CULPA
Sentimento
de culpa: expressão utilizada em psicanálise numa acepção muito ampla. Pode
designar um estado afetivo consecutivo a um ato que o sujeito considera
repreensível, e a razão invocada pode, aliás, ser mais ou menos apropriada (remorso
do criminoso ou autorrecriminações aparentemente absurdas), ou ainda um
sentimento difuso de indignidade pessoal sem relação com um ato determinado de
que o sujeito se acuse.
Por
outro lado, é postulado pela análise como sistema de motivações inconscientes
que explica comportamentos de fracasso, condutas delinquentes, sofrimentos que
o indivíduo inflige a si mesmo, etc.
Neste
último sentido, a palavra “sentimento” só deve ser utilizada com reservas, na
medida em que o sujeito pode não se sentir culpado ao nível da experiência
consciente.
Inicialmente,
o sentimento de culpa foi descoberto, sobretudo na neurose obsessiva, sob a
forma das autorrecriminações, das ideias obsedantes contra as quais o sujeito
luta porque elas lhe surgem como repreensíveis, e por fim sob a forma da
vergonha ligada às próprias medidas de proteção.
Já
se pode notar a esse nível que o sentimento de culpa é parcialmente
inconsciente, na medida em que a natureza real dos desejos em jogo (agressivos
particularmente) não é conhecida pelo sujeito.
O
estudo psicanalítico da melancolia iria resultar numa teoria mais elaborada do
sentimento de culpa. Sabe-se que esta afecção é caracterizada particularmente
por autoacusações, uma autodepreciação, uma tendência para a autopunição que
pode levar ao suicídio. Freud mostra que existe aqui uma verdadeira clivagem do
ego entre acusador (o superego) e acusado, clivagem que, por um processo de
interiorização, resulta também de uma relação intersubjetiva; “...as autorrecriminações
são recriminações contra um objeto de amor, que são retomadas deste para o
próprio ego [...]; as queixas [do melancólico] são queixas contra”.
Este
delineamento da noção de superego iria conduzir Freud a atribuir ao sentimento
de culpa no conflito defensivo um papel mais geral. Já em Luto e melancolia
(Trauer und Melancholie, 1917) reconhece que "... a instância
crítica que aqui está separada do ego por clivagem poderia igualmente em outras
circunstâncias demonstrar a sua autonomia...”; no capítulo V de O ego e o id
(Das Ich und das Es, 1923), consagrado às “relações de dependência do
ego”, dedica-se a distinguir as diferentes modalidades do sentimento de culpa,
desde a sua forma normal até suas expressões no conjunto das estruturas
psicopatológicas.
Com
efeito, a diferenciação do superego como instância crítica e punitiva para o
ego introduz a culpa como relação intersistêmica no seio do aparelho psíquico.
“O sentimento de culpa é a percepção que corresponde no ego a essa crítica [do
superego].”
Nesta
perspectiva, a expressão “sentimento de culpa inconsciente” assume um sentido
mais radical do que quando designava um sentimento inconscientemente motivado;
agora, é a relação entre o superego e o ego que pode ser inconsciente e
traduzir-se em efeitos subjetivos de onde toda a culpa sentida estaria, em
último caso, ausente. E assim que, em certos delinquentes, “... podemos
demonstrar que existe um poderoso sentimento de culpa, existente antes do
delito e que, portanto, não é sua consequência mas seu motivo, como se o
sujeito sentisse como um alívio poder ligar este sentimento inconsciente de
culpa a algo de real e de atual”.
O
paradoxo que reside em falar de sentimento de culpa inconsciente não escapou a
Freud. Neste sentido, concordou que a expressão “necessidade de punição” podia
parecer mais adequada. Mas note-se que esta última expressão, tomada no seu
sentido mais radical, designa uma força tendente ao aniquilamento do sujeito, e
talvez irredutível a uma tensão intersistêmica, enquanto o sentimento de culpa,
seja consciente ou inconsciente, se reduz sempre a uma mesma relação tópica - a
do ego e do superego, que é também um vestígio do complexo de Édipo. “Podemos
adiantar a hipótese de que uma grande parte do sentimento de culpa deve
normalmente ser inconsciente, porque o aparecimento da consciência moral está
intimamente ligado ao complexo de Édipo, que pertence ao inconsciente.” (Freud)
LAPLANCHE E
PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes,
2016. Verbete: sentimento de culpa. p. 472, 473 e 474.
O custo de um alto nível
de civilização é o sentimento de culpa.
Sigmund
Freud, O mal-estar na civilização.
Esta
é a surpreendente premissa do principal estudo de Freud sobre o desenvolvimento
da "civilização": Nós sacrificamos a felicidade por um alto nível de
civilização, e o mecanismo da nossa infelicidade é um sentimento de culpa
crescente, muitas vezes uma culpa decorrente de impulsos inconscientes. Neste
capítulo, investigaremos a compreensão de Freud a respeito de como e por que
essa felicidade foi perdida, e como essa compreensão se relaciona com a teoria
do superego.
Uma
das minhas clientes acabou concordando em ajudar uma colega que tinha um
difícil trabalho a realizar. Era um compromisso que ela não queria realmente
assumir. Após refletir sobre o assunto, ela reuniu coragem para desfazer o
acordo. A colega com quem ela tinha se comprometido acusou-a raivosamente de
trair uma promessa. A primeira reação da minha cliente foi de raiva. Antes de
mais nada, não desejara assumir o compromisso, e depois achava que tinha sido
descaradamente manipulada. A raiva durou cerca de trinta minutos, sendo
substituída por um doloroso sentimento de culpa. Ela achava que não tinha o
direito de desapontar a colega, independentemente de quais fossem os seus
desejos.
Esse
enredo, ou algum parecido, é aflitivamente familiar para muitos de nós, embora
talvez não o seja para todos. Poderíamos conceber isso como uma culpa ruidosa,
uma culpa que se introduz com tamanho estardalhaço que é impossível
confundi-la. Aqueles de nós sujeitos a esse tipo de culpa, que frequentemente
se sentem péssimos em relação ao que fizeram, disseram ou mesmo pensaram,
consideram-na uma das verdadeiras complicações da vida. Para aqueles que têm um
caso particularmente sério desse tipo de culpa, não é nem preciso que a outra
pessoa fique com raiva ou faça uma reclamação. Ser apenas assertivo já é o
bastante para acionar a culpa. Esse é um território familiar; há anos existem
livros e oficinas dedicados a ajudar aqueles que sofrem dessa culpa ruidosa.
Pecados
imaginados de omissão podem acionar essa culpa tão prontamente quanto pecados
de permissividade. Tenho um cliente que durante anos sentiu uma culpa de fundo
que aparecia sempre que ele estava distraído ou não ocupado. Ele acreditava que
sempre havia coisas que deveria ter feito ou deveria fazer. Às vezes, conseguia
identificar as tarefas por fazer; frequentemente, elas não eram identificadas.
Em
seguida, existe a culpa "reservada". A culpa reservada não se anuncia
enquanto culpa, como ocorre com a culpa ruidosa. Pessoas reservadamente
culpadas se punem de maneiras enigmáticas para o observador despreparado,
maneiras que levam o terapeuta psicodinâmico a inferir que elas estão
inconscientemente tentando reduzir um pouco dessa culpa por meio de punição ou
fracasso que ocasionam a si mesmas:
-
Há alguns anos, um importante candidato à presidência foi publicamente acusado
de um escandaloso adultério. Indignado, ele negou a acusação, dizendo: "Se
vocês não acreditam em mim, sigam-me." Naquela noite, ele se encontrou com
a amante, e com ela permaneceu a noite inteira. Os repórteres o denunciaram, e,
na manhã seguinte, suas esperanças presidenciais haviam se desvanecido para
sempre.
-
Estudantes "esquecem" a data de uma prova crucial para a qual estão
bem preparados.
-
Um funcionário insulta o patrão logo após saber que está sendo cogitado para
uma almejada promoção.
-
Um homem consegue por fim convencer uma mulher ardentemente desejada a ir para
a cama com ele, e então, para seu desapontamento, mostra-se impotente.
Além
da culpa "ruidosa" ou consciente e da culpa "reservada",
que não parece culpa, mas apenas providencia uma punição que inconscientemente
parece merecida, existe a culpa "silenciosa". As pessoas afligidas
por esse tipo de culpa não se sentem culpadas. Elas não incorrem em uma punição
inexplicável. Simplesmente se sentem pessoas ruins boa parte do tempo, ou
sentem uma vaga infelicidade e descontentamento. Em última análise, essa é a
forma de culpa mais comum, mais grave e, por ser constante, mais destrutiva.
Na
visão de Freud, os seres humanos, caso desimpedidos, buscariam egoisticamente
seus interesses, satisfações e prazeres. Se alguém ou algo interferisse, eles
ficariam com raiva e, se acreditassem que eram fortes o bastante, removeriam
sem hesitar o obstáculo. Quando muitas pessoas vivem em vizinhança próxima,
essa tendência, caso desinibida, conduziria ao caos. Não se sabe ao certo se
Freud conhecia O leviatã, de Thomas Hobbes (1651), mas o ponto de vista
aqui descrito é idêntico àquele proposto na obra. Como Hobbes, Freud achava
que, para as civilizações existirem, particularmente as mais complexas, era
necessário haver um mecanismo que reprimisse essa agressão desinibida e
egocêntrica. Uma autoridade externa é uma solução parcial, mas as autoridades
não podem se fazer presentes em todos os lugares. É preciso um mecanismo
interno, um representante interno da autoridade que possa estar de serviço o
tempo todo e em todos os lugares. Freud entendia que essa necessidade fazia com
que uma autoridade interna evoluísse na espécie humana e se tornasse cada vez
mais severa. (...)
Essa
é a parte da personalidade a que Freud deu o nome de superego. Na visão de
Freud, o superego se desenvolve da seguinte maneira:
Se
crianças pequenas forem deixadas soltas, buscarão livremente o que lhes dá
prazer e lhes satisfaz. No início, é necessário regulá-las fisicamente, para
que não interfiram com a satisfação dos outros. Logo, no entanto, a mera
presença da figura parental já é suficiente para inibi-las. Para Freud, esse é
um importante passo no desenvolvimento do superego. Por que a simples presença
da autoridade é suficiente para impedir a criança de buscar o que lhe
interessa? As crianças aprendem rapidamente a antecipar a punição, mesmo que
seja uma punição branda, como uma repreensão. Se eu derramar o pudim no tapete,
minha mãe me repreenderá e eu não me sentirei bem. Mas por que não me sentirei
bem? Terei me divertido derramando o pudim no chão, e as palavras subsequentes
da minha mãe não me machucarão de verdade. Mas não me sentirei bem porque estou
aprendendo rapidamente como é muito importante o amor da minha mãe. Dependo
totalmente dela; não conseguiria sobreviver sem ela. Se ela me abandonar, todas
as minhas necessidades ficarão insatisfeitas. Isso inclui tanto as necessidades
físicas quanto as emocionais. Preciso que ela me ame. O perigo de perder o amor
da mãe, uma vez aprendido, ecoa pelo resto da vida[1].
Uma
das minhas clientes começou a terapia me assegurando que seu relacionamento com
a mãe era satisfatório - que não havia nele nada particularmente significativo.
Logo seu relato revelou que ela repetidas vezes tem a seguinte experiência: por
alguma boa razão, ela acha que é necessário faltar a um encontro com uma amiga
íntima. Em seguida, ela sofre um grave ataque de ansiedade. Quando lhe indaguei
sobre essa questão, ela explicou a ansiedade, dizendo recear que, por ter
faltado ao compromisso, a amiga tivesse ficado furiosa. Ela viveu essa mesma
sequência de eventos inúmeras vezes; quando encontra a amiga de novo, esta tem
sempre uma postura inteiramente tranquilizadora. Essa tranquilidade, no
entanto, não impede o próximo ataque de ansiedade. Depois de meses de trabalho,
ela começou a recobrar memórias de um olhar distante percebido no rosto da mãe
que a convenceu de que, de algum modo, ela a havia afastado de si. Seu medo
inconsciente de perder o amor da mãe se traduz na marcante insegurança com as
amigas.
Em
seguida, vem o passo que Freud considerava ser o mais importante de todos, de
fato aquele que é essencial. Não há nem de longe policiamento ou pais
suficientes que possam estar em toda parte. O que nos impede de egoisticamente impor
a nossa busca de prazer a qualquer pessoa que seja fraca o bastante? Claro que
existem muitas pessoas que fazem exatamente isso, e então temos os problemas
criminais e do forte explorando o fraco. Mas, se todos fizessem isso, teríamos
o caos, que seria o fim da civilização. A maioria das pessoas não faz isso,
mesmo quando a autoridade não está fisicamente presente. Por que não?
Existem
dois motivos. O primeiro se torna agora evidente em decorrência do trajeto
percorrido até aqui: temos medo de alguém descobrir e nos punir. A punição pode
ser a perigosa perda do amor ou punição física de verdade. Minha cliente tem
medo que sua amiga fique com raiva. Eu tenho medo de receber multas por excesso
de velocidade.
E
se não houver a possibilidade de alguém vir a descobrir? E se a autoridade
estiver realmente ausente? Por que então eu me negaria o impulso natural de
busca de satisfação? Freud ensina que não conseguiríamos conviver uns com os
outros, nem do modo como atualmente o fazemos, se a única proteção que
tivéssemos contra o egoísmo e a agressividade naturais de nossos vizinhos fosse
o medo que eles têm da autoridade externa. Uma autoridade mais onipresente e
ameaçadora é necessária.
Abrimos
este capítulo invocando o nome da consciência ou, no vocabulário de Freud, o
superego. O último passo em nosso trajeto é levar a autoridade para o interior
da nossa cabeça, de modo que ela esteja sempre presente em nós e seu julgamento
seja sempre perigoso. A consciência é essa autoridade introjetada. Se o
primeiro motivo para nos negarmos satisfação é o medo da punição externa, o
segundo motivo possível, mesmo na ausência da autoridade, é a autoridade
ausente não estar de modo algum ausente. Ele, ela ou eles estão muito presentes
- dentro da nossa cabeça. Desse modo, ainda existe o perigo da punição: o
tormento do superego. Em nossa vida mental, é a esse tormento que damos o nome
de "culpa". Quando resistimos a um prazer proibido, fazemo-lo com medo
desse tormento, e, quando cedemos a ele, pode ser que tenhamos de pagar por
isso com o sofrimento que o superego poderá nos infligir. Freud utilizava a
palavra "remorso" para descrever a punição de uma ação proibida pelo
superego.
Não
é difícil imaginar que autoridade é essa que se aloja dentro da nossa cabeça. É
claro que no início, e de forma muito poderosa, são os pais. Um dos insights
mais valiosos de Freud foi sobre o fenômeno da identificação. Ele nos revela
muito sobre como introjetamos aspectos dos outros em nós mesmos para formarmos
nossa personalidade. Nossos pais são os primeiros e mais poderosos objetos de
identificação. (...) Um importante mecanismo da resolução do complexo de Édipo
é a identificação com o rival temido, o progenitor do mesmo sexo. Um importante
aspecto dessa identificação é a função parental de legislar e impor a lei.
Ambos os pais dizem "Não deverás" a respeito de muitas coisas, e, no
caso do complexo de Édipo, é meu rival quem diz: "Não cobiçarás minha
parceira ou meu parceiro." Por meio dessa identificação, introjeto em mim
essas proibições, inclusive a do incesto. À medida que as introjeto, elas se
tornam aspectos importantes do meu superego.
Existe
uma importante diferença, como juiz, entre a autoridade externa e o superego, e
é com essa diferença que temos de lidar, enquanto nos esforçamos para permitir
mais alegria e realização em nossa vida civilizada. A diferença é a seguinte: a
autoridade externa pode conhecer apenas nossas ações, só conseguindo, portanto,
puni-las. O superego, estando localizado dentro da nossa cabeça, conhece não
apenas nossas ações, mas nossos desejos, fantasias e intenções. Ele não é
mitigado pelas afirmações de que uma determinada fantasia era apenas uma
fantasia e não havia qualquer intenção de concretizá-la. Sua existência está
sujeita à lei do processo primário, no qual o desejo é equivalente ao feito.
Assim, o superego nos punirá não só por uma ação, como também por uma intenção.
Em algumas ocasiões, é possível que a punição seja tão severa quanto se
tivéssemos colocado em prática a intenção.
Logo
investigaremos a ideia de simples pensamentos que fazem com que nos sintamos
culpados - como isso pode ocorrer não é imediatamente claro. Mas se somos
capazes de demonstrar que Freud estava certo quando afirmou que os pensamentos
podem nos tornar culpados, então fica claro que a nossa felicidade e paz mental
estão numa posição precária. Imagine-se vivendo cercado de uma polícia muito
rigorosa que pune leves infrações de um código rígido. Isso não seria muito
divertido, mas provavelmente a pessoa poderia aprender a ter muito cuidado e,
assim, não se meter em encrencas. Em seguida, imagine que esse código rigoroso
inclui os pensamentos falados. Sabemos que isso é exasperante, mas ainda assim
as pessoas que fossem cuidadosas poderiam evitar atrair uma atenção indesejada
para si. Mas agora imagine que a polícia inventou um aparelho de raios X mental
que lê os pensamentos, e que os pensamentos proibidos são severamente
punidos[2]. Então está na hora de
começar a traçar um plano para emigrar.
Na
ausência de uma ação proibida, estaríamos propensos a nos sentirmos culpados em
virtude de um simples pensamento ou de uma intenção? Algumas pessoas, parte do
tempo, outras pessoas, grande parte do tempo, se sentem conscientemente
culpadas, de fato muito culpadas, por causa de seus pensamentos. Os exemplos
mais óbvios são pessoas devotadamente religiosas que acreditam que certos
pensamentos são pecaminosos; na verdade, que muitos de seus pensamentos são
pecaminosos. Há situações conhecidas de religiosos que se sujeitaram às mais
severas privações e austeridades numa tentativa de livrar-se desses pensamentos
pecaminosos. Existem muitas histórias de santos que tentam libertar o corpo dos
pensamentos pecaminosos por meio de jejuns e mortificações, inclusive a
seguinte, sobre São Francisco:
“Pois,
se, como acontece, uma tentação da carne por vezes o assaltasse, ele se
atiraria dentro de uma vala cheia de gelo, em pleno inverno, e permaneceria
dentro dela até não haver mais qualquer vestígio de algo carnal presente. E de
fato [seus seguidores] fervorosamente seguiam o seu exemplo dessa grande
mortificação.”[3]
Muitas
pessoas que não aspiram à santidade têm um pensamento ou desejo ocasional, em
relação ao qual se sentem conscientemente culpadas. Não é incomum alguém que se
sente sobrecarregado pela invalidez de um parente querido descobrir em si o
desejo de que ele morra e o deixe livre. Não é incomum, também, um pai que
percebeu subitamente que a filha se tornou uma mulher reconhecer em si urna
eclosão de desejo por ela. Cada uma dessas descobertas pode muito bem ser
acompanhada de um ataque de culpa consciente.
No
entanto, a maioria de nós, durante a maior parte do tempo, não sente culpa
consciente por causa de um simples pensamento ou de um desejo. Se recuso o
ansiado bolo de chocolate ou a pessoa proibida do sexo desejado, se resisto ao
impulso de dizer algo realmente asqueroso a meu adversário, pode ser que eu
sinta algum arrependimento melancólico, mas é improvável que eu conscientemente
venha a me sentir culpado em virtude do desejo.
Embora
possa não me sentir conscientemente culpado em relação a esses desejos, anseios
proibidos não são negligenciados pelo superego. As funções do superego são em
boa parte inconscientes, e seu grande poder depende disso. Se meu superego
fosse inteiramente consciente, eu seria capaz de aceitar ou rejeitar seus
comandos de acordo com meus padrões adultos e esclarecidos. Se ele me
advertisse a respeito de uma ação proibida quando eu era criança, meu ego
adulto poderia simplesmente rejeitar a imposição, reconhecendo que esta não é
mais válida ou relevante. Mas sabemos que o inconsciente não obedece a essas
regras. Na esfera do processo primário, não existe passado ou futuro. Antigas
imposições são tão atuais hoje e tão rigidamente impingidas quanto eram no tempo
em que eu era criança. Como essa é a esfera do processo primário, o desejo é
tão pecaminoso quanto o ato, e deve ser punido. A teoria psicanalítica é uma
teoria de conflito interior, de uma mente dividida em relação a si mesma.
Existem poucos exemplos mais vívidos do que a punição agressiva do superego
contra o ego.
Começamos
este capítulo observando que, além da culpa ruidosa e da culpa reservada, que
todos conhecemos muito bem, existe também a culpa silenciosa. Podemos agora
entender o que é isso e como acontece. Quando meu superego me pune por um
desejo proibido, tudo se passa no domínio velado do inconsciente e assume a
forma de uma culpa inconsciente. Como é inconsciente, não a reconheço como
culpa e não sei pelo que estou sendo punido. Sei apenas que me sinto mal; sinto
uma infelicidade e um descontentamento indefinidos.
Existe
uma terrível ironia nisso tudo: quanto mais virtuoso sou, maiores as chances de
eu sentir essa culpa silenciosa. Freud assinalou que as autobiografias dos
santos estão repletas de lamentações de pecados. Ele explicou essa ironia,
dizendo que, assim como cada impulso satisfeito reduz o anseio frustrado por
aquele prazer, cada prazer negado intensifica esse anseio. Quanto mais esse
anseio aumenta, mais punitivo o superego se torna. Freud entendia que os
impulsos agressivos reprimidos tendiam particularmente a ocasionar essa culpa
silenciosa. Existe uma clara implicação no trabalho posterior de Freud,
especialmente em O mal-estar na civilização, de que, embora um indivíduo
"civilizado" possa conceber que a satisfação sexual pode ser
compatível com a vida civilizada, não há como imaginar que os impulsos
agressivos das pessoas possam ser saciados sem destruir a comunidade. Portanto,
esses impulsos tendem a ser os mais severamente recalcados e, de acordo com o
raciocínio de Freud, produzem a culpa silenciosa mais severa.
Quando
éramos crianças, cada impulso negado abrandava a autoridade e nos protegia da
culpa. Eu me continha para não bater na minha irmã mais nova e era recompensado
com a aprovação da minha mãe e com a ausência de culpa. No entanto, no momento
em que a autoridade está dentro da minha cabeça e tem acesso a meus desejos, a
situação se inverte. Cada impulso negado intensifica agora a minha culpa. Freud
descreveu essa situação da seguinte maneira:
“Aqui,
a renúncia instintiva não possui mais um efeito completamente liberador; a
continência virtuosa não é mais recompensada com a certeza do amor. Uma ameaça
de infelicidade externa - perda de amor e castigo por parte da autoridade
externa - foi permutada por uma permanente infelicidade interna, pela tensão do
sentimento de culpa.” (O mal-estar na civilização)
Os
seres humanos têm uma forte necessidade de viver em grupo, próximos uns dos
outros. Mas essa necessidade entra em conflito com sua agressividade inata e
seu desejo de se satisfazer egoisticamente. Para Freud, a solução parecia
consistir no desenvolvimento da consciência. Se a consciência tivesse se
restringido a refrear a agressão externa, e o tivesse feito com um êxito bem
maior do que o alcançado, isso teria sido uma solução satisfatória. Mas ela vai
além disso: nos ataca por causa dos nossos pensamentos, pensamentos sobre os
quais não temos qualquer controle. Freud acreditava que isso não era verdadeiro
para todos. Ele acreditava que havia uma ampla variação na frequência e na
severidade dos ataques de culpa. Nem todos, ele disse, experimentam os frequentes
acometimentos de infelicidade e de descontentamento que são a expressão da
culpa inconsciente. Mas para ele, no entanto, isso ocorria com a maioria de
nós, e o ataque que sofremos do superego em virtude dos pensamentos sobre os
quais não temos controle algum levou-o a dizer que o preço que pagamos para
podermos viver próximos e interdependentes é a perda da felicidade, por
intermédio de um sentimento de culpa.
Gostaria
de ilustrar o poder prejudicial da culpa inconsciente descrevendo dois dos meus
clientes. Embora um deles tivesse consciência do seu sentimento de culpa, e o
outro não, a culpa destrutiva estava profundamente entranhada em ambos.
Jerry
é o cliente que mencionei anteriormente neste capítulo, aquele que passava
grande parte do tempo sentindo uma culpa perturbadora, por causa das coisas que
deveria ter feito e não fizera. Sempre que concluía uma tarefa que o estivera
atormentando, esta era substituída imediatamente pela seguinte. Ele pensava
nisso como sua lista mágica de "coisas a fazer", que aumentava em
dois itens sempre que ele removia um. Em nosso mundo a mil por hora, quase
todos nós temos a sensação de que a lista de afazeres está sempre aumentando.
Alguns aceitam tal fato com um deleite desvirtuado, outros o consideram
simplesmente aborrecido, mas parece haver muitos que, como Jerry, sentem uma
culpa de verdade por causa disso.
Existe
uma lembrança da infância de Jerry que frequentemente lhe vem à mente. Ele
nutria uma grande admiração pelo pai, como também um medo considerável.
Desejava que o pai tivesse uma boa impressão dele, em geral, duvidava que isso
ocorresse. Certa noite, ainda cedo, quando tinha cerca de 12 anos, disse ao
pai: "Terminei o dever de casa. Posso ir até a esquina?" A resposta
do pai produziu uma marca indelével no seu cérebro: “Você não está tirando 10
em tudo.” A conotação era inconfundível: sempre existe algo mais a fazer. É
improvável que esse singular incidente seja a única causa da culpa incessante
que ele sentia no decorrer da vida adulta, mas simboliza uma atitude que ele
tinha internalizado a partir de inúmeras experiências. Se almejava obter a
admiração do pai, precisava trabalhar incessantemente por ela. E mesmo assim,
como as tarefas indispensáveis não tinham fim, era impossível obtê-la. Quando
Jerry começou o processo terapêutico comigo, seu pai havia falecido havia muito
tempo. Era o seu superego agora quem lhe dizia que havia mais por fazer e o
punia pelas tarefas (tantas vezes não especificadas) irrealizadas. Além disso,
por debaixo dessa identificação, havia a raiva inconsciente do pai, por tê-lo
sobrecarregado com metas inatingíveis. Ao tormento pelas tarefas irrealizadas,
o superego adicionava uma punição por essa raiva inconsciente.
Kimberly
veio ao meu consultório quando tinha 20 e poucos anos. Ela parecia possuir tudo
de bom: era brilhante, charmosa e bonita. O problema apresentado era que não
saía com um homem desde quando estava no ensino médio, e mesmo assim não saíra
muito naquela época. Embora não mencionasse isso, também parecia levemente
deprimida. Kimberly fazia o melhor que podia para evitar os homens, e quando
não conseguia recusava seus convites. Não tinha a menor ideia do que a levava a
agir assim. E nem eu, por muitos meses. Então, certo dia, uma colega de
trabalho lhe disse carinhosamente: "Kimberly, você é realmente muito
bonita." Sua reação foi impressionante. Ela ruborizou, furiosa, deixou o
aposento apressada, e então teve um grave ataque de pânico. Por ocasião de
nossa sessão seguinte, ela já estava calma o bastante para começar a explorar o
significado do incidente. No decorrer dos meses seguintes, a história se
desdobrou. Ela tinha uma mãe jovem e muito atraente que, ao que parece, não estava
preparada para ser tão completamente sobrepujada pela filha. Quando Kimberly
chegou à adolescência, e começou a ficar evidente o quanto era bonita, sua mãe
aparentemente se viu como uma miss destronada e teve uma grave depressão. Os
sentimentos competitivos da mãe nunca foram discutidos, e Kimberly não tinha
consciência de que era esse o motivo da sua depressão. Possuía apenas uma noção
muito vaga do quanto era bonita. De uma forma muito gradual na terapia, ela
juntou os pedaços da história a partir dos fragmentos de sua memória.
Aparentemente,
o pai de Kimberly era devotado à esposa e se relacionava com a filha de uma
maneira apropriada. Entretanto, independentemente do êxito com que Kimberly
conseguia ocultar isso de si mesma, a mãe a enxergava como a vitoriosa
edipiana. Inconscientemente, Kimberly passou a odiar a própria beleza e a se
culpar pela angústia da mãe. Para ela, era impensável que pudesse tirar
proveito de sua aparência, atraindo os homens. Na maior parte do tempo,
conseguia negar para si mesma que havia algo de incomum em relação à sua
beleza. Tornou-se claro também que ela não podia se permitir sentir-se
verdadeiramente feliz. Como acreditava que devia ser responsabilizada pela
infelicidade da mãe, a culpa lhe negava o direito de qualquer felicidade para
si mesma. O leitor, agora já imerso na teoria do complexo de Édipo, terá
detectado uma outra fonte, mais profunda, da culpa de Kimberly. Sua mãe enviara
a mensagem: "Eu me rendo; você venceu." Desse modo, a angústia
inconsciente de Kimberly em relação ao seu triunfo era composta da convicção de
que o tinha desejado.
Para
que Jerry e Kimberly fossem assolados dessa maneira, era necessário que as
causas da culpa estivessem ocultadas deles, que estivessem recalcadas. O
objetivo da terapia era criar as condições adequadas, sob as quais cada um
deles pudesse gradualmente recobrar as memórias relevantes e fazer conexões
importantes. (...)
A
terapia de Jerry proporcionou um dramático exemplo do valor terapêutico da
transferência. Após alguns meses de terapia, ele foi capaz de me dizer que se
convencera de que eu o desaprovava, que não acreditava que ele levasse o
próprio trabalho a sério e que suspeitava que ele ganhava mais do que merecia.
Por algum tempo, apenas enfatizei como isso devia ser estressante para ele.
Finalmente, sugeri que ele tinha bons motivos para suspeitar que um homem mais
velho, em uma posição de autoridade, poderia desaprová-lo: ele tinha um
precedente histórico. Como aprendera a não questionar a autoridade, a
desaprovação devia ser justa. Jerry percebeu que, embora essa lógica pudesse
ser prontamente vendida a uma criança, estava longe de ser incontestável. Logo
depois disso, ele pôde começar a considerar a possibilidade de que seu pai
tivera seus próprios problemas, e que não havia qualquer mandamento que dizia:
"Vós estareis produtivamente ocupado durante todo o tempo em que
estiverdes desperto." Quando nos separamos, sua culpa arrefecera
consideravelmente.
Kimberly
e eu tivemos muito tempo de terapia, antes de o crítico fenômeno da
transferência acontecer. Percorremos muitos meses explorando seu medo dos homens
e seu desconforto diante da ideia de sair com eles. Também vimos a depressão de
que eu apenas tinha suspeitado desabrochar totalmente. Então, comecei a
perceber que, apesar da depressão, ela passava a vir para a terapia mais
determinada e arrumada do que antes. Em geral, não hesito em compartilhar tais
observações, mas me vi relutante em falar disso e fiquei intrigado com o fato.
Quando finalmente mencionei suas roupas e maquiagem, descobri a fonte da
relutância. Na comunicação inconsciente que ocorre entre cliente e terapeuta,
devo ter compreendido que essa era uma questão extraordinariamente embaraçosa
para ela. Na sessão seguinte, as roupas e a maquiagem voltaram a ser como
antes, e ela me implorou para não mencioná-las de novo. Eu lhe disse que podia
perceber que ela estava extremamente angustiada, e deixei o assunto de lado.
Depois de algumas semanas, perguntei-lhe se era possível que sua depressão
tivesse aumentado em virtude dos sentimentos que ela estava experimentando em
relação à terapia e a mim. Ela disse que sim. Achava que a terapia estava
ficando cada vez mais desconfortável e começava a considerar a hipótese de
parar. Retornei ao tópico proibido das roupas e da maquiagem, dizendo que faria
muito sentido para mim se ela tivesse se conscientizado da expectativa de eu a
achar atraente. Que sabia que, para ela, uma expectativa dessas poderia parecer
vergonhosamente egocêntrica, mas que, para mim, parecia perfeitamente natural.
Ao
longo dos anos, desenvolvi um considerável respeito pela sabedoria do
inconsciente. Quando atento para suas mensagens ele frequentemente orienta a
terapia muito melhor do que eu o faria. Acredito que a autoinvestigação de
Kimberly a levara até o ponto em que, logo abaixo da consciência, ela começava
a compreender a dinâmica das suas inibições e me enviava mensagens, conquanto
ambivalentes, de que estava pronta para entrar no domínio proibido. Quando
adolescente, ela de fato passara por uma fase em que tivera a expectativa de
que o pai a achasse atraente, e depois muito atraente, que a achasse mais
atraente do que a mãe. O pai nunca mostrara qualquer sinal de hesitação em sua
devoção pela mãe, mas Kimberly passara a acreditar que o seu desejo egoísta causara
sua aflição. E se punia desde então. Estou convencido de que seu sábio
inconsciente produziu o desejo de que eu me sentisse atraído por ela, como um
meio de nos conduzir a seu relacionamento com o pai. Parecia-me um caso de
desejo consciente de crescimento sobrepujando por fim a culpa.
Transcorreram-se
muitos outros meses antes de Kimberly poder tolerar discussões mesmo muito
tangenciais sobre esses temas, mas a depressão eventualmente cedeu, e ela
começou a sair com homens.
Comecei
este capítulo observando que Freud identificava a culpa como o elevado preço
que pagamos pela civilização. Para muitos de nós, a tentativa de reduzir a
culpa, evitá-la ou expiá-la é um importante motivador, assim como um
significativo escoamento de energia. O mal-estar na civilização é um
livro sombrio. Mais de vinte anos antes, Freud escrevera um tratado muito mais
otimista (Moral sexual civilizada e doença mental moderna), expressando
a esperança de que uma civilização progressivamente esclarecida poderia relaxar
as duras sanções sobre as várias formas de autoexpressão, de fato, sobre a
busca do prazer. Por volta de 1930, quando escreveu O mal-estar na
civilização, ele havia perdido muito desse otimismo. É impossível
identificar todos os motivos para essa mudança, mas os horrores da Primeira
Guerra Mundial foram certamente um fator importante.
No
entanto, Freud não perdera todo o seu otimismo. Nem todos estavam sujeitos a
ataques de culpa oriundos de pensamentos pessoais; havia uma grande variação na
frequência e na gravidade desses ataques. Nem todos, ele disse, experimentam os
frequentes acometimentos de infelicidade e descontentamento que são a expressão
da culpa inconsciente.
A
terapia que Freud criou percorreu um longo caminho desde 1930. O mesmo ocorreu
com a nossa compreensão da educação de crianças e das possibilidades de criar
uma sociedade mais benigna. Vimos neste capítulo que grande parte do sofrimento
da culpa pode ser aliviada na terapia, e quem sabe, talvez, futuramente, muitos
pais aprenderão a educar os filhos, para que um número cada vez menor deles
carregue um fardo pesado de culpa.
KAHN, Michel. Freud básico – pensamentos psicanalíticos para o século XXI. Rio de Janeiro: BestBolso, 2013. p. 157 a 174.
[1]
A despeito do caráter predominantemente amoral do comportamento humano no
período infantil, Melanie Klein e muitos outros analistas admitem a existência
de um supereu embrionário e precoce na primeira infância, muito antes da
conclusão do drama edípico.
[2]
Esta situação foi imaginada em um filme de ficção científica dirigido por Steven
Spielberg, Minority Report, baseado em uma novela de Philip K. Dick.
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