CIVILIZAÇÃO (CULTURA)
Com
a publicação de O mal-estar na civilização, seu livro campeão de vendas
e talvez o mais acessível para o público leigo, Sigmund Freud estendeu seu
interesse pela mente dos indivíduos para os aspectos neuróticos de toda a
sociedade. Essas novas ideias, reunidas num trabalho bastante pessimista, foram
influenciadas pela experiência avassaladora da Primeira Guerra e num tempo em
que o planeta enxergava o fundo do poço com a quebra da Bolsa de Nova York e a
ascensão do Partido Nazista na Alemanha. O que não faltava era inspiração para
que Freud apontasse seu charuto para as origens da infelicidade.
Antes,
só mais uma observação sobre as diversas traduções de Freud: o título original
desse livro é Das Unbehagen in der Kultur (literalmente, O mal-estar
na cultura), e suas primeiras versões para o inglês e o francês ganharam os
títulos de Civilization and its Discontents (Civilização e seus
desgostos, numa tradução livre) e Malaise dan la Civilisation (Mal-estar
na civilização). No Brasil, você encontra tanto "na cultura" quanto
"na civilização". Como esta última tem sido a mais usada, e Freud não
diferencia muito cultura e civilização, é com ela que vamos seguir.
Continuando,
então. Nesse livro, Freud diz que é mais fácil achar um venusiano montado num
unicórnio que um ser humano feliz de verdade num centro urbano. Bom, ele não
usa essas palavras exatas, mas é isso o que ele quer dizer. Em função de todas
as circunstâncias da nossa vida, os objetivos do princípio do prazer e de
evitar a dor não são atingidos, a não ser temporariamente. “Aquilo que chamamos
'felicidade', no sentido mais estrito, vem da satisfação repentina de
necessidades altamente represadas, e por sua natureza é possível apenas como
fenômeno episódico.”
Já
no outro lado da moeda, a infelicidade tem três caminhos muito eficazes para se
instalar nos nossos corações e mentes: os sofrimentos do corpo (a doença, o
envelhecimento), a hostilidade do mundo externo (no passado, grandes
predadores; no presente, Jornal Nacional só falando em desgraça) e as relações
humanas em todo o seu potencial de frustração (como as redes sociais deixam bem
claro).
Segundo
Freud, isso é tão óbvio para o indivíduo que a maioria desiste da felicidade
utópica e concentra seus esforços na redução de danos, quer dizer, dos
sofrimentos. E isso acontece pelas seguintes vias: a neurose, a intoxicação —
vamos beber para esquecer — e a psicose. Ou pela religião também, que reúne um
pouco de cada uma dessas saídas, rebaixando o status da vida na Terra, fazendo
com que a pessoa troque o raciocínio pela fé e também propondo um mundo de
fantasia, onde tudo é dogma, em substituição às incertezas do mundo real. “A
este preço, pela veemente fixação de um infantilismo psíquico e inserção num
delírio de massa, a religião consegue poupar a muitos homens a neurose
individual. Mas pouco mais que isso", afirma.
Daqueles
três caminhos para a infelicidade, Freud coloca seu foco na insatisfação que
vem das relações humanas - mais especificamente, no âmbito da formação da
civilização. Ao combinar suas teorias do inconsciente com teses sociais, o pai
da psicanálise lança aqui mais uma de suas ideias mais significativas e
duradouras: a de que, por maiores que sejam os avanços tecnológicos e
científicos, voltados para a melhoria da qualidade de vida da população, há uma
divergência inconciliável entre a civilização que trouxe todo esse progresso e
as nossas pulsões mais primitivas.
Embora
essa evolução nos tenha dado remédios contra os males do corpo, uma certa
segurança contra as hostilidades do mundo externo e também uma regulamentação
dos vínculos entre as pessoas, o processo civilizador exige em troca um
sacrifício daquilo que temos de mais humano. A saber: sexo e violência. Por
isso, é impossível ser feliz vivendo numa sociedade moderna. Nesse aspecto, as
comunidades da Pré-História davam um banho na gente.
Até
o ponto que é possível conhecer, não havia muita restrição cultural para o sexo
entre os nossos ancestrais mais distantes. Uma pintura rupestre de cerca de
3000 a.C., encontrada na Itália, descreve um homem transando com um asno. Já na
Sibéria foram achadas pinturas de homens copulando com alces. Como o
surrealismo foi um movimento artístico que só surgiu milênios depois dessas
imagens, tudo indica que elas representem situações que de fato aconteciam - os
nossos antepassados recorrendo até à zoofilia para atender a suas pulsões.
Quanto
à agressividade... bom, sem os freios da civilização, as aglomerações mais
primitivas tinham um espaço e tanto para botar para fora sua pulsão de morte.
Mesmo muito antes que espadas e escudos tivessem sido inventados, o indivíduo
já tinha as principais ferramentas para destruir, ferir e suportar os piores
golpes: seu próprio corpo.
Como
conta o jornalista Felipe van Deursen no livro 3 mil anos de guerra, estudos
apontaram que nossa mão foi moldada pelos milhões de anos de evolução não
apenas para lidar com alimentos, mas também para as vias de fato, a violência:
"A mão cresceu a fim de formar o punho — uma arma embutida nos nossos
corpos". Até como consequência disso, nosso rosto é do jeito que é para
aguentar socos. "Cientistas analisaram crânios de homens modernos e de
australopitecos e concluíram que as partes que sofrem mais fraturas (mandíbula
e as regiões próximas a olhos, nariz e bochechas) são as que desenvolveram mais
resistência", conta Van Deursen. "Ou seja, quanto mais se apanhava,
mais os ossos fortes eram selecionados para ser passados adiante a cada
geração, de modo a suportar mais pancadas."
Essas
evidências confirmam o argumento freudiano de que os homens primitivos, embora
convivessem com o medo constante - de animais ferozes, de um raio, de não
encontrar comida no dia seguinte e, principalmente, de outros homens -, não
viviam colocando obstáculos para a satisfação do princípio do prazer - nada a
ver com o padrão de comportamento hoje em dia. "O homem civilizado trocou
um tanto de felicidade por um tanto de segurança", escreveu Freud. Pelo
menos se você não for psicótico ou fora da lei.
Para
que sejamos cidadãos civilizados, pagadores de impostos, devemos negar as
exigências mais fortes das nossas pulsões, que clamam por sexo sem-vergonha e
agressão ao próximo - impulsos de vida e de morte que nos transformam nessa
máquina bípede que você vê no espelho. O passo cultural decisivo seria a
substituição do poder do indivíduo, "condenado como força bruta",
pelo da comunidade. E isso acontece estabelecendo limites às possibilidades de
gratificação do homem - pela consolidação do Direito. Curiosamente, essa mesma
comunidade cheia de proibições pode agir eventualmente como se fosse um
indivíduo ultraviolento, atacando outros grupos em troca de territórios ou
influência política. Mas nós, seres pequenininhos na nossa individualidade, não
podemos.
Então,
como não queremos que nossos filhos tenham de nos visitar na cadeia, nossas
pulsões condenáveis buscam saída em atividades sublimadas - como ser viciado no
game Grand Theft Auto em vez de sair atropelando pessoas, ou canalizar a
sua energia sexual para um curso de cupcakes. "A sublimação torna
possível que atividades psíquicas mais elevadas, científicas, artísticas,
ideológicas, tenham papel tão significativo na vida civilizada", afirma
Freud. "É o destino imposto à pulsão pela civilização." O problema é
que essas realizações substitutas jamais conseguem o nível de satisfação do
cumprimento do impulso original.
E
o ser humano, lá no fundo, sabe disso, apesar de passar a vida tentando se
enganar. Assim, no caso extremo em que a pulsão de morte fala mais alto, e as
censuras do superego não dão conta do cavalo selvagem do id, indivíduos se
rebelam contra sua própria cultura com uma agressividade que excede bastante o
nível da agressão originalmente suprimida, ameaçando a sociedade de
desintegração. E o que vem em seguida pode ser um tiroteio dentro de uma escola
ou um avião se chocando contra prédios cheios de civis.
Sigmund
Freud também especula sobre como a civilização poderia controlar esses nossos
demônios homicidas - para que tudo não acabe em cinzas. Ele rejeita a ideia de
que o comunismo da época seria uma solução apaziguadora por reduzir o poder
individual e promover um desfrute comunitário de todos os bens. "Nada
mudamos no que toca às diferenças de poder ou de influência que a agressividade
usa para os seus propósitos, e tampouco na sua natureza. Ela [a pulsão
agressiva] não foi criada pela propriedade [privada]."
Um
dos caminhos que ele aponta está no próprio conflito psíquico. A tensão entre
ego e superego instala um "sentimento consciente de culpa",
manipulado pela civilização para que nem pensemos em atos condenáveis - já que
nos culpamos até por pensar em coisa ruim. E a religião, segundo Freud, soube
se aproveitar muito bem disso inventando um sinônimo para o sentimento de
culpa: o pecado. É uma emoção que tem origem também no medo da autoridade, algo
que surgiu lá na primeira infância, deslocada a partir da figura paterna, e que
acaba lotando as igrejas de fiéis "tementes a Deus Pai
Todo-Poderoso".
Não
que isso nos torne mais felizes, claro. O superego nos impõe exigências
dificílimas de cumprir, causando grande infelicidade - ou um mal-estar enorme.
A tal ponto que Freud afirma que, muitas vezes, na prática da psicoterapia, o
esforço do terapeuta está em baixar as exigências do superego do indivíduo. Por
isso, nem a utopia do comunismo nem a da religião satisfazem Freud como um
caminho seguro para o equilíbrio entre pulsões humanas e civilização. E a
psicanálise? Será que resolveria?
Talvez
fosse o caminho mais óbvio para Freud. Afinal, foi ele quem identificou que,
assim como acontece com os indivíduos, também temos comunidades neuróticas -
por influência de seus esforços de civilização. Basta verificar, em tempos
atuais, como a sociedade ainda lida tão mal com a sexualidade - com repressão,
aversão e imaturidade, para ficar em três pontos óbvios.
Mas
o austríaco adota prudência, talvez precavido contra a reação vingativa que
líderes mundiais poderiam ter contra os diagnósticos de seus governos insanos.
"De que adiantaria a mais pertinente análise da neurose social se ninguém
possui a autoridade para impor ao grupo a terapia?"
CARVALHO, Alexandre. Freud
sem traumas. São Paulo: Leya Brasil, 2021. p. 185 a 189.
Em O mal-estar na civilização (1930), Freud definiu
assim esta última: “O termo civilização (Kultur) designa a soma das
produções e instituições que distanciam a nossa vida da dos animais nossos
ancestrais, e que servem a dois fins: proteger o homem contra a natureza e
regulamentar as relações dos homens entre si.” Em O futuro de uma ilusão (1927),
Freud tinha dado, entretanto, uma definição mais ampla de civilização: “A
cultura humana – entendo por cultura humana tudo aquilo por meio do qual a vida
humana se elevou acima das condições animais e por onde ela difere da vida dos
brutos (...) – que, como se sabe, apresenta duas faces ao observador. Ela
compreende, por uma parte, todo o saber e todo o poder adquiridos pelos homens
para domar as forças da natureza e conquistar delas os bens suscetíveis de
satisfazer as necessidades humanas; por outra parte, todas as disposições
necessárias para regular as relações dos homens entre si, em especial, a
repartição dos bens acessíveis”.
Essa definição deixa de lado, entretanto, muitos aspectos da
noção de civilização que Freud tinha mencionado em numerosos textos, dos quais
vale citar também Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna
(1908). Entre esses temas, vamos encontrar:
a relação da civilização com o Superego e com a sublimação, suas
consequências sobre a neurose, a origem da civilização e as diferentes atitudes
dos indivíduos diante da civilização, por exemplo, em função do seu sexo. (...)
É igualmente possível considerar que (...) sua própria
teoria da produção da civilização e de seu vínculo com a sexualidade (...) pode
ser vista como um “ardil da civilização”, no mesmo sentido dialético em que
Hegel fala do “ardil da Razão”. Esse ardil está relacionado com o fato de que
os homens produzem a civilização ao transformar as metas e objetos de suas
pulsões em razão do processo sublimatório que lhes permite, por outro lado,
realizá-los sob essa forma. Mas, assim procedendo, eles consolidam o edifício
cultural que vai pesar sobre eles e seus semelhantes e impor-lhes restrições,
desta vez no sentido do recalque e da repressão. “Ao preço de que evoluções, de
que recalques, de que sublimações, de que reações psíquicas, esse homem normal
vai sendo constituído, pouco a pouco, ele, que é o beneficiário – e também, em
parte, a vítima – de uma educação e de uma cultura tão arduamente adquiridas?”
(Sobre a psicanálise, 1910). (...) Na perspectiva dialética, a
sublimação de uns pode tornar-se suporte da repressão de outros que não
participam nesse processo de autoformação, (o que) constitui efetivamente um
“ardil da civilização”[1]. (...) A civilização
apresenta-se como uma entidade em si, um dado para o sujeito ao qual ela se
impõe: “O desenvolvimento da civilização apresenta-se-nos como um processo de
um gênero particular que se desenrola ‘acima’ da humanidade e do qual, no entanto,
numerosas particularidades nos incutem a sensação de algo que nos seria
familiar. Temos a possibilidade de caracterizar esse processo por meio das
modificações a que devem ser submetidos elementos fundamentais bem conhecido
que são os instintos humanos, instintos cuja satisfação constitui, no entanto,
a grande tarefa econômica da nossa vida” (Mal-estar na civilização).
Pois a civilização, ao impor a frustração sexual, exerce uma
ação direta sobre a gênese das neuroses, como dizia Freud desde 1908 a
propósito de “A moral sexual civilizada e a doença nervosa dos tempos
modernos”. Ele não se cansará de repetir que a sublimação não deve ser uma
norma, dado que ela só é acessível a alguns: “O domínio pela sublimação, pela
derivação das forças pulsionais sexuais dos objetivos sexuais para objetivos
culturais mais elevados, apenas uma minoria o consegue realizar e, mesmo assim,
de um modo intermitente e com muito maior dificuldade no período do ardor
juvenil”. Para outros, a submissão, em particular à moral sexual, tem
consequências negativas que vão da neurose a um rebaixamento dos objetos
sexuais. (...) Freud (...) observa: “O impedimento da satisfação erótica
acarreta uma certa agressividade contra a pessoa que impede essa satisfação, e
é necessário que, por seu turno, essa agressividade seja reprimida. Mas, uma
vez reprimida e transferida para o superego, a agressividade é a única que se
converte em sentimento de culpabilidade” (Mal-estar na civilização).
As instâncias ideais repartem entre si, portanto, o processo
civilizador: do lado do superego para a coerção, do lado do ideal do ego para a
criação cultural e a admiração que ela engendra: “Assim a satisfação que um
ideal proporciona aos participantes de uma dada civilização é da ordem
narcísica, repousa no orgulho a respeito do que já foi realizado com êxito” (O
futuro de uma ilusão). Assim, o processo civilizador manifesta de novo o
seu caráter instável, uma vez que, ao reforçar os nacionalismos, o “narcisismo
das pequenas diferenças”, mas também os ideais culturais de um povo, pode
servir de pretexto para uma volta à mais selvagem das lutas sob a forma de
guerra.
A civilização apresenta-se, de fato, como essa entidade
separada, embora produzida pelo próprio homem. Sempre excessiva em suas
exigências, ela também é prematura em sua antecipação, ainda que necessária: “O
defeito congênito e irremediável de nossa civilização, como de toda a cultura
humana, está em impor à criança, apesar de ser frágil de espírito e dominada
por seus instintos, a tomada de decisões que só a inteligência madura do adulto
pode justificar” (O futuro de uma ilusão).
MIJOLLA-MELLOR, Sophie
de. Verbete: civilização (Kultur). In.: MIJOLLA, Alain (Org.) Dicionário
Internacional da Psicanálise. Vol. A-L. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p.
347, 348 e 349.
O
mal-estar na cultura: livro de Sigmund Freud publicado em
1930, sob o título Das Unbehagen in der Kultur. (...) Durante muito
tempo, O mal-estar na cultura foi considerado proveniente da categoria
de escritos freudianos qualificados, não sem uma certa condescendência, de
sociológicos ou antropológicos. Longe de ratificar esse ponto de vista, Jacques
Lacan, no seminário do ano de 1959-1960, dedicado à ética da psicanálise, falou
dele como um “livro essencial”, no qual Freud realizara “a síntese de sua
experiência” e discorrera sobre a tragédia da condição humana. Peter Gay, por
seu turno, estima que O mal-estar na cultura é o texto “mais sombrio” de
Freud, aquele em que se aborda sem disfarce e no tom mais grave a questão da
“miséria humana”, à qual a crise econômica, a quebra da bolsa de Nova York,
ocorrida dias antes de Freud entregar o manuscrito a seu editor, e a ascensão
do partido hitlerista na Alemanha conferem toda a sua amplitude. Com esse
ensaio, Freud pretende estender à cultura em geral o exame que fez da religião
em O futuro de uma ilusão. Como que para sublinhar a continuidade entre
as duas obras, começa registrando, para criticá-lo, um comentário que a leitura
de O futuro de uma ilusão havia sugerido a seu amigo Romain Rolland.
Escrevendo a Freud para lhe agradecer pela remessa do livro, o autor de Acima
da confusão lastimara que, no texto, não se abordasse a questão da origem
do “sentimento religioso”. Com esse termo Rolland designava uma “sensação
religiosa”, isto é, o “fato simples e direto da sensação do ‘eterno’”, e a
qualificava de “sentimento oceânico”.
Freud
rejeita de imediato a ideia de que tal sensação possa constituir a essência da
religiosidade: a seu ver, ela é, em vez disso, uma repetição do sentimento de
plenitude que o bebê experimenta antes da separação psicológica da mãe,
sentimento de plenitude este que é característico do eu primário, do eu-prazer
do qual o eu adulto, um eu apequenado pelo encontro com o princípio de
realidade, sente saudade periodicamente. Se acreditamos encontrar nesse
“sentimento oceânico” a fonte da necessidade religiosa, é por esquecermos que
essa necessidade não é primária, que não passa de uma reformulação da
necessidade de proteção pelo pai: o “sentimento oceânico” evocado por Romain
Rolland, definitivamente, é apenas uma tendência ao restabelecimento do
narcisismo ilimitado que é específico do eu primário.
Feito
esse esclarecimento, Freud recapitula brevemente as teses desenvolvidas em O
futuro de uma ilusão: lembra que a vida humana se caracteriza pelo fato de
que os objetivos do princípio de prazer, a busca do gozo máximo e a evitação da
dor, não podem ser atingidos, em razão da própria “ordem do universo”. Decorre
daí que o homem está muito mais apto a vivenciar a infelicidade: aquela que lhe
é infligida pelo sofrimento do corpo, pela hostilidade do mundo externo e pela
insatisfação que lhe proporcionam as relações com os outros. Assim como o
princípio de prazer submete-se ao princípio de realidade ao se confrontar com o
mundo externo, o homem, frente a esses obstáculos, renuncia à felicidade, para
a qual obviamente não foi feito, e procura meios de atenuar ou eliminar o
sofrimento. Freud faz o levantamento de três meios essenciais, a neurose, a
intoxicação e a psicose, cujas formas são próprias a cada indivíduo. É
precisamente essa especificidade que a religião procura suprimir ao propor uma
modalidade uniforme de adaptação à realidade cujas características são uma
desvalorização da vida terrena, a substituição do mundo real por um mundo
delirante e uma inibição intelectual.
Dentre
as três causas do sofrimento humano, Freud opta por estudar nesse ensaio a que
nasce do caráter insatisfatório das relações humanas. É papel da cultura, por
meio das instituições que a materializam - o Estado, a família -, remediar essa
causa de sofrimento, mas, na medida em que os remédios propostos pela cultura
são coercitivos e se afiguram outros tantos limites à busca do prazer, ela logo
se evidencia como uma nova fonte de sofrimento. E, nessa condição, é objeto de
recusas, frequentemente acompanhadas de apelos por um retorno ao estado natural
e elogios ao estilo de vida dos primitivos, que não dependiam dos progressos da
tecnologia moderna.
Freud
afirma que é possível explicar essa rejeição da cultura, mas se recusa a
justificá-la, porque ela se fundamenta no esquecimento do caráter protetor
desta última. Esse esquecimento é, antes de mais nada, o da já antiga
constatação feita por Hobbes (1588-1679) e confirmada por Freud sem hesitação:
“O homem é o lobo do homem.” Ora, essa dimensão, que seria preciso nomear e
teorizar, dá uma razão de ser ao aspecto coercitivo da cultura e confere à
organização social seu estatuto de compromisso precário: o homem não pode viver
plenamente feliz nela, mas não consegue sobreviver sem ela. O homem e a mulher,
portanto, estão presos num antagonismo: precisam dos outros, mas sonham viver
afastados dessa sociedade que lhes limita as pulsões sexuais. Para tentar aplacar
os sofrimentos de que esse antagonismo é fonte, a cultura se esforça por criar
vínculos substitutos: laços amorosos, laços libidinais desviados de seus
objetivos sexuais. É o caso do mandamento que o cristianismo retomou à sua
maneira - “Amarás o próximo como a ti mesmo” -, bem como o da utopia comunista,
sobre a qual Freud proferiu uma condenação inapelável nesse contexto. Essas
tentativas só podem estar fadadas ao fracasso, na medida em que se fundamentam
numa negação da constatação formulada por Hobbes, num desconhecimento
voluntário da universalidade da hostilidade dos homens uns para com os outros,
numa recusa a levar em conta a agressividade e a crueldade inerentes ao gênero
humano, dimensões estas cuja permanência é demonstrada tanto pela história
quanto pela atualidade.
É
o exame dessa dimensão da agressividade, da hostilidade e da crueldade que
constitui o eixo central da sequência da reflexão de Freud.
Se
a agressividade é inerente à natureza humana, é por também ser fonte de prazer
e, como tal, ser complementar ao amor. Testemunho disso são as tentativas que
se fazem de unir os homens por laços amorosos desviados de seu objetivo sexual.
Elas só podem ser bem-sucedidas, com efeito, sob a condição de abandonarem
outros homens, que se transformam no alvo da agressividade. Freud depara, nesse
ponto, com a problemática desenvolvida em Psicologia das massas e análise do
eu e, em particular, com a dimensão do “narcisismo das pequenas
diferenças”, que Lacan reformulou, em Situação da psicanálise e formação do
psicanalista (1956), falando de “terror conformista”. Para dar um
fundamento teórico a essa dimensão da agressividade, Freud previne o leitor da
necessidade de levar em conta a parte da teoria psicanalítica cuja elaboração
lhe deu maior dificuldade: a teoria das pulsões. Nesse ponto, a meta do ensaio
torna-se explícita: trata-se de analisar a natureza do “mal-estar” com a ajuda
da dualidade pulsional forjada alguns anos antes, em Mais-além do princípio
de prazer, a dualidade que opõe amor e ódio, Eros e morte.
Esses
confrontos pulsionais imperam tanto na vida inconsciente do indivíduo quanto em
sua vida social. Daí esta definição da cultura e de seu desenvolvimento: “O
combate da espécie humana pela vida.” Cabe, portanto, apreender por que meios a
cultura pode conseguir controlar essa agressividade, manifestação explícita da
pulsão de morte. Um deles é identificável na história do desenvolvimento
psicológico do homem: nesta se constata, com efeito, que a agressividade é
voltada contra o eu, introjetada nele, para então ser retomada por uma parte do
eu, o supereu, que se coloca em oposição à parte restante do eu. O supereu,
essa “consciência moral”, manifesta em relação ao eu, portanto, a agressividade
que o eu desejaria exprimir a respeito dos outros, e a tensão que assim se
instala entre o eu e o supereu dá margem ao “sentimento de culpa”. É possível,
por conseguinte, afirmar que a cultura domina a agressividade dos indivíduos
fazendo com que ela seja vigiada por intermédio de um intruso, o supereu, que
funciona como um governador dentro de “uma cidade conquistada”.
O
que acontece com esse sentimento de culpa, que surge com tamanha constância,
quer o mal tenha sido praticado, quer tenha permanecido em estado de intenção?
Na verdade, ele tem uma origem dupla. Para começar, é produto da angústia
sentida pela criança diante da autoridade paterna (origem externa): temendo não
mais ser amada, a criança é levada a renunciar a satisfazer as pulsões, guiadas
unicamente pela busca do prazer. Mas, quando a autoridade é internalizada no
supereu, por intermédio da introjeção da agressividade que suscitava, a origem
do sentimento de culpa passa a ser interna: desse momento em diante, já não é
possível mascarar do supereu aquilo que persiste no eu do desejo de satisfazer
a pulsão. O sentimento de culpa, gerado pela cultura (representada pelo
supereu), permanece então predominantemente inconsciente e, na maioria das
vezes, é vivido sob a forma de um mal-estar ao qual se atribuem outras causas.
Se
o supereu realmente desempenha o papel que acaba de lhe ser reconhecido no
processo cultural, não poderíamos ficar tentados a falar de civilizações ou
épocas “neuróticas”, que clamariam por soluções terapêuticas? Freud, que em
inúmeras outras ocasiões revelou-se um adepto, às vezes audacioso demais, do
raciocínio analógico, demonstra aqui extrema prudência, lembrando que os
conceitos, assim como os seres humanos, “não podem ser arrancados sem perigo da
esfera em que nasceram e se desenvolveram”. De fato, havendo chegado a esse
ponto de seu ensaio, Freud sente com clareza que a questão que se coloca diante
dele já não está ligada à ciência, mas ao prognóstico. Serão essas sociedades
civilizadas capazes de dominar a pulsão destrutiva, passível de levá-las à
perdição? Freud se recusa a dar a essa pergunta a resposta consoladora que
esperam e estão prontos a fornecer os revolucionários e os pietistas, reunidos
numa mesma ilusão. Deixa a questão em aberto, atribuindo a agitação e angústia
crescentes de seus contemporâneos à sua capacidade tecnológica de exterminarem
uns aos outros, até o último deles. “E agora”, conclui, “é de se esperar que a
outra das duas ‘potências celestes’, o Eros eterno, empenhe um esforço para se
afirmar na luta que trava contra seu adversário não menos imortal.”
Um
ano depois, em 1931, havendo o partido nazista acabado de obter quase 39% dos
votos nas eleições, Freud acrescentou, como que para se livrar de um resto de
otimismo: “Mas, quem pode presumir o sucesso e o desfecho?”
ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. Verbete: Mal-estar na cultura. p. 490, 491 e 492.
[1] O ardil ou a astúcia da razão, em Hegel, é uma “inteligência” oculta, inconsciente da história, uma razão que não é meramente individual, mas pertence ao próprio ser humano. Ela é ardilosa ou astuciosa porque, embora conduza a ação dos seres humanos, frequentemente exigindo sacrifícios individuais, não é notada, percebida, conscientizada como razão universal que conduz o processo histórico. Em Freud, a civilização atua no supereu (que em certa medida é inconsciente) exigindo algo semelhante: um sacrifício da felicidade individual em benefício da segurança e da sobrevivência coletiva, universal, histórica.
CIVILIZAÇÃO E TRABALHO
Se deixarmos fora
de cogitação impulsos internos pouco conhecidos, podemos dizer que a principal
força motivadora no sentido do desenvolvimento cultural do homem foi a
exigência externa real, que retirou dele a satisfação fácil de suas
necessidades naturais e o expôs a perigos imensos. Essa frustração externa o
impeliu a uma luta com a realidade, a qual findou parcialmente em uma adaptação
a ela e, em parte, no controle sobre ela; contudo também o impeliu a trabalhar
e viver em comum com os de sua espécie, e isso já envolvia uma renúncia de
certo número de impulsos instintuais impossíveis de ser socialmente
satisfeitos. Com os avanços ulteriores da civilização cresceram também as
exigências da repressão. A civilização, afinal de contas, está construída inteiramente
sobre a renúncia ao instinto, e todo indivíduo, em sua jornada da infância à
maturidade, precisa, em sua própria pessoa, recapitular esse desenvolvimento da
humanidade a um estado de criteriosa resignação. A psicanálise demonstrou que
foram predominantemente, embora não exclusivamente, os impulsos instintuais que
sucumbiram a essa supressão cultural. Parte deles, contudo, apresenta a
característica valiosa de se permitirem ser desviados de seus objetivos
imediatos e colocar assim sua energia à disposição do desenvolvimento cultural,
sob a forma de tendências ‘sublimadas’. Outra parte, porém, persiste no
inconsciente como desejos insatisfeitos e pressiona por alguma satisfação,
ainda que deformada.
FREUD. Sigmund. Uma breve descrição da psicanálise.
In: Obras Completas. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 234.
Parece (...) que toda civilização tem de
se erigir sobre a coerção e a renúncia ao instinto; sequer parece certo se,
caso cessasse a coerção, a maioria dos seres humanos estaria preparada para
empreender o trabalho necessário à aquisição de novas riquezas. (...) Com o
reconhecimento de que toda civilização repousa numa compulsão a trabalhar e
numa renúncia ao instinto, provocando, portanto, inevitavelmente, a oposição
dos atingidos por essas exigências, tornou-se claro que a civilização não pode
consistir, principal ou unicamente na própria riqueza, nos meios de adquiri-la
e nas disposições para sua distribuição, de uma vez que essas coisas são
ameaçadas pela rebeldia e pela mania destrutiva dos participantes da
civilização. Junto com a riqueza deparamo-nos agora com os meios pelos quais a
civilização pode ser defendida: medidas de coerção e outras, que se destinam a
reconciliar os homens com ela e a recompensá-los por seus sacrifícios.
FREUD. Sigmund.
Futuro de uma ilusão. In: Obras Completas. Vol.
XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 17 e 20.
Não é possível, dentro dos limites de um
levantamento sucinto, examinar adequadamente a significação do trabalho para a
economia da libido. Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o
indivíduo tão firmemente à realidade quanto a ênfase concedida ao trabalho,
pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na
comunidade humana. A possibilidade que essa técnica oferece de deslocar uma
grande quantidade de componentes libidinais, sejam eles narcísicos, agressivos
ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional, e para os relacionamentos
humanos a ele vinculados, empresta-lhe um valor que de maneira alguma está em
segundo plano quanto ao de que goza como algo indispensável à preservação e
justificação da existência em sociedade. A atividade profissional constitui
fonte de satisfação especial, se for livremente escolhida, isto é, se, por meio
de sublimação, tornar possível o uso de inclinações existentes, de impulsos
instintivos persistentes ou constitucionalmente reforçados. No entanto, como
caminho para a felicidade, o trabalho não é altamente prezado pelos homens. Não
se esforçam em relação a ele como o fazem em relação a outras possibilidades de
satisfação. A grande maioria das pessoas só trabalha sob a pressão da
necessidade, e essa natural aversão humana ao trabalho suscita problemas
sociais extremamente difíceis.
FREUD. Sigmund. O mal-estar na civilização. In: Obras Completas. Vol XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
p. 87 e 88.
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