Módulo 7

 

METAPSICOLOGIA


PARA FREUD, A METAPSICOLOGIA ERA UMA "BRUXA"


Metapsicologia: termo criado por Sigmund Freud, em 1896, para qualificar o conjunto de sua concepção teórica e distingui-la da psicologia clássica. A abordagem metapsicológica consiste na elaboração de modelos teóricos que não estão diretamente ligados a uma experiência prática ou a uma observação clínica; ela se define pela consideração simultânea dos pontos de vista dinâmico, tópico e econômico.

Foi numa carta a Wilhelm Fliess, datada de 13 de fevereiro de 1896, que Freud utilizou pela primeira vez, e sem maiores explicações, o termo metapsicologia: “A psicologia — ou melhor, a metapsicologia — preocupa-me ininterruptamente.” Menos de dois meses depois, em 2 de abril de 1896, sempre se dirigindo a Fliess, forneceu um primeiro esclarecimento sobre “algumas questões metapsicológicas” que lhe pareciam ligadas em um “nível superior” à simples “psicologia das neuroses”: reconheceu que, para ele, na passagem da medicina para a psicologia, tratava-se de realizar seu desejo inicial de se dedicar aos conhecimentos filosóficos, não sendo a atividade terapêutica mais do que uma consequência anexa e imprevista dessa mudança de orientação. A psicologia clássica e a psicologia da consciência não podiam ser objeto de uma iniciativa intelectual cuja realização requeria um quadro teórico e uma forma de cientificidade que, pautando-se no encaminhamento filosófico, levassem a pensar a articulação dos processos psíquicos com os fundamentos biológicos.

Numa outra carta a Fliess, datada de 10 de março de 1898, Freud evocou o trabalho em andamento sobre a interpretação dos sonhos e escreveu: “Parece-me que a explicação através da realização de um desejo fornece uma solução psicológica, mas não uma solução biológica, e sim metapsicológica.” E acrescentou entre parênteses: “Aliás, é preciso que me digas seriamente se posso dar à minha psicologia, que desemboca no pano de fundo do consciente, o nome de metapsicologia.”

Essas anotações encontraram uma forma de expressão mais elaborada em A psicopatologia da vida cotidiana: se a metafísica constitui uma espécie de modelo formal para a futura metapsicologia, o objetivo não é nos encerrarmos nela, mas avaliá-la e estabelecer que as construções filosóficas (mitológicas, religiosas), assim como todas as formas de crenças e delírios que delas podem derivar, não constituem outra coisa senão uma “psicologia projetada no mundo externo”. E Freud esclarece imediatamente: “O conhecimento obscuro dos fatores e fatos psíquicos do inconsciente (em outras palavras, a percepção endopsíquica desses fatores e fatos) reflete-se (...) na construção de uma realidade suprassensível que a ciência retransforma numa psicologia do inconsciente. Poderíamos atribuir-nos a tarefa de decompor, colocando-nos nesse ponto de vista, os mitos relativos ao paraíso e ao pecado original, ao mal e ao bem, à imortalidade etc., e de traduzir a metafísica em metapsicologia.”

Passados uns quinze anos, no artigo dedicado ao inconsciente, Freud dá uma definição precisa do termo metapsicologia: “Proponho falar de apresentação metapsicológica quando lograrmos descrever um processo psíquico em suas relações dinâmica, tópica e econômica. É de se prever que, no atual estado de nossos conhecimentos, só consigamos fazê-lo com respeito a pontos isolados.” É essa mesma definição, enunciada com maior vigor, que vamos encontrar nas primeiras linhas de Mais-além do princípio de prazer: “Cremos que um modo de exposição em que tentemos apreciar o fator econômico, além dos fatores tópico e dinâmico, é o mais completo que podemos conceber na atualidade, e que ele merece ser destacado pelo termo metapsicologia.”

A nos atermos a essas definições, seria preciso agruparmos sob o rótulo de metapsicologia uma grande parte da obra freudiana.

ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. Verbete: metapsicologia. p. 511.

 

         A noção de metapsicologia foi forjada por Freud para designar a parte mais teórica e abstrata da psicanálise. É constituída por um conjunto de leis, princípios e conceitos fundamentais que permitem representar e descrever o funcionamento do aparelho psíquico segundo três pontos de vista estruturais fundamentais: dinâmico, tópico e econômico.

         O termo metapsicologia apareceu cedo no pensamento de Freud, pois já está presente nas cartas para Wilhelm Fliess. Foi, sem dúvida, forjado por analogia com o conceito filosófico de metafísica, a propósito do qual Freud se propõe “realizar a tarefa de converter a metafísica em metapsicologia”. O sentido do conceito é especificado e refinado pouco a pouco até 1915, quando Freud empreende uma descrição metapsicológica sistemática do seu modelo do momento. A “feiticeira”, como ele gostava de chamar, compunha-se então de um conjunto de princípios (como o princípio do prazer-desprazer) e de hipóteses (como as do recalcamento ou do Inconsciente) que permitem apresentar o funcionamento psíquico e os processos que presidem à sua organização como um todo coerente que se pode tornar inteligível.

         Freud propôs “que se fale de uma apresentação metapsicológica quando se chega a descrever um processo psíquico segundo suas relações dinâmicas, tópicas e econômicas.” O ponto de vista econômico considera o aparelho psíquico sendo percorrido por forças que tendem para a sua resolução. O ponto de vista dinâmico estuda a maneira como essas forças se compõem e dialetizam entre elas em sua conflitividade. O ponto de vista tópico considera que o aparelho psíquico pode ser descrito como um espaço onde é possível delimitar diferentes lugares (Consciente, Pré-consciente, Inconsciente) governados por leis e percorridos por processos específicos (processos primários inconscientes, processos secundários pré-conscientes). A combinatória dos três pontos de vista permite apresentar esses processos levando em conta seu investimento, seu lugar na organização psíquica e sua incidência sobre o curso dos eventos psíquicos.

ROUSSILLON, René. Verbete: metapsicologia. In.: MIJOLLA, Alain (Org.) Dicionário Internacional da Psicanálise. Vol. M-Z. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. 1174.


METAPSICOLOGIA x METAFÍSICA

 


 

 

         Metapsicologia: termo criado por Freud para designar a psicologia por ele fundada. (...) A metapsicologia elabora um conjunto de modelos conceituais mais ou menos distantes da experiência (...) consciente. (...) Não podemos deixar de notar a analogia entre os termos metapsicologia e metafísica, analogia (...) intencional por parte de Freud, pois sabemos, pelo seu próprio testemunho, o quanto foi forte a sua vocação filosófica: "Espero que você queira dar atenção a algumas questões metapsicológicas (...). Nos meus anos de juventude a nada aspirei tanto como o conhecimento filosófico, e estou realizando esse voto, passando da medicina à psicologia". (Carta de Freud a Fliess de 2/4/1896). Mas a reflexão de Freud sobre as relações entre a metafísica e a metapsicologia vai além desta simples aproximação; define a metapsicologia numa passagem significativa como uma tentativa científica de restaurar as construções "metafísicas"; estas, como as crenças supersticiosas, (...) religiosas, (...) ou certos delírios paranoicos, projetam em forças exteriores o que na realidade é do próprio inconsciente.

LAPLANCE e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 284.

 

         Creio que grande parte da visão mitológica do mundo, que se estende até as mais modernas religiões, nada mais é do que a psicologia projetada no mundo externo. O obscuro reconhecimento (...) dos fatores psíquicos e das relações do inconsciente espelha-se (...) na construção de uma realidade sobrenatural, que se destina a ser retransformada pela ciência na psicologia do inconsciente. Poder-se-ia ousar explicar dessa maneira os mitos do paraíso e do pecado original, de Deus, do bem e do mal, da imortalidade etc., e transformar a metafísica em metapsicologia.

FREUD, Sigmund. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Obras Completas vol. VI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.  p. 254.


Partindo de nossa mitológica teoria dos instintos, é fácil chegar a uma fórmula para os meios indiretos de combater a guerra. Se a disposição para a guerra é uma decorrência do instinto de destruição, então será natural recorrer, contra ela, ao antagonista desse instinto, a Eros. Tudo que produz laços emocionais entre as pessoas tem efeito contrário à guerra. Essas ligações podem ser de dois tipos. Primeiro, relações como as que se tem com um objeto amoroso, embora sem objetivos sexuais. A psicanálise não precisa se envergonhar quando fala de amor, pois a religião também diz: “Ama o próximo como a ti mesmo”. Sem dúvida, é uma coisa mais fácil de se pedir do que de realizar.

FREUD, Sigmund. Por que a guerra? (Carta a Einstein). In. Obras completas. Vol. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 430.


Em sua origem, função e relação com o amor sexual, o ‘Eros’ do filósofo Platão coincide exatamente com a força amorosa, a "libido" da psicanálise (...) e, quando o apóstolo Paulo, em sua famosa Epístola aos Coríntios, louva o amor sobre tudo o mais, certamente o entende no mesmo sentido ‘mais amplo’.

FREUD, Sigmund. Psicologia de grupo e análise do egoObras completas vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 102.


A teoria dos instintos é, por assim dizer, nossa mitologia. Os instintos são seres míticos, formidáveis em sua indeterminação. Em nosso trabalho não podemos ignorá-los um só instante, mas nunca estamos certos de vê-los com precisão.

FREUD, Sigmund. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. In. Obras completas. Vol. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 241.


          Os seres humanos conseguiram levar tão longe a dominação das forças da natureza que seria fácil, com o auxílio delas, exterminarem-se mutuamente até o último homem. Eles sabem disso; daí uma boa parte de sua inquietação atual, de sua infelicidade, de sua disposição angustiada. E agora cabe esperar que o outro dos dois "poderes celestes", o eterno Eros, faça um esforço para se impor na luta contra o seu adversário igualmente imortal. Mas quem pode prever o desfecho?

 FREUD, Sigmund. O mal estar na cultura. Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 184 e 185.


Freud (...) mostra que a religião se originou do desamparo da criança prolongado na idade adulta. No lugar do pai protetor da infância, o homem adulto põe o Deus, Pai, Todo-Poderoso, a quem se deveria louvar e dar graças em todo o tempo e lugar. Com esta associação, Freud impugna também a origem divina da religião.

DAVID, Sérgio Nazar. Freud e a religião. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 14.

 

Em 1907, em Atos obsessivos e práticas religiosas, Freud já se detivera no fenômeno religioso associando-o à neurose obsessiva. O cerimonial neurótico se parece muito, para ele, com os atos sagrados do rito religioso. A analogia “consiste no temor que surge na consciência em caso de omissão, consiste na exclusão total de toda outra atividade (proibição da perturbação) e consiste na conscienciosa minúcia da execução”. A neurose obsessiva é uma religião íntima. Seu cerimonial parece absurdo, enquanto os cerimoniais religiosos parecem cheios de propósito. Entretanto, adverte Freud, os atos obsessivos de despropositados têm apenas a aparência.

Tanto o homem de fé quanto o neurótico obsessivo querem ser salvos, e creem-se grandes pecadores, e creem também possível resguardarem-se de toda e qualquer angústia através do conjunto de atos que se impõem por dever. “Caso contrário, uma desgraça irá acontecer”, é o que pensam. Renúncia ao desejo (tentação) e proteção contra uma punição (desgraça) sempre iminente parecem estar na base da religião e da neurose obsessiva. Em O futuro de uma ilusão, referindo-se recapitulativamente a Atos obsessivos e práticas religiosas, Freud dirá que os devotos acabam por se salvaguardar do risco de certas enfermidades neuróticas.

A religião (neurose universal) os livra de uma neurose pessoal. A religião é uma neurose obsessiva universal porque vem em substituição à renúncia ao impulso sexual. A neurose é uma religião individual porque se arma sob o peso dos deveres, sempre imperativos, sempre categóricos.

DAVID, Sérgio Nazar. Freud e a religião. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 36 e 37.

 

Freud passa, em O futuro de uma ilusão, a antever uma importante objeção às suas ideias: (...) se a religião deriva de fortes anseios dos homens, não seria uma crueldade privá-los daquilo que acaba por ser para tantos a única consolação? Chegamos ao ponto-chave. Admitindo que Freud esteja certo, não seria melhor deixar tudo como estava? Afinal de contas não é de ilusão mesmo que o homem vive? Não, não é melhor. Não, não é de ilusão que o homem vive. Ninguém está livre de iludir-se, mas isso não é o mesmo que dizer que é de ilusão que se vive. Ao se contrapor às ilusões, que trazem sempre um conjunto de receitas para a felicidade, Freud propõe que cada um possa encontrar a felicidade a seu modo. “Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo”, dirá em O mal-estar na cultura, parafraseando Frederico o Grande.

DAVID, Sérgio Nazar. Freud e a religião. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 42 e 43.


Dados trabalhosamente compilados por estudiosos da civilização apresentam testemunho irrefutável de que primitivamente os genitais (...) eram adorados como deuses e transmitiam a essência divina de suas funções a todas as novas atividades humanas. Como resultado da sublimação de sua natureza básica criaram-se inúmeras divindades: e quando a conexão entre a religião oficial e a atividade sexual se tornou oculta da consciência geral, cultos secretos se dedicavam a conservá-la viva entre um certo número de iniciados. Durante o decurso do desenvolvimento cultural tanta coisa divina e sagrada foi, em última essência, extraída da sexualidade, que o remanescente, quase esgotado, foi desprezado. Mas, dado o caráter indelével de todos os processos mentais, não é de admirar que mesmo as formas mais primitivas do culto genital existissem até bem pouco tempo e que a linguagem, os costumes e as superstições da humanidade de hoje contenham ainda remanescentes de todas as fases deste processo de desenvolvimento.

FREUD, Sigmund. Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância. Obras Completas, Vol. XI Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 104.


SENTIMENTO OCEÂNICO

 

         Depois de ter lido O futuro de uma ilusão (1927), Romain Rolland[1] escreveu a Freud: “Entendo por sensação religiosa – independentemente de todo o dogma, de todo credo, de toda organização da Igreja, de todo Livro Santo, de toda esperança numa sobrevivência pessoal etc. – o fato simples e direto da sensação de ‘o eterno’ (que pode muito bem não ser eteno, mas simplesmente sem limites perceptíveis, e como oceânico). Essa sensação é, na verdade, de caráter subjetivo. É um contato”.

         A sensação oceânica infere sua origem, de uma parte, de Spinoza, que critica a religião, mas conserva, com o terceiro grau de consciência, “o amor intelectual de Deus” e, de outra parte, dos estudos de Romain Rolland sobre a mística da Índia, que ele enviou a Freud e para quem formulou esse conceito até aí latente.

         No primeiro capítulo de O mal-estar na civilização (1930), Freud situa a sensação oceânica no Eu primitivo – poder-se-ia precisar no narcisismo originário – depois “atrofiado” sob a influência da realidade. Compara-o aos vestígios da Roma antiga que jaz sob as construções ulteriores.

MIJOLLA, Alain de. Dicionário internacional de psicanálise. Vol. 2. Verbete Sensação oceânica (sentimento oceânico). Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. 1703.

 

Originalmente o ego inclui tudo; posteriormente, separa, de si mesmo, um mundo externo. Nosso presente sentimento do ego não passa, portanto, de apenas um mirrado resíduo de um sentimento muito mais inclusivo - na verdade, totalmente abrangente -, que corresponde a um vínculo mais íntimo entre o ego e o mundo que o cerca. Supondo que há muitas pessoas em cuja vida mental esse sentimento primário do ego persistiu em maior ou menor grau, ele existiria nelas ao lado do sentimento do ego mais estrito e mais nitidamente demarcado da maturidade, como uma espécie de correspondente seu. Nesse caso, o conteúdo ideacional a ele apropriado seria exatamente o de ilimitabilidade e o de um vínculo com o universo - as mesmas ideias com que meu amigo elucidou o sentimento ‘oceânico’.

FREUD, Sigmund. Mal estar na civilização. Obras completas vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 43.



[1] Romain Rolland (1866-1944): escritor, ensaísta, dramaturgo, biógrafo, musicólogo, ensaísta francês amigo de Freud.

 


 PSICANÁLISE, 


MITOLOGIA

 

E RELIGIÃO


Já se efetuaram análises exaustivas do significado psicológico de várias crenças religiosas, com base em material teológico e antropológico examinado analiticamente. Poderemos fazer um relato sucinto de algumas das conclusões genericamente mais importantes a que assim se chegou.

A afirmação teológica de que Deus é nosso Pai parece ser completamente justificada num sentido psicológico. Tanto o ateísmo militante como a devota crença em Deus remontam igualmente às primeiras reações da criança para com o seu pai terreno (ou à ideia de um pai, quando o verdadeiro falta). Os atributos de onipotência, onisciência e perfeição moral são invariavelmente atribuídos ao pai numa ou noutra fase da evolução do pequeno ser; derivam pelo menos tanto de necessidades internas como de exemplo ou sugestão externos. Várias das repressões que se relacionam com a ideia de pai, juntamente com as deficiências óbvias deste uma vez comparado com um padrão tão absoluto, levam a que os atributos de perfeição se abstraiam dele e se incorporem numa figura intangível. Isto, em poucas palavras, é talvez a essência de todos os conhecimentos que possuímos sobre a complicada evolução da ideia de Divindade.

Os sistemas religiosos do mundo, em não poucos casos, culminaram na adoração de uma Trindade, que quase sempre consistiu nas figuras primordiais de Pai, Mãe e Filho. Pode demonstrar-se em pormenor que as várias crenças e lendas relacionadas com essas figuras estão absolutamente confrontadas com os conflitos inconscientes ligados aos membros da família humana do indivíduo. Na religião cristã, a figura da Mãe foi parcialmente substituída pela do Espírito Santo, embora a mudança se tenha efetuado a partir de motivos acessíveis à investigação.

Toda a religião é fundada sobre a ideia de pecado, isto é, o sentimento de culpa por não se atingir um padrão determinado. Sem esta ideia, a religião perde todo significado. Todo o pecado pode ser expresso em termos de desobediência ao Pai (ou mesmo rebelião contra Ele), ou ainda de profanação da Mãe (e respectivos atributos ou substitutos). Ora estes são precisamente os dois componentes do complexo de Édipo primário da infância; a propósito, os tipos de mente católica e protestante correspondem ao componente sobre que recai a ênfase. O tópico da culpa teve de ser investigado pela psicanálise muito pormenorizadamente, uma vez que tem um papel de primordial importância na análise individual; os problemas da neurose, por exemplo, são inseparáveis dos da culpa. Pode distinguir-se entre culpa infantil e a sua normal evolução na consciência adulta na qual estão incorporados todos os nossos padrões morais e éticos; também se fala numa consciência estética e científica. Esta consciência normal é a herdeira do complexo de Édipo da infância. Por outro lado, acontece frequentemente que os erros no desenvolvimento inicial possam evitar que se verifique a evolução normal. Então, permanece no inconsciente um sentimento de culpa excessivo, de características infantis e irracionais, e, por vezes, de efeitos mórbidos. A relação precisa entre o pecado da religião e estas duas formas de culpa é uma questão delicada demais para que a resposta consista numa só palavra. Apenas se poderá aqui dizer que o sublime sentido de valor espiritual unido ao sentimento e às crenças religiosas deve muito da sua importância ao fato de estas últimas, ao mesmo tempo, satisfazerem os mais profundos anseios da mente humana e proporcionarem um certo alívio da tensão moral inconsciente. Não surpreende, portanto, que para muita gente elas representem a coisa de longe mais preciosa em toda a vida.

O outro elemento importante das crenças religiosas, nomeadamente a vida eterna, ostenta as características de satisfação de desejos ainda mais proeminentemente do que o elemento que acabámos de considerar. A salvação significa uma reunião plena de alegria com os pais, contra os quais os pensamentos pecaminosos inconscientes foram dirigidos. O Céu é a recompensa dessa reunião. Toda a insatisfação, todos os infortúnios, todas as injustiças desta vida, encontrarão ali a devida compensação. E é bastante adequado que o simbolismo de Céu contenha infinitas alusões à identificação inconsciente dessa recompensa com a noção de recuperação de uma certa forma de bem-aventurança que já uma vez possuímos (daqui, também, a ideia de “expulsão do Paraíso”), com o retorno “àquele palácio imperial donde viemos”.

Em resumo: as crenças religiosas (...) podem ser adequadamente consideradas sem se recorrer a um agente externo (sobrenatural). Se se desejasse aplicar conceitos psicanalíticos de modo um tanto ou quanto extravagante, poder-se-ia dizer que as crenças mitológicas representam no plano da organização social a fase de neurose infantil na evolução da humanidade, enquanto a maioria das crenças religiosas representam analogamente a fase da neurose adolescente. (...)

A psicanálise dos mitos mostra claramente que eles representam sob disfarce os mais primitivos anseios e receios da humanidade. O mecanismo do disfarce, bem como o seu motivo, é extremamente similar ao dos sonhos, e, na verdade, muitos mitologistas anteriores a Freud tinham já apontado as extensas semelhanças entre sonhos e mitos. As energias que não podiam ser transmutadas nas tarefas e interesses da vida real eram expressas nos mitos, como formas de satisfação de desejos, e ainda mais abertamente nas lendas. As religiões mais evoluídas emanciparam-se da sua natureza mitológica primitiva tanto pela sua preocupação sobre os assuntos da vida real como pelas suas realizações eticamente mais elevadas.

Nas variedades mais religiosas do mito, notavelmente nas do Egito e da Grécia, é manifesta a natureza familiar do seu conteúdo e o seu caráter chocante contrasta peculiarmente não só com os nossos próprios ideais da vida familiar como, com toda a probabilidade, com os das mesmas pessoas que acreditavam nesses mitos. Não será forçado dizer que os principais temas são os do incesto e castração; todas as variedades de assassínio e sexualidade dentro da família estão representadas. Mas estes são temas característicos da vida infantil que persistem no inconsciente adulto, do qual muito raramente emergem para a superfície. Hoje em dia os mesmos temas seriam expressos não numa crença mítica mas numa neurose. As figuras dos mitos são assim substitutos glorificados dos membros da família do indivíduo.

Nos outros tipos de mitos, os que assumem insensivelmente a forma de lenda, há um disfarce mais extenso do mesmo material primitivo. Um dos motivos favoritos, por exemplo, é idêntico ao que tão frequentemente se encontra na análise da vida dos primeiros anos de infância, nomeadamente o tema da substituição. A criança exprime o seu desagrado pelos pais repudiando o parentesco com um, ou com ambos, imaginando-se de superior nascimento, descendente de progenitores mais bondosos ou mais ideais, e tece várias histórias nas quais os seus desejos inibidos encontram completa satisfação. (...) Recorda-se que esta era uma das características da própria lenda à qual se foi buscar o termo “complexo de Édipo”. (...) Isto é parte do que Freud chamou o “romance familiar” da criança, parte importante da sua vida de fantasia. Em resumo, a satisfação de desejos inconscientes fornece a principal força criadora na formação dos mitos e lendas.

JONES, Ernest. Que é a psicanálise? Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1977. p. 114, 115, 119 a 123.


METAPSICOLOGIA COMO "FEITICEIRA" 



A primeira de nossas perguntas foi: “É possível resolver pela terapia analítica, de forma duradoura e definitiva, um conflito entre o instinto e o Eu, ou uma exigência instintual patogênica feita ao Eu?”. Provavelmente não será desnecessário, a fim de evitar mal-entendidos, explicar melhor o que queremos dizer com “resolução duradoura de uma exigência instintual”. Não é, certamente, fazê-la desaparecer, de modo que nunca mais se manifeste. Isso é impossível, e tampouco seria desejável. É outra coisa, algo que podemos denominar, grosso modo, “amansamento” do instinto. Isso quer dizer que o instinto é plenamente integrado na harmonia do Eu, é acessível a todas as influências dos demais impulsos do Eu, não mais toma os seus próprios caminhos para a satisfação. Se nos perguntam por que vias e com que meios isso ocorre, a resposta não é fácil. Temos que dizer: “É preciso chamar a bruxa, afinal”[1]. Ou seja, a bruxa metapsicologia. Sem especular e teorizar - quase digo: fantasiar - de maneira metapsicológica, não avançamos um passo neste ponto. Infelizmente, também desta vez as informações da bruxa não são muito claras nem muito detalhadas. Temos somente um ponto de referência - embora inestimável -, que é a oposição entre processo primário e secundário, e a ela remeterei aqui.

Se agora retornamos à primeira pergunta, vemos que nosso novo ponto de vista nos impõe determinada conclusão. A pergunta era se é possível resolver duradoura e definitivamente um conflito instintual, ou seja, de forma a “amansar” a exigência instintual. Assim formulando a questão, a força do instinto nem é mencionada, mas justamente dela depende o resultado. Partamos do pressuposto de que o que a análise faz, no neurótico, não é senão o que o indivíduo são realiza sem tal ajuda. Mas a experiência diária nos ensina que toda decisão de um conflito instintual, num indivíduo são, vale apenas para determinada força instintual, ou, mais corretamente, apenas no interior de determinada relação entre força do instinto e força do Eu. Se a força do Eu diminui, por doença, exaustão etc., todos os instintos até então amansados com êxito podem reapresentar suas exigências e procurar por caminhos anormais suas satisfações substitutivas.[2] A prova irrefutável dessa afirmação já é dada pelos sonhos noturnos, que reagem ao mergulho do Eu no sono com o despertar das exigências instintuais.

Igualmente inequívoco é o material do outro lado [a força dos instintos]. Duas vezes, no curso do desenvolvimento individual, há consideráveis fortalecimentos de determinados instintos: na puberdade e em torno da menopausa, nas mulheres. Não ficamos nada surpreendidos quando pessoas que não eram neuróticas assim se tornam nesses momentos. O amansamento dos instintos, que elas haviam conseguido quando estes eram menos fortes, fracassa com o seu fortalecimento. As repressões agem como diques contra o afluxo das águas. O que esses dois fortalecimentos instintuais fisiológicos realizam também pode ser provocado por influências acidentais, de maneira irregular, em qualquer outra época da vida. Há fortalecimentos instintuais em consequência de novos traumas, frustrações impostas, influências mútuas dos instintos. O resultado é sempre o mesmo, confirma o poder irresistível do fator quantitativo na causação da doença.

Sinto como se devesse me envergonhar dessas considerações penosas, pois tudo o que dizem é, há muito tempo, conhecido e evidente. De fato, sempre nos comportamos como se o soubéssemos; mas em geral, nas nossas concepções teóricas, deixamos de dar à perspectiva econômica a mesma atenção que demos à dinâmica e à topológica. Minha desculpa, portanto, é lembrar essa omissão.

Porém, antes de nos decidirmos por uma resposta a essa questão, temos de escutar uma objeção que tira sua força do fato de provavelmente já nos predispormos a seu favor. Ela diz que nossos argumentos são todos derivados dos processos espontâneos que ocorrem entre o Eu e os instintos e pressupõem que a terapia analítica nada pode fazer que não se verifique por si mesmo em condições normais favoráveis. Mas é realmente assim? Nossa teoria não pretende justamente produzir um estado que nunca existiu de modo espontâneo no Eu, e cuja criação constitui a diferença essencial entre o indivíduo analisado e o não analisado? Recordemos em que se baseia essa pretensão. Todas as repressões acontecem na primeira infância; são medidas de defesa primitivas do Eu fraco, imaturo. Nos anos posteriores não se efetuam novas repressões, mas as antigas se mantêm e o Eu continua a recorrer aos seus serviços para dominar os instintos. Novos conflitos são resolvidos pelo que denominamos “pós-repressão”. Para essas repressões infantis pode valer o que afirmamos de modo geral, que dependem completamente das forças relativas e não conseguem fazer frente a um aumento da força dos instintos. A análise, porém, faz com que o Eu amadurecido e reforçado empreenda uma revisão dessas antigas repressões. Algumas são demolidas; outras, reconhecidas mas construídas de novo, com material mais sólido. Esses novos diques têm um grau de firmeza muito diverso dos anteriores; deles se pode esperar que não cederão facilmente às marés altas do aumento instintual. Portanto, a verdadeira realização da terapia analítica seria a correção a posteriori do processo de repressão original, correção essa que dá fim à preponderância do fator quantitativo.

FREUD, Sigmund. Análise terminável e interminável. In. Obras completas. Vol. 19. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 286 a 290.

 

Convém recordar o contexto do qual Freud retira a imagem da feiticeira, isto é, a cena do Primeiro Fausto que se passa na cozinha da bruxa (cena 6). Entediado pelo conhecimento que não conduz à felicidade, Fausto quer remoçar e gozar a vida. Mefistófeles lhe diz que, para isso, há um meio prático: levar existência saudável, viver em harmonia com a natureza, dedicar-se às lides agrícolas. Mas Fausto não se sensibiliza com essa perspectiva ecológica:

Fausto: Não me convém, não tenho o hábito disso; brandir a enxada é duro serviço. A vida rústica não é comigo.

Mefistófeles: Pois venha então a bruxa, amigo.

A bruxa prepara uma poção de acordo com fórmulas secretas; Fausto bebe a poção e rejuvenesce. Incontinenti, põe-se ao encalço da bela e jovem Margarida. No plano do texto manifesto, o que Freud faz - como sempre, com maestria - é intercalar uma citação adequada para seu propósito: a metapsicologia opera com fórmulas que nada mais são do que configurações de conceitos e regras para lidar com eles; nesse sentido, é comparável à feiticeira, que também prepara suas beberagens seguindo regras para combinar os diversos elementos e, com isso, produzir um certo efeito. O que irmana as fórmulas da metapsicologia às da bruxa, portanto, é seu poder operativo. (...)

É (...) possível compreender por que, para Freud, (...) a metapsicologia-feiticeira (...) funciona como emblema da teorização psicanalítica. Em primeiro lugar, trata-se de justificar o método de leitura sugerido pela passagem de Análise terminável e interminável da qual partimos. A especulação e a teorização se apoiam em um vigoroso substrato de fantasias (...). Essas fantasias têm uma faceta pré-consciente e uma outra, que me parece mais oportuno ressaltar, propriamente inconsciente. (...)

A metapsicologia não é simplesmente a tradução em linguagem empolada das peripécias imaginárias (...). Essas figuras imaginárias articulam-se em outro nível, como conceitos; e é justamente quando ganhamos uma noção do seu funcionamento como figuras imaginárias que nos tornamos aptos a avaliar o imenso trabalho mediante o qual elas se transformam em conceitos. Trabalho esse que não é outro senão a transformação do processo primário em processo secundário, passos sem os quais não se podem produzir conceitos.

MEZAN, Renato. Figuras da teoria psicanalítica. São Paulo: Casapsi Livraria e Editora Ltda., 2010. p. 34, 39 e 40.



[1] GOETHE, Fausto, parte I, cena 6; no original: “So muss doch die Hexe dran”.

[2] Isso serve para justificar a pretensão etiológica de fatores inespecíficos como trabalho em excesso, choques etc., que sempre tiverem reconhecimento geral e tiveram de ser relegados a segundo plano justamente pela psicanálise. A saúde pode ser definida apenas de maneira metapsicológica, com referência a relações de força entre as instâncias do aparelho psíquico por nós reconhecidas ou, se preferirem, deduzidas, conjecturadas.



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