas
ao longo do tempo. As transferências podem variar de modos diferentes em função
de: a) seu colorido emocional (amorosa, hostil ou erótica); b) tipos de imago
projetadas (paterna, materna, fraterna etc.); c) padrões psíquicos relativos ao
tipo de estrutura ou organização psíquica do sujeito (psicótico, neurótico, borderline,
perverso etc.); d) tipos de mecanismos psicodinâmicos constatados em função do
momento emocional do paciente (idealizada, persecutória, especular, maciça,
parcial, total, através de identificações projetivas, alucinatória etc.
Intuitivamente, em especial no trato com os pacientes
borderline, Ferenczi começou a perceber a importância de se diferenciar o
momento de interpretar uma transferência ou quando apenas manejá-la.
Mais tarde, Balint e, posteriormente, Winnicott viriam, de
modo mais sistemático, a definir critérios para o uso das interpretações
transferenciais na clínica, na medida em que, em certas situações, a
interpretação pode ser sentida pelo paciente como destituída de sentido,
intrusiva, excessiva ou tóxica.
KAHTUNI, Haydée
Christinne e SANCHES, Gisela Paraná. Dicionário sobre o pensamento de Sándor
Ferenczi: uma contribuição à clínica psicanalítica contemporânea. Rio de
Janeiro: Elsevier; São Paulo: FAPESP; 2009. p. 393, 394 e 395.
O termo “transferência” designa a transposição, o
deslocamento para uma outra pessoa – e principalmente para o psicanalista – de
sentimentos, desejos, modalidades relacionais outrora organizados ou
experimentados em relação a personagens muito investidas da história do
sujeito. O termo alemão Übertragung significa literalmente “transporte”,
mas sua tradução por “transferência” está hoje consagrada pelo uso. Aparece
pela primeira vez nos Estudos sobre a histeria (1895) e depois adquirirá
pouco a pouco um valor mais preciso à medida que a compreensão do tratamento
psicanalítico e de seus parâmetros se desenvolverem. Ele reúne hoje o conjunto
de fenômenos transferenciais observáveis no decorrer de uma análise e que se
isolam sob denominações mais restritivas, tais como amor de transferência,
relação transferencial, neurose de transferência, transferência narcísica,
transferência negativa etc. (...)
A experiência da psicanálise leva à constatação de que
fenômenos de transferência ocorrem de forma natural na vida de toda e qualquer
pessoa, em especial na vida amorosa, mas essas “transferências” selvagens
organizam relações novas cujo destino será muito diferente do que está em jogo
durante um tratamento psicanalítico. Segundo a expressão de Freud, a
psicanálise não cria a transferência, “mas a descobre para a consciência e dela
se apodera para dirigir os processos psíquicos de acordo com o objetivo desejado”
(Sobre psicanálise, 1910). No sentido estrito do termo, a transferência
é, portanto, o que se observa durante o próprio tratamento psicanalítico, do
qual constitui a condição essencial. Um sujeito que fosse incapaz de toda forma
de transferência não poderia entabular uma psicanálise.
A transferência foi inicialmente considerada por Freud, nos Estudos
sobre a histeria, de acordo com o modelo da relação hipnótica, em sua
dimensão relacional, afetiva, amorosa. Como no caso da sugestão hipnótica, é
uma condição da cura no método catártico: “Para esses pacientes, é quase
inevitável que as relações pessoais com o médico assumam, pelo menos durante um
certo tempo, uma importância capital. Chega até a parecer que essa influência
exercida pelo médico seria a própria condição para a solução do problema” (Estudos
sobre a histeria, 1895). Ulteriormente, Freud aproximará por diversas vezes
sugestão e transferência, tornando-se está última a condição para a ocorrência
da primeira. Simultaneamente, ele vinculará a intensidade da relação com o
médico à “aliança desigual” entre uma recordação do passado do paciente e a
situação terapêutica: o conteúdo que surge no Consciente sem ser acompanhado da
recordação das circunstâncias capazes de situar esse desejo no passado. O
desejo acha-se ligado à pessoa do médico, que “passou evidentemente para o
primeiro plano das preocupações do doente”. “Nessa mésalliance
(casamento inadequado, frequentemente porque um dos cônjuges é de condição
inferior) – à qual dou o nome de falsa relação – o afeto que entra em jogo é
idêntico àquele que tinha outrora incitado a minha paciente a rechaçar um
desejo proibido. Desde que me dei conta disso, eu posso, toda vez que a minha
pessoa se encontra assim envolvida, postular a existência de uma transferência
e de uma falsa relação” (Estudos sobre a histeria, 1895).
A transferência designa, pois, ao mesmo tempo, a relação de
natureza amorosa que o paciente assume em relação ao analista, mas também a
transposição de uma relação antiga para a pessoa do médico. Freud, a partir
dessa constatação, vai perceber que esse aspecto da transferência se organiza
como uma nova doença e pode dizer respeito a relações muito antigas. Em Fragmentos
da análise de um caso de histeria (Dora) (1905), ele escreveu, por exemplo:
“Mas a produtividade da neurose não está extinta, em absoluto; ela se exerce
criando estados psíquicos particulares, inconscientes em sua maior parte, aos
quais se pode dar o nome de transferências.”
A noção de “neurose de transferência” vai assim se
individualizar pouco a pouco. “Mesmo no caso em que o paciente se limita
simplesmente a respeitar as regras necessárias da análise, conseguimos
certamente conferir a todos os sintomas mórbidos uma nova significação de
transferência e substituir sua neurose ordinária por uma neurose de
transferência, da qual o trabalho terapêutico o vai curar. A transferência cria
assim um domínio intermediário entre a doença e a vida real, domínio através do
qual se efetua a passagem de uma para outra. O estado recém-inaugurado adquiriu
todos os aspectos de uma doença artificial inteiramente acessível às nossas
intervenções” (Recordar, repetir e elaborar,
1914).
A repetição na transferência vai aparecer como o meio para o
paciente se recordar de atitudes psíquicas esquecidas, inconscientes: “Essa
parte da vida afetiva de que ele não pode mais se lembrar, o doente a revive,
portanto, na relação com o médico” (Recordar, repetir e elaborar, 1914).
Motor da cura, a transferência (...) é também a necessária
condição prévia para que as interpretações sejam aceitas pelo paciente. “Quando
é o momento de lhe revelar o sentido oculto de suas ideias? (...) Não antes que
uma transferência segura, uma relação favorável, tenham sido estabelecidas no
paciente. O primeiro objetivo da análise é ligar o analisado ao tratamento e à
pessoa do terapeuta. Para que isso ocorra, deixamos agir o tempo” (A técnica
psicanalítica, 1913). (...) É a energia dos afetos transferenciais quem
fornece a força necessária para o levantamento das resistências.
Mas a transferência também aparece como responsável pelas
resistências mais fortes: “É a transferência que opõe ao tratamento a mais
forte das resistências, enquanto por outro lado, ela deve ser considerada o
próprio agente da ação curativa e do bem-sucedido desfecho.” (Sobre a
dinâmica da transferência, 1912). Com efeito, pode-se organizar um conluio
entre resistência e transferência quando a transferência serve às resistências
ou uma “deformação pela transferência” é utilizada para mascarar um elemento conflitual.
A análise da transferência passa então a ter um papel de destaque e a
constituir o próprio âmago da análise e a caracterizá-la: “A parte decisiva do
trabalho consiste, partindo da atitude a respeito do médico, partindo da
‘transferência’, em criar novas edições de antigos conflitos, de maneira que o
doente se comporte tal qual se havia comportado em face desses últimos, mas
empregando agora todas as suas forças psíquicas disponíveis para chegar a uma
solução diferente. A transferência torna-se assim o campo de batalha no qual
devem se enfrentar todas as forças em luta” (Lições de introdução à
psicanálise, 1916-17).
Freud descreveu duas vertentes da transferência: uma é a
transferência positiva, que reúne todos os aspectos de afeição e de confiança
na pessoa do médico e é indispensável ao bom desenrolar do tratamento; a outra
reúne os investimentos hostis ou um excesso de investimento que corre o risco
de culminar numa ruptura: é a “transferência negativa”. (...)
O caráter amoroso [erótico] da transferência pode constituir
um obstáculo para o tratamento quando “a lógica da sopa e os argumentos dos
croquetes” substituem o investimento dos processos mentais com o analista;
Freud, apreensivo e inquieto com as experiências de Ferenczi, advertiu contra
toda forma de satisfação direta dada ao paciente, sob pena de encontrar na
situação do eclesiástico que foi à residência de um corretor de seguro
agonizante para o converter in extremis e saiu segurado sem o ter
convertido.
MIJOLLA, Alain de. Dicionário internacional de psicanálise. Vol. 2. Verbete Transferência. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. 1894, 1895 e 1896.
A
transferência repousa no coração da psicanálise e foi uma das descobertas mais
fundamentais e profundamente criativas de Freud. É um poderoso conceito, que
fala à essência do inconsciente - o passado escondido no presente - e fala de
continuidade - o presente em continuum com o passado.
E. A. Schwaber, The
Transference in Psychotherapy.
O
primeiro colaborador de Freud foi Joseph Breuer, um neurologista que na época
estava tratando uma jovem chamada Bertha Pappenheim. No relato de Breuer e
Freud publicado sobre o caso, seu pseudônimo era Ana O. Bertha era uma mulher
jovem, muito atraente e inteligente, que sofria de uma série de sintomas
aflitivos, incluindo uma rígida paralisia de um braço, uma grave tosse nervosa,
aversão a beber líquidos, períodos de alucinações perturbadoras e problemas de
fala. De fato, por algum tempo, essa nativa da língua alemã só conseguia falar
inglês. Seus sintomas apareceram quando seu pai, que ela adorava, ficara
doente, à beira da morte. Ela devotara todo o seu tempo e energia para cuidar
dele, até que seus próprios sintomas se tornaram tão intensos que ela fora
forçada a parar.
Breuer
considerava o caso fascinante. Ele o descreveu, assim como ao tratamento, para
Freud, continuando a informá-lo à medida que a terapia progredia. Breuer se
encontrava com Bertha quase todos os dias, muitas vezes no quarto dela. O
tratamento que eles desenvolveram em conjunto consistia do seguinte: Breuer a
hipnotizava e então a sugestionava a falar, começando com palavras que ele a
ouvira murmurar em estados de alucinação e prosseguindo até ela expressar
livremente quaisquer pensamentos que lhe viessem à mente. Ela chamava isso de
"limpeza de chaminé". Enquanto ouvia a descrição que Breuer fazia
dessa mulher inteligente e interessante, Freud começou a perceber que ele
estava no mínimo tão fascinado por ela quanto pelo caso.
Certo
dia, Bertha disse a Breuer que estava grávida dele. Não havia dúvida, na mente
de Freud, de que o relacionamento entre os dois tinha sido impecavelmente
ético. De fato, ele compartilhava a convicção de Breuer de que ela era virgem.
A gravidez acabou se revelando puro fruto da imaginação de Bertha. A reação de
Breuer foi interromper o tratamento e deixar a cidade, em uma segunda lua de
mel com a esposa.
À
medida que ponderava sobre essa reviravolta no tratamento de Bertha, Freud
percebeu que não havia nada de extraordinário no fato de uma mulher sedutora e
um homem bonito se atraírem mutuamente. O que lhe parecia extraordinário era
Bertha ter se convencido de que estava grávida e prestes a parir um bebê de
Breuer.
O
relacionamento que Breuer e Bertha estabeleceram havia estimulado profundos
sentimentos e anseios em ambos, sentimentos e anseios dos quais eles não
estavam totalmente cientes. Essa foi para Freud a primeira insinuação de que um
relacionamento terapêutico podia gerar uma notável excitação nas pessoas
envolvidas, que era, em parte, talvez na maior parte, inconsciente. Ele também
compreendeu que o paciente às vezes vê o terapeuta e o relacionamento entre
eles através de uma lente distorcida por forças inconscientes. Mais tarde,
Freud passou a se interessar pelas excitações e distorções que podem ocorrer
com o terapeuta, mas, de início, sua atenção estava focada no paciente.
À
medida que refletia sobre esses fenômenos em seus pacientes e nos de seus
colegas, Freud chegou à conclusão de que havia duas forças inconscientes em
ação. A primeira, ele chamou de poder contínuo do modelo. Com isso, ele queria
dizer que os nossos primeiros relacionamentos formam modelos em nossas mentes,
dentro dos quais tentamos encaixar todos os relacionamentos subsequentes. Se
meu pai era para mim severo e crítico, em algum recanto da mente terei a
expectativa de que todos os homens mais velhos em posição de autoridade se
comportarão dessa forma. Se a influência do modelo for suficientemente forte e
penetrante, posso ter a expectativa de que todos os homens, talvez todas as
pessoas, se comportarão assim. Da mesma forma, se meu pai era para mim uma pessoa
estimulante e protetora, terei a expectativa de encontrar esses atributos em
autoridades masculinas mais velhas com as quais me deparar ao longo do caminho.
A
segunda força inconsciente já é nossa conhecida: a compulsão à repetição,
aquela necessidade estranha e muito comum de repetir antigas situações
traumáticas ou antigos relacionamentos traumáticos. Quando o paciente começa a
terapia, talvez o modelo que recebeu do pai faça com que ele veja o terapeuta
como alguém severo e crítico. Então, a compulsão à repetição pode levá-lo a
querer confirmar essa expectativa, atuando de modo calculado para irritar o
terapeuta. Como essas atitudes e expectativas são "transferidas" dos
pais para o terapeuta, Freud chamou essa tendência dos pacientes em terapia de
"transferência". Este acabou se provando um dos seus insights
mais extraordinários.
A
importância desse insight não depende exclusivamente do seu valor para o
terapeuta. Freud logo percebeu que, assim com temos tendência a repetir velhas
situações, as nossas expectativas persistentes não ocorrem apenas na situação
terapêutica, mas em todo lugar, em todos os nossos relacionamentos. Mais
adiante (...) examinaremos essa onipresença do fenômeno da transferência, como
ela funciona tanto fora quanto no interior da terapia, como fornece a todos nós
uma notável ferramenta para aprofundarmos a compreensão de nós mesmos, e como
ilumina a continua vitalidade da teoria psicodinâmica.
Freud
observou que a transferência podia assumir uma variedade de formas. Por
exemplo, o paciente podia ver o terapeuta como o pai crítico, a mãe
estimuladora ou um irmão com quem competisse.
Minha
cliente, Beverly, suspeitava constantemente de mim. Ela não confiava em que eu
honraria os compromissos; não acreditava nas minhas garantias de
confidencialidade; duvidou de mim quando eu disse que podia compreender um
sentimento que relatara. Todo terapeuta tem de conquistar a confiança de cada
cliente, mas essa situação parecia extrema. Aos poucos, compreendi como essa
suspeita estava sendo transferida para mim a partir daquela num primeiro
momento estimulada por um pai notadamente indigno de confiança. Ele prometia
que a levaria para passear e então voltava atrás. Revelava diante dos seus
amigos assuntos que ela considerava confidências familiares. Prometera que
pagaria sua educação superior e tinha quebrado a promessa flagrantemente.
Freud
chegou à conclusão de que existiam três categorias de transferência:
-
a transferência positiva, na qual os sentimentos do paciente pelo
terapeuta são basicamente de afeição e de confiança;
-
a transferência negativa, consistindo basicamente de hostilidade e de
suspeita;
-
a transferência erótica não neutralizada, na qual o paciente sente um
insistente desejo de intimidade sexual com o analista.
Freud
considerava a transferência positiva “sem objeções”. Era o que permitia que o
trabalho terapêutico fosse feito, proporcionando ao paciente confiança no
terapeuta e um sentimento de apoio ao longo dos trechos árduos e dolorosos da
jornada. Freud aconselhou o terapeuta a não fazer nada com transferência
positiva. Sinta-se grato por tê-la, disse. Ela viabiliza o trabalho. Quando
contei à minha segunda analista que a amava, ela permaneceu em silêncio.
Naquele tempo, isso era considerado boa técnica; seguia a prescrição de Freud
de deixar a transferência positiva em paz.
A
transferência negativa é outra história. Ela tem de ser interpretada, Freud
disse, ou a hostilidade e a suspeita do paciente os tornarão impossível a
realização do trabalho. Quando eu disse ao meu primeiro analista que achava que
ele era um tolo incompetente, ele sugeriu que eu, inconscientemente, tinha
muita raiva do meu pai. Conquanto tenha soado sem jeito, isso também era
considerado boa técnica, embora, como veremos em breve, os analistas modernos
certamente respondessem a isso de modo muito diferente.
Freud
avisou que a transferência erótica poderia trazer sérios problemas para o
terapeuta e para o paciente. Não é incomum que os pacientes tenham consciência
de sentimentos eróticos pelo analista. Em geral, são meramente um aspecto
moderado da transferência positiva e não apresentam dificuldades. Como ocorre
com a transferência negativa, eles eram classicamente interpretados como não
tendo a ver “realmente” com o analista, mas com as figuras parentais. No
entanto, se sentimentos eróticos fossem muito insistentes, e se a interpretação
não conseguisse convertê-los em material para uma exploração analítica
proveitosa, a análise deveria ser interrompida no mesmo momento. De fato, o
paciente diz: "Não estou mais interessado na análise; desejo apenas ter um
contato físico íntimo com você." Freud acreditava que se esses sentimentos
persistissem, apesar dos melhores esforços do analista para convertê-los em
material analisável, não havia nada a fazer, a não ser encaminhar o paciente a
outro terapeuta.
De
acordo com a teoria freudiana, todos os sentimentos positivos seriam expressões
da energia libidinosa, assim como todos os sentimentos negativos seriam
expressões da energia destrutiva. Uma das tarefas com que o ego se depara é
"neutralizar" essa energia bruta, para que ela seja produtiva e
socialmente aceitável. A neutralização se refere à conversão da libido bruta em
emoções, tais como afeição, respeito e amor sensível. A neutralização da
energia negativa significa sua conversão em impulsos proveitosos, tais como
competição, assertividade e hostilidade bem-humorada. Uma das bases
psicológicas para uma vida bem-sucedida é uma neutralização adequada. Uma
transferência erótica tão insistente a ponto de destruir a análise é a
expressão insuficientemente neutralizada da mesma energia que cria a
transferência positiva sem objeções.
Freud
inicialmente percebia o fenômeno da transferência como uma interferência no
verdadeiro trabalho analítico de desvelar sentimentos e fantasias
inconscientes. Ele se via como um arqueólogo da mente, cujo trabalho consistia
em escavar cuidadosamente as memórias encobertas e tornar conscientes os
sentimentos e as memórias anteriormente inconscientes que causavam problemas ao
paciente. Qualquer transferência que não fosse inteiramente positiva e
facilitasse a cooperação era entendida por ele como uma perturbação e uma
obstrução. Entretanto, relativamente no início do desenvolvimento da técnica
psicanalítica, ele começou a considerar toda transferência como uma aliada, uma
aliada incômoda, certamente, mas indispensável.
Freud
precisava desse aliado, por causa da frustração de suas esperanças iniciais de
que o inconsciente podia se tornar prontamente consciente, curando desse modo o
paciente. Ele achava que podia alcançar esse objetivo descobrindo a memória ou
o desejo específico que estava na raiz do problema, e simplesmente
comunicando-o ao paciente. Para seu desapontamento, ele logo descobriu que isso
não bastava, que um simples insight das esferas inconscientes da mente
podia de fato ser necessário para a cura, mas certamente não era o suficiente.
Com frequência, comunicar ao paciente esse insight não causava qualquer
modificação no comportamento ou no grau de seu sofrimento. Às vezes, ocorria
uma mudança encorajadora no paciente, que se provaria transitória e
desanimadora. Freud estava descobrindo que era possível o paciente
"saber" intelectualmente alguma coisa, sem conhecê-la a fundo. Minha
analista me explicou que eu estava sempre esperando punição na minha vida
adulta, porque inconscientemente me sentia culpado pelos meus pecados infantis
imaginários. Parecia convincente; entretanto, pouco mudou na minha vida. Embora
ela tenha tornado a conexão consciente, isso pelo visto causou pouco efeito na
parcela inconsciente da minha mente.
Desde
que Freud fez essa frustrante descoberta, a história da psicoterapia - de toda
psicoterapia, não apenas da psicanálise - pode ser vista como uma tentativa
após outra de descobrir o que tem de ser adicionado ao insight para se
efetuar a cura. Os analistas se referem a esse algo-que-tem-de-ser-adicionado
como um “manejo emocional”, o que significa fazer com que os insights
ocupem um local na mente do paciente onde possam ser utilizados. Freud tinha
inicialmente a esperança de que o modo de fazer isso era acumular evidências,
mostrando ao paciente ocorrência após ocorrência do impacto das fantasias
inconscientes. Por isso, a psicanálise levava tanto tempo. Na minha análise,
aprendi a multiplicidade dos meios através dos quais essa fantasia da minha
pecabilidade me afetava. Ela afetava meu trabalho; meu relacionamento com minha
namorada; e minhas relações com os professores, com os colegas da faculdade,
com meu senhorio e com o mecânico do carro. Comecei a pensar que, quando a
psicanálise dava certo, era porque o sintoma tinha sido perfurado até a morte.
A
primeira descoberta importante de Freud sobre o relacionamento entre o médico e
o paciente fora feita quando ele vira o quanto a natureza desse relacionamento
podia bloquear ou facilitar o progresso do tratamento. Os dentistas e os
cirurgiões provavelmente não precisam se preocupar com os sentimentos que você
tem a respeito deles. Se você se mantém quieto ou mantém a boca aberta, eles
podem fazer seu trabalho, quer você goste deles ou não. Freud havia descoberto
o quão dramaticamente isso não era verdadeiro, quando se tratava do
relacionamento psicoterápico. Então, ele fez a segunda descoberta importante
sobre esse relacionamento. Compreendeu que, por mais inoportuna que fosse, a
transferência lhe fornecia a mais poderosa ferramenta para efetuar o manejo
[das emoções]. Observou que a transferência podia se tornar tão intensa a ponto
de produzir o que ele chamou de "neurose de transferência", que
significava que os problemas mais significativos do paciente se manifestariam
no relacionamento com o analista.
Alice
era uma paciente perspicaz que logo reconheceu, em nosso longo percurso
terapêutico, que havia um significativo trabalho por fazer em relação à
resolução de seu complexo de Édipo. Ela falou abertamente da perplexidade
infantil a respeito da natureza dos contatos afetuosos que seu pai mantinha com
ela, sabendo que a faziam se sentir desconfortável, mas sem saber ao certo por
quê. Em sua vida adulta, ela com frequência se sentira atraída por homens que a
desejavam principalmente por razões de ordem sexual. Alice e eu trabalhamos
longa e arduamente na sua fixação edipiana e nas repetições que esta engendrava
em sua vida adulta. Ela entendia tanto uma coisa quanto outra nos mínimos
detalhes; no entanto, continuava a seguir o mesmo padrão. De tempos em tempos,
eu lhe perguntava como se sentia em relação a mim e como imaginava que eu me
sentia em relação a ela. Ela em geral respondia que isso era assustador demais
para ser considerado. Então, finalmente, depois de muitos meses, as palavras
hesitantes saíram de sua boca: ela não confiava em mim; estava convencida de
que meu interesse nela era erótico, que não podia confiar em que eu fosse
respeitar os limites do relacionamento terapêutico e precisava estar na
defensiva em relação a mim. Eu não ficaria surpreso se, em algum nível de minha
consciência, ela estivesse certa sobre o eros, senão sobre o risco
quanto aos limites. Ela era muito atraente, e não posso imaginar passar longos
momentos íntimos em companhia de uma mulher atraente sem que algum eros
brote em algum lugar. Mas isso estava longe de minha mente consciente; já me
encontrava inteiramente ocupado apenas em prestar atenção no que se
apresentava.
Se
isso tivesse ocorrido em 1955, eu lhe teria assegurado que não era de mim que
ela tinha medo, mas de seu pai. Mas não era 1955, e a profissão evoluíra muito
desde então. Disse-lhe o quanto prezava a sua coragem por correr o risco de
fazer essa revelação e que podia prontamente compreender o quanto seria
assustador pensar que seu terapeuta não apenas se sentia atraído por ela, mas,
talvez, tivesse esperança de seduzi-la de fato. Perguntei-lhe se podia me dizer
quais os sinais que lhe chamaram a atenção. Ela respondeu que havia algo no
modo como a cumprimentava que parecia mais pessoal do que a forma como um
terapeuta cumprimenta um paciente. Ao longo de várias sessões, ela explorou isso
amplamente, fornecendo-me exemplos específicos. Eu lhe disse que compreendia de
fato que meu comportamento tão "pessoal" em relação a ela podia
fazê-la desconfiar das minhas motivações. Muitas das nossas sessões ao longo
das semanas seguintes incluíram discussões dessas percepções e dos sentimentos
decorrentes. De vez em quando, eu lhe dizia que achava que sua percepção de meu
modo caloroso era certamente correta, mas que não tinha consciência dos
sentimentos que ela temia que eu estivesse tendo. No entanto, acrescentei,
ambos tínhamos desenvolvido um grande respeito pelo inconsciente.
Enfim,
sugeri que, embora sua interpretação do meu ardor fosse certamente plausível,
não era a única possível. Meu modo caloroso poderia representar apenas um
interesse e uma afeição não eróticos. Ela concordou que isso podia ser verdade.
Perguntei-lhe se estaria disposta a buscar possíveis motivos que a levaram a
escolher a interpretação de eros e da sedução. Ela explodiu num riso e
disse: "Não consigo imaginar o que seja, você consegue?"
Ela
continuou fazendo terapia por algum tempo depois disso, mas sua vida começou a
mudar. Exploramos amplamente a possibilidade de que ela não apenas temia meu
interesse sexual por ela, o que era certamente verdade, mas que em um nível
mais profundo também o desejava. O leitor se lembrará da advertência de Freud,
de que um forte medo pode muitas vezes esconder um desejo.
Finalmente,
Alice encontrou um homem solteiro e não comprometido e se apaixonou. Gostaria
de poder dizer que o manejo dos insights na transferência sempre
funciona dessa maneira. Receio que às vezes não seja assim. Mas frequentemente
funciona, como Freud acreditava:
“É
nesse campo [da transferência] que a vitória tem de ser conquistada - vitória
cuja expressão é a cura permanente da neurose. Não se discute que controlar os
fenômenos da transferência representa para o psicanalista as maiores
dificuldades; mas não se deve esquecer que são precisamente eles que nos
prestam o inestimável serviço de tornar imediatos e manifestos os impulsos
eróticos ocultos e esquecidos do paciente. (...)
Freud
estava convencido de que o segredo de uma cura consistia em recobrar impulsos e
fantasias encobertos de sua repressão. O valor de lidar com os insights
na transferência, suspeitava ele, era que a compreensão das distorções no
relacionamento terapêutico seria significativamente mais convincente para o
paciente do que aquela relativa aos episódios e relacionamentos fora da
situação terapêutica. Em seu último trabalho publicado, ele escreveu: "Um
paciente nunca se esquece do que experimentou sob a forma de transferência; ela
tem uma força de convicção maior do que qualquer outra coisa que possa adquirir
por outros modos." A ênfase estava na realização cognitiva.
Freud
acreditava que o analista podia e devia detectar os meios pelos quais a visão
que o paciente tem do terapeuta era distorcida pelos modelos. Ao demonstrar
essas distorções, o analista podia ensinar ao paciente lições duradouras sobre
suas percepções destrutivamente distorcidas. No entanto, esse ponto de vista
apresenta problemas. Quando meu cliente me diz que sou tenso e defensivo, penso
comigo: "Ah, ele deve ter tido um pai defensivo."
Quando
ele me conta que aprecia o quanto eu trabalho duro e sou dedicado, penso
comigo: "Sim, essa é uma imagem realista de mim." Você pode perceber
o problema: o terapeuta não está em posição de decidir quais das respostas do
cliente são realistas e quais são "distorcidas". Quando os
psicanalistas finalmente compreenderam isso, tinham ao menos descoberto o que
qualquer universitário cursando o primeiro ano de filosofia ou de física
molecular poderia ter-lhes dito: A "realidade" é um conceito muito
ardiloso de se definir. (...)
Cada
um de nós vê as interações interpessoais através da lente das suas fantasias
inconscientes, através da lente dos princípios idiossincráticos pelos quais
aprende a organizar a experiência. Os estímulos interpessoais têm forte
tendência a ser ambíguos, prestando-se a múltiplas interpretações. Os nossos
princípios organizadores, os nossos modelos determinam como escolhemos entre
essas interpretações. Isso é verdadeiro não apenas para o cliente, mas também
para o terapeuta. (...)
A
maioria dos terapeutas abandonou a noção de que estão em posição de julgar
quais percepções do cliente são realistas e quais são distorcidas. Todas essas
percepções são realistas até certo ponto, e todas são moldadas até certo ponto
pelos modelos. A palavra "transferência" referia-se originalmente às
percepções e reações do cliente que o terapeuta considerava distorcidas. Essa
definição deixou de ter uma função, uma vez que os psicanalistas abandonaram a
convicção de que tinham insights especiais sobre o que era real.
Diversas tentativas foram feitas para redefinir transferência. Parece que o
mais útil é considerar simplesmente que, já que não podemos nos atrever a
distinguir "realista" de "distorcido", e já que
reconhecemos que todas as nossas percepções interpessoais são em parte
configuradas pelos modelos, a transferência refere-se a todos os sentimentos,
percepções e julgamentos que o cliente tem em relação ao terapeuta. (...)
O
material recalcado busca expressão. (...) Freud demonstrara que a situação
terapêutica é o meio ideal para dar vazão a esse material. (...) O primeiro
fator terapêutico no relacionamento clínico deveria ser a oportunidade de
experimentar novamente, na transferência, os antigos impulsos e fantasias
encobertos, de expressá-los ao terapeuta, e de fazer com que ensejassem uma
resposta significativamente diferente daquela que ensejaram originalmente. (...)
As crenças e atitudes mal-adaptadas do paciente eram adquiridas na interação
interpessoal e que, portanto, deveriam ser mudadas nesse mesmo contexto. (…)
Não
teria sido suficiente eu ter explicado a Alice que seu medo de mim era uma
repetição distorcida do medo que ela tinha do pai, ou que sob esse medo residia
um desejo de que ele se sentisse atraído por ela. (...) O que eu tinha de fazer
primeiro era reconhecer que seu medo era real e importante, e encorajá-la a
explorá-lo detalhadamente, incluindo os indícios que ela detectava em mim. Da
mesma forma, teria sido importante (...) que eu lhe fornecesse segurança para
me contar do desejo subjacente, o desejo de que eu me sentisse atraído por ela.
Então (...) teria sido possível e necessário ajudá-la a explorar as antigas raízes
do medo e do desejo que ela sentia. (...)
No
início, parecia a Freud que a transferência era um fenômeno encontrado
principalmente na situação terapêutica. No entanto, ele logo passou a
compreender que, pelo contrário, a transferência estava em toda parte. Em todos
os nossos relacionamentos significativos e em um número considerável de nossos
relacionamentos mais superficiais, para onde quer que nos dirijamos, estamos
incessantemente repetindo algum aspecto de nossa vida primitiva. Isso ocorre no
âmbito das amizades, das relações profissionais, dos casos amorosos e,
particularmente, dos nossos relacionamentos com figuras de autoridade. Uma
avaliação e compreensão da transferência são necessárias aos terapeutas. Mas,
para todos nós, essa compreensão acrescenta uma rica percepção ao esquema da
nossa vida.
Poderia-se
pensar que esse esquema é poético ou, mais precisamente, musical. Os
compositores do século XVIII utilizavam uma forma musical chamada sonata. Os
primeiros movimentos das sinfonias de Mozart e Beethoven são exemplos dela. Na
sonata, todos os temas do movimento aparecem no começo. No restante do
movimento, o compositor desenvolve esses temas, criando variações sobre eles e
recapitulando-os. É um poderoso esquema e talvez uma das razões pelas quais a
música daquele período provavelmente será sempre tocada. Poderíamos comparar
nossa vida a uma sonata. Todos os temas dos relacionamentos aparecem no começo,
e o restante da vida consiste da nossa constatação das variações, evoluções e
recapitulações desses temas. (...)
Quando
eu ainda não havia terminado o ensino médio, em geral me sentava numa sala de
aula tão grande que ficava bastante afastado da maioria dos professores e,
desse modo, não tinha um grande sentimento por eles ou qualquer impressão a seu
respeito. Tenho certeza de que isso não me impediu de apresentar contínuas
reações de transferência, mas sua manifestação consciente parecia mais
divertida do que importante. A graduação foi muito diferente. Eu estava em
contato próximo com os professores, e a autoridade deles sobre mim parecia
praticamente ilimitada. Se eu achasse ter detectado em um professor o menor
sinal de desaprovação ou mesmo de falta de interesse, ficava com a certeza de
que minha carreira e eu estávamos passando por sérios problemas. Não é difícil
imaginar como eu tinha percebido o meu relacionamento com meu pai. Por outro
lado, se um professor parecia afetuoso ou interessado por mim, eu rapidamente
desenvolvia fantasias de merecer sua admiração e me tornar seu discípulo. (...)
Compreender
e apreciar o poder da transferência na vida cotidiana nos proporciona aumentar
significativamente a compreensão e a apreciação das forças inconscientes que
atuam em nós e nas pessoas à nossa volta.
Vimos
que Freud e seus seguidores passaram a acreditar que a transferência é um fenômeno
comum a todos. Isso certamente tem de incluir os terapeutas, e certamente tem
de incluir o relacionamento que estes mantêm com os clientes. A palavra técnica
para as reações do terapeuta é contratransferência. Como esse conceito tem sido
entendido pelos psicanalistas é uma longa história. Inicialmente, imaginava-se,
ou talvez esperava-se, que os analistas, sendo tão analisados e tão
profissionais, não teriam percepções do paciente que não fossem puramente
vinculadas à realidade, nem dariam respostas aos caprichos da transferência que
não fossem de todo apropriadas. Freud reconheceu que ocasionalmente algum
derivativo inconsciente irrompia através do profissionalismo do terapeuta e
produzia uma resposta inadequada. Ele chamou essa resposta de
"contratransferência", e a entendia como nada mais do que um
obstáculo a ser removido. Ele esperava que, não conseguindo se livrar dela por
meio de autoanálise, o terapeuta buscasse supervisão ou mesmo uma análise
posterior.
Isso
foi o começo de uma longa jornada. Os analistas começaram a refletir se era de
fato possível que alguém fosse tão completamente analisado assim. Reconheceu-se
que a contratransferência era inevitável e constante. Em 1950, ela era
entendida não apenas como inevitável, mas útil. Nos anos 1960, era entendida
como indispensável.
Vimos
que os analistas abandonaram por fim e abençoadamente a crença de que podiam
distinguir o real e o distorcido. Inevitavelmente, isso mudou de forma
dramática a visão da contratransferência. Dessa perspectiva, poderíamos definir
contratransferência como todos os sentimentos, pensamentos e percepções que o
terapeuta tem do paciente. Podemos ver por que é indispensável; toda a empatia,
por exemplo, começa com a contratransferência.
Uma
vez que o engano da realidade foi reconhecido, todo o quadro do relacionamento
terapêutico se altera. No início, acreditava-se firmemente que uma pessoa
esclarecida estava tratando alguém cuja neurose obscurecia sua visão. Agora,
parece que um quadro mais preciso, e com certeza mais modesto, é o de dois
indivíduos que estão vendo a atualidade um do outro através das lentes de seus
princípios organizacionais únicos. Nenhum deles está distorcendo; nenhum está
em contato com uma realidade absoluta. Isso não quer dizer que o relacionamento
é visto agora como simétrico; ambos estão a serviço do cliente. Mas não mais se
acredita que as percepções do terapeuta, particularmente suas autopercepções,
são mais exatas que as dos pacientes.
Assim
como os físicos descobriram a extensão do impacto do observador sobre o
observado, os analistas estão agora aprendendo como é enorme o impacto dos
princípios organizacionais do terapeuta, frequentemente dos seus princípios
organizacionais inconscientes, sobre o paciente. Essa perspectiva tornou-se
conhecida como "intersubjetividade", significando que a compreensão
emergente do paciente é conjuntamente forjada pelas subjetividades deste e do
terapeuta. Quase não fez sentido continuar usando o termo contratransferência,
pois, agora, é claro, estamos lidando com dois conjuntos de transferência.
Se
minha terapia com Alice tivesse ocorrido há 25 anos, eu nem teria considerado a
possibilidade de que ela estivesse de fato detectando sentimentos eróticos
inconscientes em mim. Caso eu estivesse ciente da existência de um desejo
consciente por ela, eu o teria considerado uma contratransferência lamentável e
buscaria supervisão. Caso eu não estivesse ciente da existência de sentimentos
eróticos, teria admitido que a percepção dela estava inteiramente determinada
por seus sentimentos edipianos, e de maneira alguma por algo que estivesse se
passando comigo. Mas os terapeutas (...) abriram (...) os olhos para a
importância de levar a sério a percepção que o paciente tem do terapeuta.
Isso
levanta a questão da autorrevelação do terapeuta. A posição psicanalítica
clássica era clara: o terapeuta nunca revela seus sentimentos. Os trabalhos
sobre intersubjetividade reabriram a questão. É agora um assunto fronteiriço
central e muito controverso, embora esteja fora do âmbito deste livro. A teoria
da transferência, numa concepção ampla, nos ensina que trazemos para cada um
dos nossos encontros interpessoais a nossa história encoberta de desejos, medos
e traumas psíquicos. O poder que o inconsciente tem de influenciar as
percepções que temos uns dos outros e as reações mútuas, quer na terapia, quer
na vida, é uma das descobertas mais valiosas e esclarecedoras de Freud.
EXTRATRANSFERÊNCIA
Extratransferência:
Trata-se de um termo bastante conhecido e divulgado, que classicamente designa
uma condição pela qual o analista percebe que o analisando demonstra, por meio
dos inter-relacionamentos de sua vida cotidiana, a forma de como estão
estruturadas as suas relações objetais internas. De modo geral, os analistas
desvirtuam a extratransferência e apregoam que tais experiências emocionais só
têm eficácia analítica se forem analisadas à luz da vivência do
“aqui-agora-comigo” transferencial. Acredito que esteja crescendo o número de
psicanalistas, entre os quais me incluo, que, diante de determinadas
circunstâncias da situação analítica – mais particularmente aquela na emocionais
só têm eficácia analítica se forem analisadas à luz da vivência do
“aqui-agora-comigo” transferencial. Acredito que esteja crescendo o número de
psicanalistas, entre os quais me incluo, que, diante de determinadas
circunstâncias da situação analítica – mais particularmente aquela na qual uma
verdadeira transferência ainda deve ser paulatinamente construída –, também
trabalham com naturalidade e profundidade os vínculos manifestos na extratransferência,
tal como essa se apresenta na vida “lá fora”.
Por
exemplo, no caso de um paciente que estiver narrando na sessão uma séria briga
que teve na véspera com a sua mulher, existe a possibilidade, muito comum, de
que o analista proceda a um automático reducionismo interpretativo de que o
analisando está expressando uma briga com ele, analista. Independentemente se
essa interpretação corresponde a uma realidade psíquica do paciente ou se é um
equívoco de compreensão do analista, é frequente que o paciente rejeite-a com
costumeiras exclamações do tipo: “não é nada disso…; eu sabia que ia dizer
isso…; tudo que eu falo, sempre traz para si…”, não sendo rara a possibilidade
que o analista queira impor a sua interpretação “transferencial”, e a sessão
adquira um clima polêmico.
Em
uma situação como essa que foi hipoteticamente referida, creio ser
perfeitamente possível um trabalho verdadeiramente analítico a partir da extratransferência,
isto é, de analisar com o paciente os detalhes da briga que teve com a esposa,
como tudo começou, qual foi a sua participação, o seu papel, a sua
responsabilidade por uma possível provocação para uma previsível resposta
daquela, e que esse episódio repete tantos outros análogos com outras pessoas,
etc., de sorte a poder propiciar um importante insight, com a
possibilidade eventual de, aí sim, poder fazer uma costura dessa briga com
outras manifestas ou ocultas que se passaram no passado ou que, de fato, possa
estar acontecendo no vínculo analítico.
ZIMERMAN, David E. Manual
de Técnica Psicanalítica: Uma Re-Visão. Porto Alegre: Artmed, 2004. p. 127
e 128.
[1] “Groddeck (...) pediu a opinião de Freud,
temendo, no fundo, (...) sua desaprovação (...). A resposta de Freud foi rápida
e entusiástica. Uma vez que ele (Groddeck) utilizava as noções de transferência
e resistência, ele fazia parte, quisesse ou não, da horda dos analistas.” NASIO,
J.-D. Introdução às obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott,
Dolto, Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. p. 115 e 116.
[2]
Transferência e introjeção (1909). In: Obras completas vol. 1. São
Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 88. A ideia ferencziana de que a transferência
é um fenômeno universal, e não exclusivamente neurótico, fica mais clara na
seguinte passagem: “A avidez humana universal pela transferência (...) adquire
nos neuróticos uma intensidade particular”. (RANK, Otto e FERENCZI, Sándor. Metas
do desenvolvimento da psicanálise. São Paulo: Quina Editora, 2022. p. 22).
[3] Transferência
e introjeção (1909). In: Obras completas vol. 1. São Paulo: Martins Fontes,
1991. p. 77.
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