CISÃO ou CLIVAGEM
Sabe-se que Bleuler[1] utilizou o termo Spaltung
(clivagem) para designar o sintoma fundamental, segundo ele, do grupo de
afecções a que chamou esquizofrenia. Para este autor, Spaltung faz mais
do que exprimir um dado da observação: implica uma certa hipótese sobre o
funcionamento mental. Sob esse aspecto, a analogia apresentada pelo tipo de
explicação proposta por Bleuler para traduzir a Spaltung esquizofrênica (...)
não pode deixar de impressionar. (...)
A noção de clivagem do ego é definida por
Freud principalmente nos artigos Fetichismo (Fetischismus, 1927),
A divisão do ego no processo de defesa (Die Ichspaltung im
Abivehrvorgang, 1938) e em Esboço de psicanálise (Abriss der
Psychoanalyse, 1938), no quadro de uma reflexão sobre as psicoses e o
fetichismo. Segundo Freud, estas afecções põem em causa principalmente as
relações entre o ego e a “realidade”. E a partir delas que Freud define de
maneira cada vez mais afirmativa a existência de um mecanismo específico, a
recusa (Verleugnung), cujo protótipo é a recusa da castração. 
Ora, a recusa por si só não traduz o que a
clínica observa nas psicoses e no fetichismo. Com efeito, nota Freud, “o
problema da psicose seria simples e claro se o ego pudesse desligar-se
totalmente da realidade, mas isso acontece raramente, talvez nunca”. Em toda
psicose, mesmo na mais profunda, pode-se constatar a existência de duas
atitudes psíquicas: “... uma que leva em conta a realidade, a atitude normal, a
outra que, sob a influência das pulsões, desliga o ego da realidade”. É esta
segunda atitude que se traduz na produção de uma nova realidade delirante. No
fetichismo, a coexistência de duas atitudes contraditórias no seio do ego é
constatada por Freud em relação à “realidade” da castração: “Por um lado [os
fetichistas] recusam o fato da sua percepção que lhes mostrou a falta de pênis
no órgão genital feminino”; esta recusa traduz-se na criação do fetiche,
substituto do pênis da mulher; mas “... por outro lado, reconhecem a falta de
pênis na mulher, da qual tiram as consequências corretas. Estas duas atitudes
persistem lado a lado ao longo de toda a vida sem se influenciarem mutuamente.
É a isso que se pode chamar uma clivagem do ego”. Esta clivagem, como se vê,
não é propriamente uma defesa do ego, mas uma maneira de fazer coexistir dois
processos de defesa, um voltado para a realidade (recusa), outro para a pulsão,
este podendo redundar, aliás, na formação de sintomas neuróticos (sintoma fóbico,
por exemplo). Freud, ao introduzir a expressão “clivagem do ego”, chegou a
indagar se aquilo que estava assim introduzindo era “... há muito conhecido e
evidente ou totalmente novo e surpreendente”. Com efeito, a existência no seio
de um mesmo sujeito de “... duas atitudes psíquicas diferentes, opostas e
independentes uma da outra” está na própria base da teoria psicanalítica da
pessoa. Mas, ao descrever uma clivagem do ego (intrassistêmica) e não uma clivagem
entre instâncias (entre o ego e o id), Freud quer pôr em evidência um processo
novo em relação ao modelo do recalque e do retorno do recalcado. Com efeito,
uma das particularidades deste processo é não levar à formação de um
compromisso entre as duas atitudes em presença, mas mantê-las simultaneamente
sem que entre elas se estabeleça relação dialética. Não deixa de ser
interessante notar que foi no campo da psicose (justamente aquele em que
Bleuler, numa concepção teórica diferente, fala também de Spaltung) que
Freud sentiu a necessidade de forjar uma determinada concepção da clivagem do
ego. 
LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. São
Paulo: Martins Fontes, 2016. Verbete: Clivagem do Ego. p. 66 e 67.
Clivagem do eu: termo introduzido por
Sigmund Freud em 1927 para designar um fenômeno próprio do fetichismo, da
psicose e também da perversão em geral, e que se traduz pela coexistência, no
cerne do eu, de duas atitudes contraditórias, uma que consiste em recusar a
realidade (renegação), outra, em aceitá-la.
As ideias de Spaltung (clivagem),
dissociação e discordância foram inicialmente desenvolvidas, no fim do século
XIX, por todas as doutrinas que estudavam o automatismo mental, a hipnose e as
personalidades múltiplas. De Pierre Janet a Josef Breuer, todos os clínicos da
consciência dupla (inclusive o jovem Freud) viam nesse fenômeno - o da
coexistência de dois campos ou duas personalidades que se ignoravam mutuamente -
uma ruptura da unidade psíquica, que acarretava um distúrbio do pensamento e da
atividade associativa e conduzia o sujeito à alienação mental e, portanto, à
psicose. Foi nesse contexto que Eugen Bleuler fez da Spaltung o
distúrbio principal e primário da esquizofrenia (do grego skhizein:
fender), isto é, da forma de loucura caracterizada por um rompimento de
qualquer contato entre o doente e o mundo externo. Um ano depois, o psiquiatra
francês Philippe Chaslin (1857-1923) chamou de discordância um fenômeno
idêntico, ao qual deu o nome de loucura discordante. 
Partindo dessa terminologia e da
descrição, no campo da histeria, de fenômenos idênticos, Freud foi como que
conduzido a introduzir a dissociação (Spaltung) no eu (Ich).
Assim, no contexto de sua segunda tópica e de uma reflexão sobre a renegação e
o fetichismo, ele cunhou o termo clivagem do eu (Ichspaltung). Através
disso, remeteu a discordância ao cerne do eu, enquanto a psiquiatria dinâmica a
situava entre duas instâncias e a caracterizava como um estado de incoerência,
mais do que como um fenômeno estrutural. 
Melanie Klein retomou a noção freudiana e
deslocou a clivagem para o objeto, assim elaborando sua teoria dos objetos bons
e maus (...). Assim como Melanie Klein, Lacan estendeu a noção de clivagem à
própria estrutura do indivíduo em sua relação com o outro, ao passo que Freud,
embora tenha aberto caminho para esse tipo de generalização, utilizou-a
essencialmente na clínica da psicose e da perversão.
ROUDINESCO,
Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Verbete: Clivagem (do eu). Rio de
Janeiro: Zahar, 1998. p. 121.
Foi Sigmund Freud quem introduziu, em
1927, o termo Ichspaltung em alemão, que significa clivagem do ego. De
acordo com Freud, a cisão indica um fenômeno psíquico defensivo de ruptura da
unidade psíquica, particularmente presente no fetichismo, nas psicoses e na
perversão.
         Nesse mesmo artigo, Freud descreveu a
clivagem como o mecanismo que faz coexistir no seio do ego duas atitudes
distintas, sendo que cada uma delas cede a uma exigência contrária e é de fonte
diferente. Dito de outro modo, uma das atitudes é determinada pela pulsão – que
exige satisfação imediata – enquanto a outra é movida pela percepção do ego das
exigências da realidade externa – e que sofre ainda a força repressora à satisfação
da pulsão exercida pelo superego.
         Em seu último livro, Esboço de
psicanálise (1938), Freud fez uma descrição mais fenomenológica do
mecanismo da divisão do ego. Utilizou como exemplo de cisão o modelo de uma
criança que, diante de uma exigência pulsional inaceitável socialmente (como
por exemplo, a da masturbação), se vê, pela primeira vez, ameaçada por um
perigo real quase intolerável, que é o da ameaça de castração.
         Freud explicou que, caso o ego, em
função de sua fragilidade, não resista à força das diferentes e contrárias
pressões exercidas – de um lado a urgência pulsional e, do outro, a do risco
iminente da castração -, a criança precisará decidir entre admitir o perigo e
abrir mão da satisfação de seu desejo ou negar a realidade do perigo da
castração mantendo a satisfação pulsional.
         Freud também acrescentou que,
independentemente da escolha realizada, o ego, quando frágil, sofrerá um
rompimento estrutural em sua unidade e as outras possíveis respostas não
escolhidas persistirão como um sintoma dessa cisão:
“Por
um lado, com o auxílio de certos mecanismos, [a criança] rejeita a realidade e
recusa-se a aceitar qualquer proibição; pelo outro, no mesmo alento, reconhece
o perigo da realidade, assume o medo desse perigo como um sintoma patológico e,
subsequentemente, tenta desfazer-se do medo (...), permite-se que a pulsão
conserve sua satisfação e mostra-se um respeito apropriado pela realidade. Mas
tudo tem de ser pago de uma maneira ou de outra, e esse sucesso é alcançado ao
preço de uma fenda no ego, a qual nunca se cura, mas aumenta à medida que o
tempo passa. As duas reações contrárias ao conflito persistem como ponto
central de uma divisão (spliting) do ego” (Esboço de psicanálise).
         No mesmo livro, Freud atentou para o
fato de que a clivagem não é um mecanismo exclusivo dos fetichistas. As
tentativas de desligamento da realidade ocorrem também com os neuróticos e,
evidentemente, com os psicóticos.
         O que é importante ressaltar aqui é que
na literatura freudiana a cisão do ego aparece como um mecanismo notadamente
circunscrito a um conflito interno, um conflito entre as instâncias psíquicas,
relativo à própria organização interna do sujeito. Nesse modelo, o papel da
realidade externa como o agente precipitante da cisão ocupa um lugar
secundário e não é decisivo para sua formação.
         Por outro lado, gostaríamos de chamar a
atenção para o leitor para a valiosa contribuição de Ferenczi sobre sua
abordagem acerca da cisão do ego, tanto para a compreensão do funcionamento
psicodinâmico dos pacientes borderline e psicóticos, como para o manejo
do tratamento desses pacientes. Para esse autor, o mecanismo da clivagem egóica
ocupa um papel central na formação e na psicodinâmica do trauma.
         Sem desconsiderar a metapsicologia
freudiana, Ferenczi destacou o papel traumatogênico do objeto externo como o
agente causador da clivagem do ego. Quanto mais nova a criança e mais
importante o papel do objeto para ela, piores as consequências.
         Quando personificado no papel do
agressor da criança, o objeto externo invade o ego podendo clivá-lo e até mesmo
dilacerá-lo em pedaços. Nos termos ferenczianos, a cisão foi descrita como “a
clivagem da pessoa numa parte sensível, brutalmente destruída, e outra que, de
certo modo, sabe tudo, mas nada sente”.
         A cisão é um fenômeno autoplástico,
também denominado por Ferenczi autotomia, sendo a consequência direta
do colapso dos recursos mais saudáveis do ego de uma criança que foi direta e
efetivamente traumatizada pelas ações nocivas de um objeto externo e que,
para defender-se do choque traumático, sofre uma ou mais de uma cisão em seu
ego.
         Os sujeitos que sofrem violências
causadas por objetos externos que deveriam ser confiáveis, disse Ferenczi,
precisam especialmente de uma abordagem terapêutica cuidadosa. A falha nesse
cuidado pode acarretar uma piora na clivagem ou até mesma induzi-la
iatrogenicamente, retraumatizando o paciente:
“Se,
na situação analítica, o paciente sente-se ferido, decepcionado, põe-se às
vezes a brincar sozinho, como uma criança desprezada. Tem-se nitidamente a
impressão de que o abandono acarreta uma clivagem de personalidade” (Análise
de crianças com adultos).
         Em relação à conduta do terapeuta que
pode ser prejudicial, Ferenczi salientou:
“Falamos
muito de análise de regressão ao infantil, mas é manifesto que nem nós mesmos
acreditamos a que ponto temos razão. Falamos muito de clivagem da
personalidade, mas parece que não avaliamos, em sua correta medida, a
profundidade dessa clivagem. Se mantemos uma atitude fria e pedagógica,
mesmo na presença de um paciente em opistótonos[2], quebramos o último vínculo
que nos liga a ele. O paciente sem consciência é afetivamente, em seu
transe, como uma criança que não é mais sensível ao raciocínio, mas no máximo à
benevolência materna” (Confusão de línguas entre o adulto e a criança).
         (...) A clivagem, ao contrário do
recalcamento, é um mecanismo defensivo muito arcaico. Ocorre antes da repressão
ou do recalcamento propriamente dito, o qual, para ser ativado, pressupõe um
ego mais forte e coeso, um aparelho psíquico mais desenvolvido e sofisticado.
         Em termos tópicos, a clivagem não se dá
entre as diferentes instâncias psíquicas (id, ego e superego), como nos
casos de neurose, por exemplo, na qual o mecanismo do recalcamento envolve
todas as instâncias psíquicas, além da realidade externa. Na clivagem, a
divisão ocorre no ego e/ou no superego, ficando ali circunscrita. (...)
         Na cisão, duas ou mais partes da
personalidade coexistem simultânea e independentemente, sem que haja entre elas
qualquer conflito. (...) As diversas manifestações clínicas resultantes da
clivagem atestam a ocorrência de choques psíquicos (...). A necessidade de um
manejo clínico especialmente adequado no tratamento do paciente cindido foi um
dos motivos que levaram Ferenczi a desenvolver suas inovações técnicas.
KAHTUNI,
Haydée Christinne e SANCHES, Gisela Paraná. Dicionário sobre o pensamento
de Sándor Ferenczi: uma contribuição à clínica psicanalítica contemporânea. Verbete:
Cisão ou Clivagem do ego. Rio de Janeiro: Elsevier; São Paulo:
FAPESP; 2009.  p. 87, 88, 89 e 90. 
AUTOTOMIA
         Do grego, o prefixo autos
significa “de si mesmo”, e o sufixo tomia, corte, amputação. A autotomia
é um fenômeno defensivo de automutilação espontânea que certos animais utilizam
a fim de garantir sua sobrevivência. o fenômeno descrito por zoologistas
consiste no fato de que os animais amputam uma parte do próprio corpo quando
são ameaçados por predadores em sua integridade física. Em Thalassa, Ferenczi
deu sua explicação de autotomia:
“O
animal desprende de seu corpo, ou seja, ‘deixa cair’ literalmente por meio de
movimentos musculares específicos aqueles de seus órgãos que estiveram submetidos
a uma irritação excessivamente intensa ou que, de algum modo, o façam sofrer.
Certos vermes, por exemplo, colocados nessa situação, são capazes de rejeitar a
totalidade do intestino; outros se fragmentam em pequenos sedimentos. Todo
mundo sabe com que facilidade o lagarto perseguido abandona sua cauda em mãos
do adversário, para em seguida regenerá-la rapidamente”.
         Ferenczi relaciona essa proteção física
efetuada pelos animais com um mecanismo defensivo psicológico utilizado pelo
homem “de fuga psíquica diante de acontecimentos demasiado intensos de
desprazer”.
         A autotomia é uma forma de defesa
arcaica, presente apenas em animais de simplicidade orgânica (crustáceos,
insetos, pequenos répteis). (...)
         Do mesmo modo, na dimensão psicológica,
a autotomia – que é uma forma de cisão – é também uma defesa psíquica primária,
desintegradora, e mais custosa para o aparelho psíquico que o recalcamento, por
exemplo, o mecanismo defensivo mais comumente usado pelos indivíduos
neuróticos.
         Utilizada por crianças pequenas cujo ego
ainda é frágil ou pouco desenvolvido, é também empregada por sujeitos cujos
aparelhos psíquicos não se estruturaram suficientemente bem para que possam
lançar mão de outros mecanismos defensivos mais sofisticados e menos causadores
de sofrimento psíquico.
         No caso de crianças, principalmente as
que se encontram na primeira e na segunda infância, a cisão aparece muitas
vezes como a única alternativa defensiva diante das ameaças à integridade psíquica
e física advindas originalmente do ambiente externo.
[1]
Paul Eugen Bleuler (1857 – 1939) foi um psiquiatra suíço que criou os conceitos
de “esquizofrenia”, “ambivalência” e “autismo”. Manteve relações diretas com
Jung, e suas concepções psiquiátricas terminaram influenciando a psicanálise.
[2]
Opistótonos: espasmos na coluna vertebral.
EM PEDAÇOS: A FRAGMENTAÇÃO NA OBRA DE SÁNDOR FERENCZI
Jô
Gondar
RESUMO
Existem duas maneiras de se pensar a
fragmentação subjetiva na obra de Ferenczi. Os fragmentos podem resultar de um
choque ou podem estar relacionados a uma multiplicidade original da qual a
própria subjetividade deriva. Neste artigo, levo em consideração as duas
perspectivas nos textos ferenczianos, enfocando mais uma delas - o fragmento
como irredutível à unidade. Trata-se de uma questão contemporânea, uma vez que
as subjetividades e suas relações afetivas, estéticas e políticas funcionam
hoje, predominantemente, sob forma fragmentária.
 
INTRODUÇÃO
O filósofo Gilles Deleuze (1953/2006) faz
uma distinção entre dois tipos de ilhas. Existem ilhas que se formam ao se
separar do continente; essas ilhas continentais, como são chamadas, são ilhas
acidentais, derivadas. Nasceram de uma desarticulação, de uma catástrofe, de
uma quebra. Mas existem também as ilhas oceânicas. Estas são originárias; não
derivam da fratura do continente. São criadas a partir de erupções submarinas e
surgem, desde o início, como territórios independentes, com sua própria perspectiva.
Os dois tipos de ilha sugerem dois modos
de se pensar os fragmentos. As ilhas continentais são pedaços referidos a uma
unidade primeira; o fragmento nesse caso é derivado, como no caso de um vaso
que se quebra ou de um corpo que se despedaça. Porém, é possível se pensar
neles de outro modo: assim como as ilhas oceânicas, os fragmentos não seriam
referidos a uma realidade preexistente; seriam múltiplos, espalhados,
independentes e, como tais, irredutíveis à unidade. (...)
As duas maneiras de conceber os fragmentos
estão presentes em Ferenczi. Ele é um pensador das descontinuidades, das
rupturas, dos pedaços e dos restos. E existem, em sua obra, duas formas de
contemplá-los: os fragmentos podem surgir em decorrência de um trauma ou de uma
catástrofe, ou podem ter estado lá desde o início, numa espécie de
multiplicidade originária da qual a própria subjetividade deriva. Creio que é
importante considerar esses dois modos fragmentários sem a prevalência de um
sobre o outro. E não somente porque a presença dos dois seria mais fiel a
Ferenczi e às nossas situações clínicas. A questão é que, se consideramos os
fragmentos apenas como despedaçamento de uma unidade primeira, corremos o risco
de pautar nossa clínica pela bandeira da unidade ou da identidade. Em
contrapartida, se consideramos apenas a multiplicidade originária sem os
traumas e as dores que a vida traz, corremos o risco de transformar o fragmento
em si mesmo em uma bandeira política e em um novo tipo de sistema, justamente
aquilo que Ferenczi tentava evitar na sua teoria e clínica.
Feita essa ressalva, pretendo, neste
artigo, levar em conta as duas perspectivas sobre os fragmentos nos textos
ferenczianos, dedicando-me mais a uma delas - a das ilhas oceânicas. E isso por
dois motivos. A fragmentação como vaso estilhaçado, resultado do choque - como
nas ilhas continentais -, já foi muito abordada nos trabalhos sobre Ferenczi,
mas poucos autores se ocuparam desse pendor original para o fragmento que
encontramos em alguns textos seus. Creio, além disso, que se trata de um tema
bastante atual, que nossos pacientes e nossos encontros no mundo nos obrigam a
enfrentar: hoje, as subjetividades, as relações afetivas, estéticas e políticas
se apresentam frequentemente sob um modo fragmentário. Em um belo livro sobre
as transformações históricas da sensibilidade, Claudine Haroche (2008, p. 219)
observa que o eu e a própria ideia de eu, sua concepção como lugar e condição
de síntese, estão atualmente em questão. Não se trata simplesmente de
reconhecer o descentramento do sujeito a partir do inconsciente; mais do que
isso, trata-se de admitir sua fragmentação, atomização ou dispersão: 
“Os
processos de subjetivação se modificaram com as formas de tecnologia
contemporâneas que induzem a aceleração, a instantaneidade, o imediatismo [...]
Os indivíduos são bombardeados por imagens e sons contínuos, levando à
fragmentação e à dispersão, num predomínio das sensações sobre as percepções”
(HAROCHE, 2008, p. 201-202). 
Por conta disso, somos, enquanto
psicanalistas, convocados a responder a um problema ético fundamental: vamos
manter uma postura nostálgica, lamentando que as formas fragmentárias tenham
tomado o espaço das formas mais sistemáticas ou unitárias, ou vamos refinar
nossa sensibilidade e nossa percepção para aquilo que essas formas subjetivas e
estéticas trazem de novo, de digno e de criativo? Como nos posicionarmos em
relação aos pacientes que, pensando e falando de maneira fragmentária,
mostram-se refratários à associação livre; aos pacientes que não dispõem de
tempo para um tratamento de duas ou três vezes por semana; aos pacientes que
não apresentam uma continuidade em suas relações e em sua vida? 
Para Ferenczi, somos, no início, ilhas
oceânicas. Essa fragmentação originária fica mais clara se entendemos dois
conceitos: o de autotomia e o de autoplastia. Descrita por zoologistas, a
autotomia é uma defesa utilizada por alguns animais que, diante de uma situação
de perigo, se desfazem de parte de seu próprio corpo para salvar o restante.
Ferenczi (1924/1993) relaciona este livrar-se daquilo que incomoda ao preço de
livrar-se de uma parte de si ao modo pelo qual os humanos reagem ao trauma,
utilizando uma defesa mais primária do que o recalcamento: a clivagem psíquica.
É sob o modelo da autotomia que Ferenczi a concebe. Na clivagem, o eu também
destrói a si mesmo ou partes de si, fragmentando-se para salvaguardar a
sobrevivência psíquica. Decompor o eu em pedaços pode ser vantajoso, como
explica Ferenczi na nota de 21.02.1932 do Diário Clínico:
“Fragmentação.
Vantagens psíquicas: poupa-se o desprazer que resulta da colocação em evidência
de certas coerências, abandonando essas coerências. A clivagem em duas
personalidades que nada querem saber uma da outra, e que estão agrupadas em
torno de diferentes tendências, economiza o conflito subjetivo” (Ferenczi,
1932, p. 72). 
O outro conceito importante para se
entender o valor dos fragmentos é o de autoplastia (Ferenczi, 1924/1993). Na
impossibilidade de transformar o mundo para adequá-lo a si - comportamento
denominado aloplástico -, os seres vivos terminam por responder às catástrofes
transformando seu corpo, seu psiquismo ou seu modo de viver - comportamento
denominado autoplástico. A questão é que essa autoplastia é impossível sem a
destruição, parcial ou total, do corpo e do eu ou, em outros termos: a
autoplastia implica a autotomia, a fragmentação, como escreve Ferenczi: 
“‘Comoção’,
reação a uma excitação externa ou interna num modo mais autoplástico (que
modifica o eu) do que aloplástico (que modifica a excitação). Essa neoformação
do eu é impossível sem uma prévia destruição parcial ou total, ou sem
dissolução do eu precedente. Um novo Ego não pode ser formado diretamente a
partir do Ego precedente, mas a partir de fragmentos, produtos mais ou menos
elementares da decomposição deste último.” (Ferenczi, 1932, p. 227). 
Ao fragmentar-se, o eu fica mais
pulverizado, adquire maior plasticidade; um eu mais espalhado e poroso pode
adaptar-se mais facilmente a uma nova situação ou a um trauma. Há uma
positividade na fragmentação, como menciona Ferenczi na nota de 21.09.1930: 
“A
fragmentação pode ser vantajosa: a) pela criação de superfícies maiores contra
o mundo circundante, pela possibilidade de uma descarga afetiva aumentada; sob
o ângulo psicológico: o abandono da concentração, da percepção unificada, faz
desaparecer pelo menos o sofrimento simultâneo de um desprazer com múltiplas
faces. Cada fragmento sofre por si mesmo; a unificação insuportável de todas as
qualidades e quantidades de sofrimento é eliminada” (Ferenczi, 1930/1992, p.
248). 
Até aqui, porém, estamos falando de
fragmentação como defesa, de clivagem como consequência de um trauma. Estamos
falando de ilhas continentais e não de ilhas oceânicas, que aludem a fragmentos
como condição originária. Essa perspectiva começa a se tornar possível quando
Ferenczi indica que a autoplastia e a autotomia, processos que produzem
fragmentação, não são apenas mecanismos de defesa, mas também modos de
subjetivação e de expansão psíquica. 
Para Ferenczi, todo processo criativo é
necessariamente autoplástico e, por esse motivo, destruição e criação aparecem
conjugados: “O processo de destruição tem por consequência a produtividade”
(Ferenczi, 1932/1990, p. 73). A decomposição é essencial para a criação e a
reconstrução da vida, como ele explica em Thalassa: os organismos são
levados “a se reconstruir a partir de seus próprios restos, utilizando até
mesmo a força inversa produzida pela destruição parcial a fim de dar
prosseguimento ao seu desenvolvimento” (Ferenczi, 1924/1993, p. 322). Ferenczi
não concebe a vida sem destruição. Entre ambas, porém, não existe conflito.
Trata-se de um modo de pensar não dualista, que admite a pulsão de morte sem
que esta se oponha à pulsão de vida. Em vez de oposição ou conflito, teríamos
tendências de composição e tendências de decomposição participando de um
movimento vital mais amplo: “Mesmo a matéria tida como ‘morta’, logo,
inorgânica, contém um germe de vida e, por conseguinte, tendências regressivas
rumo ao complexo de ordem superior que lhes deu origem [...] Não existe vida
sem participação de tendências de morte” (Ferenczi, 1924/1993, p. 325).
Poderíamos acrescentar, seguindo Ferenczi, que não existe criação sem
participação das tendências destrutivas. Traumas e catástrofes não são
empecilhos para o desenvolvimento e a atividade criadora, mas justamente aquilo
que fomenta ambos. Toda situação de catástrofe, ele escreve em Thalassa,
“desperta a tendência à autotomia que dormita no organismo […], e os elementos
desse começo de decomposição passam a ser os materiais da evolução ulterior”
(Ferenczi, 1924/1993, p. 321). Este processo é descrito poeticamente em
Autotomia, de Wislawa Szymborska: “Diante do perigo, a holotúria[1] se divide em
duas:/deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo/salvando-se com a outra
metade./ Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação” (Szymborska, 2016,
p. 142). O poema alude também a uma espécie de cálculo a partir do qual os
organismos aceitam, de maneira ativa, sua autodestruição: “Se há justiça, ei-la
aqui/ Morrer só o necessário, sem exceder a medida/ Renascer o tanto preciso a
partir do resto que se preservou”. 
O processo de destruição de si também é
utilizado por Ferenczi para pensar a criação de novos órgãos e de novas
possibilidades subjetivas e culturais: a partir dos restos de um processo
autodestrutivo, a vida inventa formas novas ou mais sofisticadas, seja no plano
da natureza ou no plano da cultura, já que o psicanalista húngaro não separa os
dois. Tanto a respiração pulmonar, a digestão, a vertebralidade, quanto a
memória, a inteligência, o pensamento, a linguagem, teriam se tornado possíveis
a partir de uma destrutividade criadora. Nesse ponto, Ferenczi concorda com
Sabina Spielrein, que propõe “a destruição como causa do devir”: “O mais
surpreendente na autodestruição é o fato de que, neste caso (na adaptação, o
reconhecimento do mundo circundante, a formulação de um julgamento objetivo), a
destruição converte-se verdadeiramente na ‘causa do devir’” (Ferenczi,
1926/1993, p. 402). O próprio modo ferencziano de pensar o trauma e seus
efeitos dá mostras do potencial criador das tendências destrutivas. Para ele, o
trauma não seria apenas uma ferida na memória, mas justamente aquilo que
deveria constituí-la: “A memória é uma coleção de cicatrizes de choques no eu”
(Ferenczi, 1932, p. 150). É também dessa maneira que ele explica o nascimento
do intelecto: “O intelecto só nasce a partir do sofrimento […], não
simplesmente de sofrimentos comuns, mas só do sofrimento traumático” (Ferenczi
, 1931/1992, p. 254). Mesmo a imitação que provém de situações aterrorizantes -
aquilo que Ferenczi chama de identificação com o agressor - encontra-se na raiz
da memória e da capacidade narrativa: “[Uma parte do ego] tenta tirar proveito
dessa demolição. As impressões de mimetismo traumático são utilizadas como
traços mnésicos úteis ao Ego [...]. A fala é um relato da história do trauma”
(Ferenczi , 1932, p. 151). 
Somente nos últimos textos de Ferenczi
conseguimos compreender o motivo mais profundo desse empuxo à fragmentação como
estratégia de defesa e, ao mesmo tempo, de criação de formas novas. É quando
aparece o modo fragmentário originário, não derivado e irredutível a uma
unidade primeira. Ele é descrito inicialmente no texto A criança mal
acolhida e sua pulsão de morte (1929/1992a). Ao investigar a gênese das
tendências inconscientes de autodestruição, Ferenczi se dá conta de que essas
tendências estão presentes desde o nascimento: diferentemente do adulto, o bebê
estaria “muito mais perto do não ser individual, do qual não foi afastado pela
experiência da vida” (Ferenczi, 1929/1992a, p. 50). “Os seres humanos no início
de suas vidas não possuem individualidade”, escreve Ferenczi (1932/1990, p.
189). Seria então muito mais fácil deslizar novamente para esse estado de não
ser diante das dificuldades trazidas pelo ambiente, isto é, diante da falta de
acolhimento dos pais. O bom acolhimento seria capaz de criar os contornos
subjetivos necessários para um sujeito resistir aos ataques do mundo, na
contramão das tendências para a autodestruição, que são fortes no nascimento. O
psiquismo de um bebê, diz Ferenczi (1932/1990, p. 189), “não terminou de se
cristalizar, mais ainda se encontra, de certa forma, num estado de dissolução”.
Ferenczi não considera essa falta de
defesas de maneira apenas negativa; a criança desprovida de filtros possui uma
superfície de comunicação mais ampla com o universo, o que permite que ela
“saiba muito mais sobre o mundo do que nos permite o nosso estreito horizonte”.
(Ferenczi, 1932/1990, p. 190). De fato, os órgãos dos sentidos dos adultos
servem “no essencial, para excluir uma grande parte do mundo externo (de fato,
tudo, exceto o que é útil)” (Ferenczi, 1932/1990, p. 190). Devido a este estado
dissolvido e à falta de meios de proteção, as crianças pequenas teriam uma
sensibilidade bem maior do que a dos adultos, mantendo-se “em ressonância com o
mundo circundante”. (Ferenczi, 1932/1990, p. 117). 
Mas existe outro modo de pensar este
estado. Antes da concepção, escreve Ferenczi, “a pessoa ainda estava, de alguma
forma, dissolvida no universo” (Ferenczi, 1932/1990, p. 117). Nessa mesma nota,
ele propõe um paralelo fisiológico para essa ideia: “O indivíduo, antes da
concepção, estava repartido em, pelo menos, duas metades. Uma parte formava o
elemento constitutivo da mãe, a outra, do pai” (Ferenczi, 1932/1990, p. 117). A
esta partilha inicial, Ferenczi dará o nome de “clivagem precoce”, apresentando
sobre ela uma hipótese inusitada: “Formula-se neste ponto a questão muito
precisa de saber se este estado de clivagem precoce não é a prefiguração de
todas as clivagens ulteriores e também a da clivagem da personalidade na
psicose” (Ferenczi, 1932/1990, p. 117). Desse modo, é proposta uma modalidade
de cisão que não se reduz à reação a um perigo ou a um mecanismo de defesa.
Trata-se de uma clivagem originária, fornecendo o modelo para todas as que lhe
seguirão; as autoclivagens narcísicas, decorrentes de traumas, estariam
reatualizando a cisão primordial. É a essa condição originária que nos
referimos quando usamos a imagem das ilhas oceânicas, de uma multiplicidade de
fragmentos irredutível a uma unidade primeira. Ao falar de clivagem precoce,
Ferenczi sugere que não nos fragmentamos apenas como resultado de um trauma;
nosso estado originário já seria dissolvido, clivado, fragmentado, e a unidade
só passa a ser mantida “pela pressão do mundo circundante” (Ferenczi,
1932/1992, p. 239). 
Essa clivagem precoce nada tem a ver com
uma desintegração. Trata-se de um estado primevo, anterior à própria
diferenciação entre integração, não integração ou desintegração. É no empuxo
deste estado inicial que as mudanças desfavoráveis no meio ambiente podem
provocar mais tarde a desintegração, entendida como retorno ao modo
fragmentário. Mas ainda que possa prefigurar as clivagens ulteriores, a
clivagem inicial nada tem de patológica em si mesma. É uma clivagem primária,
constitutiva, o que significa dizer que ela é uma forma de estruturar o
psiquismo, possibilitando um modo legítimo e não patológico de subjetivar-se. 
É através desse modo fragmentário que,
segundo Ferenczi, uma criança se relaciona com o mundo exterior. A porosidade e
a plasticidade desta forma de funcionamento permitem que a criança faça mais do
que se identificar com figuras: ela é capaz de mimetizar o mundo. Como afirmou
Walter Benjamin (1933/1985) - e é curiosa a proximidade entre esses dois
pensadores, Ferenczi e Benjamin - as crianças, quando brincam, não se
transformam apenas em médico ou professor, identificando-se com figuras
parentais, mas mimetizam também moinhos de vento e trens, objetos do mundo.
Esse funcionamento mimético, implicando uma adaptação autoplástica ao exterior,
é o que prevalece na linguagem da ternura. (Hárs, 2015). Nesse aspecto, a
ternura de Ferenczi é bem diferente da ternura de Freud: a ternura freudiana é
uma paixão inibida em seu alvo, possuindo uma direção aloplástica, enquanto que
a ternura ferencziana é um fenômeno autoplástico, sendo condição básica de um
tipo de inteligência sensível que funciona num registro diverso tanto da razão
quanto da paixão. (Hárs, 2015). O psicanalista húngaro chega a mencionar a
“suprema sabedoria e onisciência infantis”, afirmando que é a regressão a este
estado poroso que torna os médiuns, os psicóticos e os bebês sábios tão
sensíveis e sagazes nas suas relações com o ambiente (Ferenczi, 1932/1990, p.
118). 
A ideia do fragmento enquanto modo
originário encontra algumas dificuldades na tradução latina dos textos de
Ferenczi. Um bom exemplo se encontra no pequeno texto (também ele um fragmento)
intitulado Toda adaptação é precedida de uma tentativa inibida de
desintegração, de 10.08.1930. “Todo ser vivo reage a uma excitação de
desprazer com uma dissolução que começa por uma fragmentação”, escreve Ferenczi
(1930b/1992, p. 239). Ele explica, então, como a plasticidade adquirida pela
fragmentação torna possível uma nova adaptação. No texto original em alemão e
na tradução inglesa, lemos: 
“A
autoplastia precede sempre a autotomia. A tendência para a autotomia é
inicialmente completa; entretanto, uma corrente oposta (pulsão de
auto-conservação, pulsão de vida) inibe a desintegração e impele para uma nova
consolidação, desde que a plasticidade resultante da fragmentação o permita.”
(Ferenczi, 1930c/1994, p. 220, grifos meus). 
É surpreendente que a tradução francesa
transmita a concepção contrária, e que as traduções espanhola e brasileira,
baseadas na tradução francesa, tenham reproduzido o erro. Em português, lemos:
“A autoplastia precede sempre a autonomia. A tendência para a autonomia é
inicialmente completa” (Ferenczi, 1930b/1992, p. 239, grifos meus). Ao
substituir autotomia por autonomia, passa-se a ideia de que nossa tendência
primeira é para a individualidade, e não para a fragmentação, como consta no
texto original. Para Ferenczi, mesmo a plasticidade resulta da fragmentação, e
é ela que nos fornece uma adaptabilidade corporal e psíquica. Não caminhamos,
neste caso, da unidade para a cisão, e, sim, ao contrário, dos fragmentos para
uma unidade provisória. 
Essa ideia é importante para a clínica,
principalmente em nossos dias. Se consideramos as ilhas oceânicas, admitimos
uma fragmentação que não deriva de uma integração preexistente; nesse caso,
nosso objetivo último, na clínica, não pode ser o de retornar a ela. Buscar
integrar as partes clivadas implica, muitas vezes, em normatizar o
funcionamento psíquico dos pacientes que nos procuram, submetendo-os a um
modelo subjetivo que estaria servindo de padrão universal para todos os outros.
Um modelo que, na verdade, nos espelha. Para escaparmos desse tipo de
aspiração, seria preciso abrir mão das pretensões unificadoras e do nosso
próprio narcisismo. Como afirmam Mello, Carneiro e Magalhães (2019, p. 10):
“não se trata de desclivar o psiquismo”. 
Mas, nesse caso, como trabalhar com a
fragmentação? Vimos que, em Ferenczi, a fragmentação não é sempre patológica;
ela constitui a vida psíquica e a enriquece. Por isso, uma vida fragmentária
não é, necessariamente, uma vida pobre; a fragmentação cria superfícies maiores
para lidar com o mundo circundante e, com isso, permite que se desenvolvam a
percepção, a memória e a capacidade de pensar. Por isso, Ferenczi (1932/1990,
p. 150) afirma que a destruição do eu é a condição prévia da percepção
objetiva. Nesse sentido, fragmentar-se é um trabalho, e um trabalho criador
(Knobloch, 1998). O eu ferencziano não é um eu circunscrito, mas um eu que se
alarga constantemente, tanto pelos choques quanto pelas introjeções. Um eu que
só se constitui na medida em que se fragmenta ou se dissolve. 
Muitos de nossos pacientes funcionam e se
expressam sob uma forma prioritariamente fragmentária: silêncios, falas
interrompidas ou pouco encadeadas, dificuldades com a associação livre,
oscilações afetivas. O desafio do analista é o de acolher a fragmentação sem
qualquer expectativa de coerência ou sistematicidade, acompanhando as variações
afetivas de seus pacientes e deixando-se sensibilizar por elas. Isso significa
suportar estes momentos fragmentários sem buscar unir as partes, nem mesmo
confrontá- las entre si - “você está dizendo isso agora, mas no início da
sessão disse o contrário”, atitude de quem pretende pegar o sujeito em
flagrante delito. Se seguirmos com Ferenczi, a ideia não é aprofundar a cisão
nem eliminá-la, e, sim, acolhê-la como modo válido de ser, com todo o seu
inacabado, seus rasgos e seus remendos. 
Ao invés de colar o que está partido,
trata-se de dar a isso um destino. Se o analista sustenta e positiva a
fragmentação como modo subjetivo legítimo, o paciente se sente mais à vontade
para se deslocar por entre os pedaços, deixando de se culpar por não conseguir
uma coerência ou não sentir-se viável como pessoa. O sofrimento do sujeito
decorre, na maior parte das vezes, do seu esforço fracassado de integração. O
ambiente não lhe permitiu viver tranquilamente suas experiências de não
integração, ou, o que vem a resultar no mesmo, lhe impôs um modo de se integrar
sem levar e conta seu ritmo e seu modo de ser. Aprisionado entre a imposição de
integração e sua própria impossibilidade, o sujeito não é capaz de dar um
destino para os fragmentos que o constituem. Se abandonamos esse ímpeto
integrador e propiciamos ao paciente uma experiência diferente, trabalhando com
seus fragmentos um a um, a “culpabilidade por inadequação” da qual ele sofria,
desaparece. O sujeito se torna capaz de transitar sem culpa pelos pedaços, de
perceber neles uma força e de lhes fornecer um destino e um sentido, sem se
preocupar em reuni-los. A integração é um destino possível e legítimo para um
sujeito em análise, mas ele está longe de ser o único. Na experiência
analítica, o paciente será capaz de dar um rumo aos seus fragmentos, e não cabe
a nós demarcá-lo antecipadamente ou por ele. 
Uma análise não é simplesmente um encontro
no qual se decifra o sofrimento, se desvela segredos da existência ou se religa
o que está separado. Mesmo que possa ocorrer, não é isso o fundamental de uma
experiência analítica. O que faz diferença numa análise, como afirmou Pontalis
(2014), é a experiência de intimidade. Se o analista acompanha as diversas
variações subjetivas de um paciente, ainda que elas não possuam encadeamento ou
coerência, instaura-se uma intimidade que não possui equivalente em nenhum outro
lugar, em nenhuma outra forma de relação, para além do dizível, narrável ou
integrável 
REFERÊNCIAS
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W. Um amor feliz. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Artigo baseado
em conferência apresentada em Fragmentations. Meeting on Sándor Ferenczi
Studies and Research. Lisboa: 29 fev. 2020.
 
GONDAR,
Jô. Postado em: Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica. Ágora, v.
XXIV N° 1, pp. 47-52, janeiro/abril, Rio de Janeiro, 2021.

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