Módulo 15

 

CULPA


 

Sentimento de culpa: expressão utilizada em psicanálise numa acepção muito ampla. Pode designar um estado afetivo consecutivo a um ato que o sujeito considera repreensível, e a razão invocada pode, aliás, ser mais ou menos apropriada (remorso do criminoso ou autorrecriminações aparentemente absurdas), ou ainda um sentimento difuso de indignidade pessoal sem relação com um ato determinado de que o sujeito se acuse.

Por outro lado, é postulado pela análise como sistema de motivações inconscientes que explica comportamentos de fracasso, condutas delinquentes, sofrimentos que o indivíduo inflige a si mesmo, etc.

Neste último sentido, a palavra “sentimento” só deve ser utilizada com reservas, na medida em que o sujeito pode não se sentir culpado ao nível da experiência consciente.

Inicialmente, o sentimento de culpa foi descoberto, sobretudo na neurose obsessiva, sob a forma das autorrecriminações, das ideias obsedantes contra as quais o sujeito luta porque elas lhe surgem como repreensíveis, e por fim sob a forma da vergonha ligada às próprias medidas de proteção.

Já se pode notar a esse nível que o sentimento de culpa é parcialmente inconsciente, na medida em que a natureza real dos desejos em jogo (agressivos particularmente) não é conhecida pelo sujeito.

O estudo psicanalítico da melancolia iria resultar numa teoria mais elaborada do sentimento de culpa. Sabe-se que esta afecção é caracterizada particularmente por autoacusações, uma autodepreciação, uma tendência para a autopunição que pode levar ao suicídio. Freud mostra que existe aqui uma verdadeira clivagem do ego entre acusador (o superego) e acusado, clivagem que, por um processo de interiorização, resulta também de uma relação intersubjetiva; “...as autorrecriminações são recriminações contra um objeto de amor, que são retomadas deste para o próprio ego [...]; as queixas [do melancólico] são queixas contra”.

Este delineamento da noção de superego iria conduzir Freud a atribuir ao sentimento de culpa no conflito defensivo um papel mais geral. Já em Luto e melancolia (Trauer und Melancholie, 1917) reconhece que "... a instância crítica que aqui está separada do ego por clivagem poderia igualmente em outras circunstâncias demonstrar a sua autonomia...”; no capítulo V de O ego e o id (Das Ich und das Es, 1923), consagrado às “relações de dependência do ego”, dedica-se a distinguir as diferentes modalidades do sentimento de culpa, desde a sua forma normal até suas expressões no conjunto das estruturas psicopatológicas.

Com efeito, a diferenciação do superego como instância crítica e punitiva para o ego introduz a culpa como relação intersistêmica no seio do aparelho psíquico. “O sentimento de culpa é a percepção que corresponde no ego a essa crítica [do superego].”

Nesta perspectiva, a expressão “sentimento de culpa inconsciente” assume um sentido mais radical do que quando designava um sentimento inconscientemente motivado; agora, é a relação entre o superego e o ego que pode ser inconsciente e traduzir-se em efeitos subjetivos de onde toda a culpa sentida estaria, em último caso, ausente. E assim que, em certos delinquentes, “... podemos demonstrar que existe um poderoso sentimento de culpa, existente antes do delito e que, portanto, não é sua consequência mas seu motivo, como se o sujeito sentisse como um alívio poder ligar este sentimento inconsciente de culpa a algo de real e de atual”.

O paradoxo que reside em falar de sentimento de culpa inconsciente não escapou a Freud. Neste sentido, concordou que a expressão “necessidade de punição” podia parecer mais adequada. Mas note-se que esta última expressão, tomada no seu sentido mais radical, designa uma força tendente ao aniquilamento do sujeito, e talvez irredutível a uma tensão intersistêmica, enquanto o sentimento de culpa, seja consciente ou inconsciente, se reduz sempre a uma mesma relação tópica - a do ego e do superego, que é também um vestígio do complexo de Édipo. “Podemos adiantar a hipótese de que uma grande parte do sentimento de culpa deve normalmente ser inconsciente, porque o aparecimento da consciência moral está intimamente ligado ao complexo de Édipo, que pertence ao inconsciente.” (Freud)

LAPLANCHE E PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2016. Verbete: sentimento de culpa. p. 472, 473 e 474.

 

O custo de um alto nível de civilização é o sentimento de culpa.

Sigmund Freud, O mal-estar na civilização.

 

Esta é a surpreendente premissa do principal estudo de Freud sobre o desenvolvimento da "civilização": Nós sacrificamos a felicidade por um alto nível de civilização, e o mecanismo da nossa infelicidade é um sentimento de culpa crescente, muitas vezes uma culpa decorrente de impulsos inconscientes. Neste capítulo, investigaremos a compreensão de Freud a respeito de como e por que essa felicidade foi perdida, e como essa compreensão se relaciona com a teoria do superego.

Uma das minhas clientes acabou concordando em ajudar uma colega que tinha um difícil trabalho a realizar. Era um compromisso que ela não queria realmente assumir. Após refletir sobre o assunto, ela reuniu coragem para desfazer o acordo. A colega com quem ela tinha se comprometido acusou-a raivosamente de trair uma promessa. A primeira reação da minha cliente foi de raiva. Antes de mais nada, não desejara assumir o compromisso, e depois achava que tinha sido descaradamente manipulada. A raiva durou cerca de trinta minutos, sendo substituída por um doloroso sentimento de culpa. Ela achava que não tinha o direito de desapontar a colega, independentemente de quais fossem os seus desejos.

Esse enredo, ou algum parecido, é aflitivamente familiar para muitos de nós, embora talvez não o seja para todos. Poderíamos conceber isso como uma culpa ruidosa, uma culpa que se introduz com tamanho estardalhaço que é impossível confundi-la. Aqueles de nós sujeitos a esse tipo de culpa, que frequentemente se sentem péssimos em relação ao que fizeram, disseram ou mesmo pensaram, consideram-na uma das verdadeiras complicações da vida. Para aqueles que têm um caso particularmente sério desse tipo de culpa, não é nem preciso que a outra pessoa fique com raiva ou faça uma reclamação. Ser apenas assertivo já é o bastante para acionar a culpa. Esse é um território familiar; há anos existem livros e oficinas dedicados a ajudar aqueles que sofrem dessa culpa ruidosa.

Pecados imaginados de omissão podem acionar essa culpa tão prontamente quanto pecados de permissividade. Tenho um cliente que durante anos sentiu uma culpa de fundo que aparecia sempre que ele estava distraído ou não ocupado. Ele acreditava que sempre havia coisas que deveria ter feito ou deveria fazer. Às vezes, conseguia identificar as tarefas por fazer; frequentemente, elas não eram identificadas.

Em seguida, existe a culpa "reservada". A culpa reservada não se anuncia enquanto culpa, como ocorre com a culpa ruidosa. Pessoas reservadamente culpadas se punem de maneiras enigmáticas para o observador despreparado, maneiras que levam o terapeuta psicodinâmico a inferir que elas estão inconscientemente tentando reduzir um pouco dessa culpa por meio de punição ou fracasso que ocasionam a si mesmas:

- Há alguns anos, um importante candidato à presidência foi publicamente acusado de um escandaloso adultério. Indignado, ele negou a acusação, dizendo: "Se vocês não acreditam em mim, sigam-me." Naquela noite, ele se encontrou com a amante, e com ela permaneceu a noite inteira. Os repórteres o denunciaram, e, na manhã seguinte, suas esperanças presidenciais haviam se desvanecido para sempre.

- Estudantes "esquecem" a data de uma prova crucial para a qual estão bem preparados.

- Um funcionário insulta o patrão logo após saber que está sendo cogitado para uma almejada promoção.

- Um homem consegue por fim convencer uma mulher ardentemente desejada a ir para a cama com ele, e então, para seu desapontamento, mostra-se impotente.

Além da culpa "ruidosa" ou consciente e da culpa "reservada", que não parece culpa, mas apenas providencia uma punição que inconscientemente parece merecida, existe a culpa "silenciosa". As pessoas afligidas por esse tipo de culpa não se sentem culpadas. Elas não incorrem em uma punição inexplicável. Simplesmente se sentem pessoas ruins boa parte do tempo, ou sentem uma vaga infelicidade e descontentamento. Em última análise, essa é a forma de culpa mais comum, mais grave e, por ser constante, mais destrutiva.

Na visão de Freud, os seres humanos, caso desimpedidos, buscariam egoisticamente seus interesses, satisfações e prazeres. Se alguém ou algo interferisse, eles ficariam com raiva e, se acreditassem que eram fortes o bastante, removeriam sem hesitar o obstáculo. Quando muitas pessoas vivem em vizinhança próxima, essa tendência, caso desinibida, conduziria ao caos. Não se sabe ao certo se Freud conhecia O leviatã, de Thomas Hobbes (1651), mas o ponto de vista aqui descrito é idêntico àquele proposto na obra. Como Hobbes, Freud achava que, para as civilizações existirem, particularmente as mais complexas, era necessário haver um mecanismo que reprimisse essa agressão desinibida e egocêntrica. Uma autoridade externa é uma solução parcial, mas as autoridades não podem se fazer presentes em todos os lugares. É preciso um mecanismo interno, um representante interno da autoridade que possa estar de serviço o tempo todo e em todos os lugares. Freud entendia que essa necessidade fazia com que uma autoridade interna evoluísse na espécie humana e se tornasse cada vez mais severa. (...)

Essa é a parte da personalidade a que Freud deu o nome de superego. Na visão de Freud, o superego se desenvolve da seguinte maneira:

Se crianças pequenas forem deixadas soltas, buscarão livremente o que lhes dá prazer e lhes satisfaz. No início, é necessário regulá-las fisicamente, para que não interfiram com a satisfação dos outros. Logo, no entanto, a mera presença da figura parental já é suficiente para inibi-las. Para Freud, esse é um importante passo no desenvolvimento do superego. Por que a simples presença da autoridade é suficiente para impedir a criança de buscar o que lhe interessa? As crianças aprendem rapidamente a antecipar a punição, mesmo que seja uma punição branda, como uma repreensão. Se eu derramar o pudim no tapete, minha mãe me repreenderá e eu não me sentirei bem. Mas por que não me sentirei bem? Terei me divertido derramando o pudim no chão, e as palavras subsequentes da minha mãe não me machucarão de verdade. Mas não me sentirei bem porque estou aprendendo rapidamente como é muito importante o amor da minha mãe. Dependo totalmente dela; não conseguiria sobreviver sem ela. Se ela me abandonar, todas as minhas necessidades ficarão insatisfeitas. Isso inclui tanto as necessidades físicas quanto as emocionais. Preciso que ela me ame. O perigo de perder o amor da mãe, uma vez aprendido, ecoa pelo resto da vida[1].

Uma das minhas clientes começou a terapia me assegurando que seu relacionamento com a mãe era satisfatório - que não havia nele nada particularmente significativo. Logo seu relato revelou que ela repetidas vezes tem a seguinte experiência: por alguma boa razão, ela acha que é necessário faltar a um encontro com uma amiga íntima. Em seguida, ela sofre um grave ataque de ansiedade. Quando lhe indaguei sobre essa questão, ela explicou a ansiedade, dizendo recear que, por ter faltado ao compromisso, a amiga tivesse ficado furiosa. Ela viveu essa mesma sequência de eventos inúmeras vezes; quando encontra a amiga de novo, esta tem sempre uma postura inteiramente tranquilizadora. Essa tranquilidade, no entanto, não impede o próximo ataque de ansiedade. Depois de meses de trabalho, ela começou a recobrar memórias de um olhar distante percebido no rosto da mãe que a convenceu de que, de algum modo, ela a havia afastado de si. Seu medo inconsciente de perder o amor da mãe se traduz na marcante insegurança com as amigas.

Em seguida, vem o passo que Freud considerava ser o mais importante de todos, de fato aquele que é essencial. Não há nem de longe policiamento ou pais suficientes que possam estar em toda parte. O que nos impede de egoisticamente impor a nossa busca de prazer a qualquer pessoa que seja fraca o bastante? Claro que existem muitas pessoas que fazem exatamente isso, e então temos os problemas criminais e do forte explorando o fraco. Mas, se todos fizessem isso, teríamos o caos, que seria o fim da civilização. A maioria das pessoas não faz isso, mesmo quando a autoridade não está fisicamente presente. Por que não?

Existem dois motivos. O primeiro se torna agora evidente em decorrência do trajeto percorrido até aqui: temos medo de alguém descobrir e nos punir. A punição pode ser a perigosa perda do amor ou punição física de verdade. Minha cliente tem medo que sua amiga fique com raiva. Eu tenho medo de receber multas por excesso de velocidade.

E se não houver a possibilidade de alguém vir a descobrir? E se a autoridade estiver realmente ausente? Por que então eu me negaria o impulso natural de busca de satisfação? Freud ensina que não conseguiríamos conviver uns com os outros, nem do modo como atualmente o fazemos, se a única proteção que tivéssemos contra o egoísmo e a agressividade naturais de nossos vizinhos fosse o medo que eles têm da autoridade externa. Uma autoridade mais onipresente e ameaçadora é necessária.

Abrimos este capítulo invocando o nome da consciência ou, no vocabulário de Freud, o superego. O último passo em nosso trajeto é levar a autoridade para o interior da nossa cabeça, de modo que ela esteja sempre presente em nós e seu julgamento seja sempre perigoso. A consciência é essa autoridade introjetada. Se o primeiro motivo para nos negarmos satisfação é o medo da punição externa, o segundo motivo possível, mesmo na ausência da autoridade, é a autoridade ausente não estar de modo algum ausente. Ele, ela ou eles estão muito presentes - dentro da nossa cabeça. Desse modo, ainda existe o perigo da punição: o tormento do superego. Em nossa vida mental, é a esse tormento que damos o nome de "culpa". Quando resistimos a um prazer proibido, fazemo-lo com medo desse tormento, e, quando cedemos a ele, pode ser que tenhamos de pagar por isso com o sofrimento que o superego poderá nos infligir. Freud utilizava a palavra "remorso" para descrever a punição de uma ação proibida pelo superego.

Não é difícil imaginar que autoridade é essa que se aloja dentro da nossa cabeça. É claro que no início, e de forma muito poderosa, são os pais. Um dos insights mais valiosos de Freud foi sobre o fenômeno da identificação. Ele nos revela muito sobre como introjetamos aspectos dos outros em nós mesmos para formarmos nossa personalidade. Nossos pais são os primeiros e mais poderosos objetos de identificação. (...) Um importante mecanismo da resolução do complexo de Édipo é a identificação com o rival temido, o progenitor do mesmo sexo. Um importante aspecto dessa identificação é a função parental de legislar e impor a lei. Ambos os pais dizem "Não deverás" a respeito de muitas coisas, e, no caso do complexo de Édipo, é meu rival quem diz: "Não cobiçarás minha parceira ou meu parceiro." Por meio dessa identificação, introjeto em mim essas proibições, inclusive a do incesto. À medida que as introjeto, elas se tornam aspectos importantes do meu superego.

Existe uma importante diferença, como juiz, entre a autoridade externa e o superego, e é com essa diferença que temos de lidar, enquanto nos esforçamos para permitir mais alegria e realização em nossa vida civilizada. A diferença é a seguinte: a autoridade externa pode conhecer apenas nossas ações, só conseguindo, portanto, puni-las. O superego, estando localizado dentro da nossa cabeça, conhece não apenas nossas ações, mas nossos desejos, fantasias e intenções. Ele não é mitigado pelas afirmações de que uma determinada fantasia era apenas uma fantasia e não havia qualquer intenção de concretizá-la. Sua existência está sujeita à lei do processo primário, no qual o desejo é equivalente ao feito. Assim, o superego nos punirá não só por uma ação, como também por uma intenção. Em algumas ocasiões, é possível que a punição seja tão severa quanto se tivéssemos colocado em prática a intenção.

Logo investigaremos a ideia de simples pensamentos que fazem com que nos sintamos culpados - como isso pode ocorrer não é imediatamente claro. Mas se somos capazes de demonstrar que Freud estava certo quando afirmou que os pensamentos podem nos tornar culpados, então fica claro que a nossa felicidade e paz mental estão numa posição precária. Imagine-se vivendo cercado de uma polícia muito rigorosa que pune leves infrações de um código rígido. Isso não seria muito divertido, mas provavelmente a pessoa poderia aprender a ter muito cuidado e, assim, não se meter em encrencas. Em seguida, imagine que esse código rigoroso inclui os pensamentos falados. Sabemos que isso é exasperante, mas ainda assim as pessoas que fossem cuidadosas poderiam evitar atrair uma atenção indesejada para si. Mas agora imagine que a polícia inventou um aparelho de raios X mental que lê os pensamentos, e que os pensamentos proibidos são severamente punidos[2]. Então está na hora de começar a traçar um plano para emigrar.

Na ausência de uma ação proibida, estaríamos propensos a nos sentirmos culpados em virtude de um simples pensamento ou de uma intenção? Algumas pessoas, parte do tempo, outras pessoas, grande parte do tempo, se sentem conscientemente culpadas, de fato muito culpadas, por causa de seus pensamentos. Os exemplos mais óbvios são pessoas devotadamente religiosas que acreditam que certos pensamentos são pecaminosos; na verdade, que muitos de seus pensamentos são pecaminosos. Há situações conhecidas de religiosos que se sujeitaram às mais severas privações e austeridades numa tentativa de livrar-se desses pensamentos pecaminosos. Existem muitas histórias de santos que tentam libertar o corpo dos pensamentos pecaminosos por meio de jejuns e mortificações, inclusive a seguinte, sobre São Francisco:

“Pois, se, como acontece, uma tentação da carne por vezes o assaltasse, ele se atiraria dentro de uma vala cheia de gelo, em pleno inverno, e permaneceria dentro dela até não haver mais qualquer vestígio de algo carnal presente. E de fato [seus seguidores] fervorosamente seguiam o seu exemplo dessa grande mortificação.”[3]  

Muitas pessoas que não aspiram à santidade têm um pensamento ou desejo ocasional, em relação ao qual se sentem conscientemente culpadas. Não é incomum alguém que se sente sobrecarregado pela invalidez de um parente querido descobrir em si o desejo de que ele morra e o deixe livre. Não é incomum, também, um pai que percebeu subitamente que a filha se tornou uma mulher reconhecer em si urna eclosão de desejo por ela. Cada uma dessas descobertas pode muito bem ser acompanhada de um ataque de culpa consciente.

No entanto, a maioria de nós, durante a maior parte do tempo, não sente culpa consciente por causa de um simples pensamento ou de um desejo. Se recuso o ansiado bolo de chocolate ou a pessoa proibida do sexo desejado, se resisto ao impulso de dizer algo realmente asqueroso a meu adversário, pode ser que eu sinta algum arrependimento melancólico, mas é improvável que eu conscientemente venha a me sentir culpado em virtude do desejo.

Embora possa não me sentir conscientemente culpado em relação a esses desejos, anseios proibidos não são negligenciados pelo superego. As funções do superego são em boa parte inconscientes, e seu grande poder depende disso. Se meu superego fosse inteiramente consciente, eu seria capaz de aceitar ou rejeitar seus comandos de acordo com meus padrões adultos e esclarecidos. Se ele me advertisse a respeito de uma ação proibida quando eu era criança, meu ego adulto poderia simplesmente rejeitar a imposição, reconhecendo que esta não é mais válida ou relevante. Mas sabemos que o inconsciente não obedece a essas regras. Na esfera do processo primário, não existe passado ou futuro. Antigas imposições são tão atuais hoje e tão rigidamente impingidas quanto eram no tempo em que eu era criança. Como essa é a esfera do processo primário, o desejo é tão pecaminoso quanto o ato, e deve ser punido. A teoria psicanalítica é uma teoria de conflito interior, de uma mente dividida em relação a si mesma. Existem poucos exemplos mais vívidos do que a punição agressiva do superego contra o ego.

Começamos este capítulo observando que, além da culpa ruidosa e da culpa reservada, que todos conhecemos muito bem, existe também a culpa silenciosa. Podemos agora entender o que é isso e como acontece. Quando meu superego me pune por um desejo proibido, tudo se passa no domínio velado do inconsciente e assume a forma de uma culpa inconsciente. Como é inconsciente, não a reconheço como culpa e não sei pelo que estou sendo punido. Sei apenas que me sinto mal; sinto uma infelicidade e um descontentamento indefinidos.

Existe uma terrível ironia nisso tudo: quanto mais virtuoso sou, maiores as chances de eu sentir essa culpa silenciosa. Freud assinalou que as autobiografias dos santos estão repletas de lamentações de pecados. Ele explicou essa ironia, dizendo que, assim como cada impulso satisfeito reduz o anseio frustrado por aquele prazer, cada prazer negado intensifica esse anseio. Quanto mais esse anseio aumenta, mais punitivo o superego se torna. Freud entendia que os impulsos agressivos reprimidos tendiam particularmente a ocasionar essa culpa silenciosa. Existe uma clara implicação no trabalho posterior de Freud, especialmente em O mal-estar na civilização, de que, embora um indivíduo "civilizado" possa conceber que a satisfação sexual pode ser compatível com a vida civilizada, não há como imaginar que os impulsos agressivos das pessoas possam ser saciados sem destruir a comunidade. Portanto, esses impulsos tendem a ser os mais severamente recalcados e, de acordo com o raciocínio de Freud, produzem a culpa silenciosa mais severa.

Quando éramos crianças, cada impulso negado abrandava a autoridade e nos protegia da culpa. Eu me continha para não bater na minha irmã mais nova e era recompensado com a aprovação da minha mãe e com a ausência de culpa. No entanto, no momento em que a autoridade está dentro da minha cabeça e tem acesso a meus desejos, a situação se inverte. Cada impulso negado intensifica agora a minha culpa. Freud descreveu essa situação da seguinte maneira:

“Aqui, a renúncia instintiva não possui mais um efeito completamente liberador; a continência virtuosa não é mais recompensada com a certeza do amor. Uma ameaça de infelicidade externa - perda de amor e castigo por parte da autoridade externa - foi permutada por uma permanente infelicidade interna, pela tensão do sentimento de culpa.” (O mal-estar na civilização)

Os seres humanos têm uma forte necessidade de viver em grupo, próximos uns dos outros. Mas essa necessidade entra em conflito com sua agressividade inata e seu desejo de se satisfazer egoisticamente. Para Freud, a solução parecia consistir no desenvolvimento da consciência. Se a consciência tivesse se restringido a refrear a agressão externa, e o tivesse feito com um êxito bem maior do que o alcançado, isso teria sido uma solução satisfatória. Mas ela vai além disso: nos ataca por causa dos nossos pensamentos, pensamentos sobre os quais não temos qualquer controle. Freud acreditava que isso não era verdadeiro para todos. Ele acreditava que havia uma ampla variação na frequência e na severidade dos ataques de culpa. Nem todos, ele disse, experimentam os frequentes acometimentos de infelicidade e de descontentamento que são a expressão da culpa inconsciente. Mas para ele, no entanto, isso ocorria com a maioria de nós, e o ataque que sofremos do superego em virtude dos pensamentos sobre os quais não temos controle algum levou-o a dizer que o preço que pagamos para podermos viver próximos e interdependentes é a perda da felicidade, por intermédio de um sentimento de culpa.

Gostaria de ilustrar o poder prejudicial da culpa inconsciente descrevendo dois dos meus clientes. Embora um deles tivesse consciência do seu sentimento de culpa, e o outro não, a culpa destrutiva estava profundamente entranhada em ambos.

Jerry é o cliente que mencionei anteriormente neste capítulo, aquele que passava grande parte do tempo sentindo uma culpa perturbadora, por causa das coisas que deveria ter feito e não fizera. Sempre que concluía uma tarefa que o estivera atormentando, esta era substituída imediatamente pela seguinte. Ele pensava nisso como sua lista mágica de "coisas a fazer", que aumentava em dois itens sempre que ele removia um. Em nosso mundo a mil por hora, quase todos nós temos a sensação de que a lista de afazeres está sempre aumentando. Alguns aceitam tal fato com um deleite desvirtuado, outros o consideram simplesmente aborrecido, mas parece haver muitos que, como Jerry, sentem uma culpa de verdade por causa disso.

Existe uma lembrança da infância de Jerry que frequentemente lhe vem à mente. Ele nutria uma grande admiração pelo pai, como também um medo considerável. Desejava que o pai tivesse uma boa impressão dele, em geral, duvidava que isso ocorresse. Certa noite, ainda cedo, quando tinha cerca de 12 anos, disse ao pai: "Terminei o dever de casa. Posso ir até a esquina?" A resposta do pai produziu uma marca indelével no seu cérebro: “Você não está tirando 10 em tudo.” A conotação era inconfundível: sempre existe algo mais a fazer. É improvável que esse singular incidente seja a única causa da culpa incessante que ele sentia no decorrer da vida adulta, mas simboliza uma atitude que ele tinha internalizado a partir de inúmeras experiências. Se almejava obter a admiração do pai, precisava trabalhar incessantemente por ela. E mesmo assim, como as tarefas indispensáveis não tinham fim, era impossível obtê-la. Quando Jerry começou o processo terapêutico comigo, seu pai havia falecido havia muito tempo. Era o seu superego agora quem lhe dizia que havia mais por fazer e o punia pelas tarefas (tantas vezes não especificadas) irrealizadas. Além disso, por debaixo dessa identificação, havia a raiva inconsciente do pai, por tê-lo sobrecarregado com metas inatingíveis. Ao tormento pelas tarefas irrealizadas, o superego adicionava uma punição por essa raiva inconsciente.

Kimberly veio ao meu consultório quando tinha 20 e poucos anos. Ela parecia possuir tudo de bom: era brilhante, charmosa e bonita. O problema apresentado era que não saía com um homem desde quando estava no ensino médio, e mesmo assim não saíra muito naquela época. Embora não mencionasse isso, também parecia levemente deprimida. Kimberly fazia o melhor que podia para evitar os homens, e quando não conseguia recusava seus convites. Não tinha a menor ideia do que a levava a agir assim. E nem eu, por muitos meses. Então, certo dia, uma colega de trabalho lhe disse carinhosamente: "Kimberly, você é realmente muito bonita." Sua reação foi impressionante. Ela ruborizou, furiosa, deixou o aposento apressada, e então teve um grave ataque de pânico. Por ocasião de nossa sessão seguinte, ela já estava calma o bastante para começar a explorar o significado do incidente. No decorrer dos meses seguintes, a história se desdobrou. Ela tinha uma mãe jovem e muito atraente que, ao que parece, não estava preparada para ser tão completamente sobrepujada pela filha. Quando Kimberly chegou à adolescência, e começou a ficar evidente o quanto era bonita, sua mãe aparentemente se viu como uma miss destronada e teve uma grave depressão. Os sentimentos competitivos da mãe nunca foram discutidos, e Kimberly não tinha consciência de que era esse o motivo da sua depressão. Possuía apenas uma noção muito vaga do quanto era bonita. De uma forma muito gradual na terapia, ela juntou os pedaços da história a partir dos fragmentos de sua memória.

Aparentemente, o pai de Kimberly era devotado à esposa e se relacionava com a filha de uma maneira apropriada. Entretanto, independentemente do êxito com que Kimberly conseguia ocultar isso de si mesma, a mãe a enxergava como a vitoriosa edipiana. Inconscientemente, Kimberly passou a odiar a própria beleza e a se culpar pela angústia da mãe. Para ela, era impensável que pudesse tirar proveito de sua aparência, atraindo os homens. Na maior parte do tempo, conseguia negar para si mesma que havia algo de incomum em relação à sua beleza. Tornou-se claro também que ela não podia se permitir sentir-se verdadeiramente feliz. Como acreditava que devia ser responsabilizada pela infelicidade da mãe, a culpa lhe negava o direito de qualquer felicidade para si mesma. O leitor, agora já imerso na teoria do complexo de Édipo, terá detectado uma outra fonte, mais profunda, da culpa de Kimberly. Sua mãe enviara a mensagem: "Eu me rendo; você venceu." Desse modo, a angústia inconsciente de Kimberly em relação ao seu triunfo era composta da convicção de que o tinha desejado.

Para que Jerry e Kimberly fossem assolados dessa maneira, era necessário que as causas da culpa estivessem ocultadas deles, que estivessem recalcadas. O objetivo da terapia era criar as condições adequadas, sob as quais cada um deles pudesse gradualmente recobrar as memórias relevantes e fazer conexões importantes. (...)

A terapia de Jerry proporcionou um dramático exemplo do valor terapêutico da transferência. Após alguns meses de terapia, ele foi capaz de me dizer que se convencera de que eu o desaprovava, que não acreditava que ele levasse o próprio trabalho a sério e que suspeitava que ele ganhava mais do que merecia. Por algum tempo, apenas enfatizei como isso devia ser estressante para ele. Finalmente, sugeri que ele tinha bons motivos para suspeitar que um homem mais velho, em uma posição de autoridade, poderia desaprová-lo: ele tinha um precedente histórico. Como aprendera a não questionar a autoridade, a desaprovação devia ser justa. Jerry percebeu que, embora essa lógica pudesse ser prontamente vendida a uma criança, estava longe de ser incontestável. Logo depois disso, ele pôde começar a considerar a possibilidade de que seu pai tivera seus próprios problemas, e que não havia qualquer mandamento que dizia: "Vós estareis produtivamente ocupado durante todo o tempo em que estiverdes desperto." Quando nos separamos, sua culpa arrefecera consideravelmente.

Kimberly e eu tivemos muito tempo de terapia, antes de o crítico fenômeno da transferência acontecer. Percorremos muitos meses explorando seu medo dos homens e seu desconforto diante da ideia de sair com eles. Também vimos a depressão de que eu apenas tinha suspeitado desabrochar totalmente. Então, comecei a perceber que, apesar da depressão, ela passava a vir para a terapia mais determinada e arrumada do que antes. Em geral, não hesito em compartilhar tais observações, mas me vi relutante em falar disso e fiquei intrigado com o fato. Quando finalmente mencionei suas roupas e maquiagem, descobri a fonte da relutância. Na comunicação inconsciente que ocorre entre cliente e terapeuta, devo ter compreendido que essa era uma questão extraordinariamente embaraçosa para ela. Na sessão seguinte, as roupas e a maquiagem voltaram a ser como antes, e ela me implorou para não mencioná-las de novo. Eu lhe disse que podia perceber que ela estava extremamente angustiada, e deixei o assunto de lado. Depois de algumas semanas, perguntei-lhe se era possível que sua depressão tivesse aumentado em virtude dos sentimentos que ela estava experimentando em relação à terapia e a mim. Ela disse que sim. Achava que a terapia estava ficando cada vez mais desconfortável e começava a considerar a hipótese de parar. Retornei ao tópico proibido das roupas e da maquiagem, dizendo que faria muito sentido para mim se ela tivesse se conscientizado da expectativa de eu a achar atraente. Que sabia que, para ela, uma expectativa dessas poderia parecer vergonhosamente egocêntrica, mas que, para mim, parecia perfeitamente natural.

Ao longo dos anos, desenvolvi um considerável respeito pela sabedoria do inconsciente. Quando atento para suas mensagens ele frequentemente orienta a terapia muito melhor do que eu o faria. Acredito que a autoinvestigação de Kimberly a levara até o ponto em que, logo abaixo da consciência, ela começava a compreender a dinâmica das suas inibições e me enviava mensagens, conquanto ambivalentes, de que estava pronta para entrar no domínio proibido. Quando adolescente, ela de fato passara por uma fase em que tivera a expectativa de que o pai a achasse atraente, e depois muito atraente, que a achasse mais atraente do que a mãe. O pai nunca mostrara qualquer sinal de hesitação em sua devoção pela mãe, mas Kimberly passara a acreditar que o seu desejo egoísta causara sua aflição. E se punia desde então. Estou convencido de que seu sábio inconsciente produziu o desejo de que eu me sentisse atraído por ela, como um meio de nos conduzir a seu relacionamento com o pai. Parecia-me um caso de desejo consciente de crescimento sobrepujando por fim a culpa.

Transcorreram-se muitos outros meses antes de Kimberly poder tolerar discussões mesmo muito tangenciais sobre esses temas, mas a depressão eventualmente cedeu, e ela começou a sair com homens.

Comecei este capítulo observando que Freud identificava a culpa como o elevado preço que pagamos pela civilização. Para muitos de nós, a tentativa de reduzir a culpa, evitá-la ou expiá-la é um importante motivador, assim como um significativo escoamento de energia. O mal-estar na civilização é um livro sombrio. Mais de vinte anos antes, Freud escrevera um tratado muito mais otimista (Moral sexual civilizada e doença mental moderna), expressando a esperança de que uma civilização progressivamente esclarecida poderia relaxar as duras sanções sobre as várias formas de autoexpressão, de fato, sobre a busca do prazer. Por volta de 1930, quando escreveu O mal-estar na civilização, ele havia perdido muito desse otimismo. É impossível identificar todos os motivos para essa mudança, mas os horrores da Primeira Guerra Mundial foram certamente um fator importante.

No entanto, Freud não perdera todo o seu otimismo. Nem todos estavam sujeitos a ataques de culpa oriundos de pensamentos pessoais; havia uma grande variação na frequência e na gravidade desses ataques. Nem todos, ele disse, experimentam os frequentes acometimentos de infelicidade e descontentamento que são a expressão da culpa inconsciente.

A terapia que Freud criou percorreu um longo caminho desde 1930. O mesmo ocorreu com a nossa compreensão da educação de crianças e das possibilidades de criar uma sociedade mais benigna. Vimos neste capítulo que grande parte do sofrimento da culpa pode ser aliviada na terapia, e quem sabe, talvez, futuramente, muitos pais aprenderão a educar os filhos, para que um número cada vez menor deles carregue um fardo pesado de culpa.

KAHN, Michel. Freud básico – pensamentos psicanalíticos para o século XXI. Rio de Janeiro: BestBolso, 2013. p. 157 a 174.



[1] A despeito do caráter predominantemente amoral do comportamento humano no período infantil, Melanie Klein e muitos outros analistas admitem a existência de um supereu embrionário e precoce na primeira infância, muito antes da conclusão do drama edípico.

[2] Esta situação foi imaginada em um filme de ficção científica dirigido por Steven Spielberg, Minority Report, baseado em uma novela de Philip K. Dick.

[3] CELANO, Thomas of. Francis of Assis. Nova York: New City Press, 1999. p. 221.




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