COMPORTAMENTO AUTOPLÁSTICO - ALOPLÁSTICO
Autoplástico - aloplástico: termos
que qualificam dois tipos de reação ou de adaptação; o primeiro consiste apenas
numa modificação do organismo e o segundo numa modificação do meio circundante.
Os
termos “autoplástico” e “aloplástico” são por vezes utilizados em psicanálise
no quadro de uma teoria do campo psicológico definido pela interação do
organismo e do meio, para distinguir dois tipos de operações, uma voltada para
o próprio sujeito e acarretando modificações internas, e outra voltada para o
exterior. (...).
S. Ferenczi fala de adaptação autoplástica em sentido mais especificamente genético. Para ele, trata-se de um método muito primitivo de adaptação, correspondente a uma fase ontogenética e filogenética de desenvolvimento (fase da “protopsique”), em que o organismo só tem influência sobre si mesmo e realiza apenas mudanças corporais. Ferenczi relaciona com ele a conversão histérica, e mais precisamente aquilo a que chama “fenômenos de materialização”: a sua “... essência consiste na realização, como que por magia, de um desejo, a partir do material corporal que está à sua disposição, e, mesmo que de forma primitiva, por uma representação plástica” (Fenômenos de materialização histérica, 1919). Seria uma regressão mais profunda do que no sonho, visto que o desejo inconsciente se encarna em estados ou atos do corpo, e não em uma imagem visual.
Por oposição, Ferenczi fala às vezes de adaptação aloplástica para qualificar o conjunto das ações voltadas para o exterior que permitem ao ego manter o seu equilíbrio.
OPERAÇÕES
|
Autoplásticas |
Aloplásticas |
concretas |
Fisiológicas. |
Ações
materiais. |
simbólicas |
Atividade
mental, consciente e inconsciente. |
Comunicações, linguagens. |
Os termos “autoplástico” e “aloplástico” são usados para
diferenciar a instauração de modificações internas no sujeito, resultantes do
trabalho que se realiza no mundo exterior.
Foi Sandor Ferenczi quem introduziu o termo “autoplástico”
em seu artigo sobre os fenômenos de materialização histérica. A histeria é aí
apresentada como caricatura da arte. Ferenczi acrescenta que “as
‘materializações histéricas’ mostram-nos o organismo em toda a sua plasticidade
e mesmo em sua habilidade criadora. As proezas puramente ‘autoplásticas’ do
histérico poderiam muito bem constituir o modelo dos desempenhos corporais
realizados por atores e os artistas, inclusive o modelo das artes plásticas, onde
os artistas trabalham um material fornecido não por seus próprios corpos mas
pelo mundo exterior”.
Ao procurar as analogias e as diferenças entre neurose e
psicose, Freud retomará estes termos em 1924. É comportamento “normal,
apropriado a um fim” que reúne traços dessas duas entidades. Comportamento que
nega a realidade, “não mais que a neurose”, mas esforça-se por modificá-la,
como na psicose. Entretanto, “não se satisfaz como na psicose com a instauração
de modificações interiores; não é mais autoplástico, mas aloplástico”.
Ao expor o processo analítico é que poderíamos reencontrar o
interesse dessas pouco usadas noções. De maneira assimétrica, diferente, os
dois protagonistas da cura não estarão diante de uma dança incessante entre
mudança do outro e modificação interna?
WAINRIB, Steven. Verbete:
autoplástico/aloplástico. In.: MIJOLLA, Alain (Org.) Dicionário
Internacional da Psicanálise. Vol. M-Z. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p.
201.
Existem duas formas possíveis de o sujeito lidar
psiquicamente com uma situação traumatizante de acordo com Ferenczi. A
autoplastia é uma delas.
Enquanto na reação psíquica aloplástica o sujeito é capaz de
agir modificando o meio em prol de sua integridade psíquica, no modo
autoplástico ocorrem modificações patológicas no próprio ego que
implicam uma destruição parcial ou total do psiquismo.
A mudança nesse caso atinge diretamente a personalidade da
pessoa traumatizada, que será mais ou menos gravemente atingida, em função do
poder destrutivo do objeto traumatogênico, responsável por diferentes graus e
profundidade de divisão do ego.
Esse modo patogênico de lidar com a situação traumática foi
descrito por Ferenczi como um processo de autodilaceração e implica cisões,
fragmentação, pulverização ou atomização do ego e até mesmo o suicídio, nos
casos mais extremos.
Ao discorrer sobre o trauma, Ferenczi definiu o modo
autoplástico de adaptação ao trauma sucintamente nos seguintes termos
“O que é o trauma?
Comoção, reação a uma excitação externa ou interna num modo mais autoplástico
(que modifica o eu) do que aloplástico (que modifica a excitação). Essa
neoformação do eu é impossível sem uma prévia destruição parcial ou total, ou
sem dissolução do eu precedente” (Diário clínico, 1932)
Ferenczi afirmou que, após a autoplastia, isto é, a
modificação patológica do ego que foi cindido pela reação ao choque traumático,
a reconstituição egóica se dará a partir dos fragmentos egóicos produzidos por
esse modo de adaptação ao trauma.
A presença de uma pessoa “solícita, compreensiva e pronta
para ajudar” aumenta as chances de rememoração, de recomposição do ego e da
autoconservação baseada no “pensamento aloplasticamente orientado”. (...)
O prefixo “alo”, do grego állos, significa outro,
diverso; e o sufixo “plástico”, do grego plastikós, significa aquilo que
modela, algo que tem a propriedade de adquirir determinadas formas por efeito
de uma ação exterior.
O que Ferenczi chamou de “reação aloplástica” é uma
modificação do meio externo que o sujeito provoca sem grande prejuízo psíquico,
quando se sente ameaçado ou quando é agredido por outrem. Ele disse:
“A subtaneidade da comoção psíquica causa um grande desprazer que não pode ser superado. Mas o que significa, pois, superar? (...) Uma defesa real contra a nocividade, ou seja, uma transformação do mundo circundante no sentido de um afastamento da causa do distúrbio (reação aloplástica)” (Reflexões sobre o trauma, 1920-1932).
Essa é uma forma de superação saudável diante de uma
situação potencialmente traumática, geralmente realizada por aqueles que têm
razoável força egóica e sentido de realidade apurado. Em anotação no Diário,
Ferenczi esclareceu:
“Em oposição à forma de
adaptação acima [ele se refere ao modo autoplástico de adaptação], encontra-se
a adaptação aloplástica, ou seja, a transformação do mundo exterior, de modo a
tornar supérfluas essa destruição e reconstrução, e a permitir ao ego manter
sem modificações seu estado de equilíbrio preexistente e sua organização. Uma
condição prévia para isso é um sentido de realidade altamente desenvolvido”
No caso de crianças vitimizadas, quanto mais força de ego e
mais idade tiverem, maior a possibilidade de tomarem medidas que modifiquem as
condições ambientais para se defenderem do agressor.
Como exemplo da adaptação aloplástica, lembramos o caso de
uma paciente que, ao perceber que estava sendo observada pelo novo padrasto ao
toma banho – quando tinha 12 anos –, saiu da casa materna e passou a morar com
a avó paterna em outra cidade.
Lembramos também os casos de inúmeras crianças e
adolescentes que, na iminência de sofrerem assédio, ameaça de abuso sexual
propriamente dito de parentes ou pessoas próximas ou quaisquer outros tipos de
violência, saem de suas casas e passam a viver na rua, onde se sentem mais
seguros.
KAHTUNI, Haydée
Christinne e SANCHES, Gisela Paraná. Dicionário do pensamento de Sándor
Ferenczi: uma contribuição à clínica psicanalítica contemporânea. Rio de
Janeiro: Elsevier; São Paulo: FAPESP, 2009. p. 32 e 33, 70 e 71.
PASSAGENS IMPORTANTES DE FREUD E
FERENCZI SOBRE O COMPORTAMENTO
AUTOPLÁSTICO E ALOPLÁSTICO
A neurose não repudia a realidade, apenas a ignora; a psicose a repudia e tenta substituí-la. Chamamos um comportamento de ‘normal’ ou ‘sadio’ se ele combina certas características de ambas as reações - se repudia a realidade tão pouco quanto uma neurose, mas se depois se esforça, como faz uma psicose, por efetuar uma alteração dessa realidade. Naturalmente, esse comportamento conveniente e normal conduz à realidade do trabalho no mundo externo; ele não se detém, como na psicose, em efetuar mudanças internas. Ele não é mais autoplástico, mas aloplástico.
FREUD, Sigmund. A perda da realidade na neurose e na psicose. In: Obras completas vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 209.
Como situar esse fenômeno [materialização histérica] entre os processos psíquicos já conhecidos e como conceber seu mecanismo? A comparação que logo se nos impõe é a analogia com a alucinação do sonho, tal como a conhecemos depois das investigações de Freud sobre o sonho. Também no sonho os desejos são representados como realizados, mas a realização do desejo é aí puramente alucinatória, estando a motilidade paralisada durante o sono. No fenômeno de materialização, em contrapartida, parece estarmos diante de uma regressão ainda mais profunda; o desejo inconsciente, e incapaz de ter acesso à consciência, já não se limita nesse caso à excitação sensorial do órgão psíquico da percepção, mas passa para a motricidade inconsciente, o que significa uma regressão tópica a uma profundidade do aparelho psíquico onde os estados de excitação já não se liquidam por um investimento psíquico - ainda que fosse alucinatório - mas simplesmente pela descarga motora.
No plano temporal,
a essa regressão tópica corresponderia uma etapa muito primitiva do
desenvolvimento onto e filogenético, caracterizada pelo fato de que a adaptação
ainda não se faz modificando o mundo exterior mas o próprio corpo. Quando
discutimos, Freud e eu, problemas da evolução, temos o hábito de chamar a esse
estágio primário o estágio autoplástico,
em oposição ao estágio aloplástico
mais tardio.
No plano formal,
deveríamos, portanto, considerar aqui a vida psíquica simplificada até o
processo do reflexo fisiológico. E, se concebemos o processo reflexo não apenas
como o protótipo do psíquico mas como a etapa que o precedeu e para a qual até
a mais alta complexidade psíquica tem sempre tendência a regressar, então
ficamos menos surpreendidos pelo salto tão misterioso do psíquico para o
corporal no sintoma da conversão e pelo fenômeno de materialização que realiza
o desejo por via reflexa. Trata-se simplesmente de regressão à
"protopsique".
FERENCZI, Sandor. Fenômenos de materialização histérica. In: Obras completas vol III. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 50 e 51.
Após o fracasso da
primeira tentativa oral de regresso ao corpo da mãe, seguem-se os períodos anal
e masturbatório, períodos que poderiam ser classificados de autoplásticos,
em que o indivíduo procura em seu próprio corpo um substituto fantasístico para
o objeto perdido; mas só o instrumento constituído pelo órgão masculino de
copulação permite uma primeira tentativa séria de realização dessa tendência
num modo novamente aloplástico,
primeiro na própria mãe, depois nas outras mulheres de seu meio.
FERENCZI, Sandor. Thalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade. In: Obras completas vol III. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 297.
Mencionemos sucintamente
alguns outros pontos de vista "bioanalíticos" referentes à evolução
orgânica. A adaptação pode ser autoplástica ou aloplástica; no primeiro caso, é
a própria organização do corpo que se adapta às novas circunstâncias, no
segundo, o organismo esforça-se por modificar o mundo externo de modo a tornar
inútil a adaptação corporal. O modo de evolução aloplástica é o mais "inteligente",
especificamente "humano", mas também está muito espalhado no mundo
animal (construção de ninhos!). Transformar o mundo externo é muito mais rápido
do que transformar o próprio organismo; podemos supor que os animais que
chegaram a esse grau de evolução já possuem um certo "senso
temporal". A autoplastia pode ser puramente regressiva (redução das
necessidades, regresso a estágios mais primitivos) ou também progressiva
(desenvolvimento de novos órgãos). O desenvolvimento da motilidade (busca de um
meio ambiente mais favorável) acarreta a economia da adaptação autoplástica.
(...)
A adaptação implica renúncia aos seus objetos de satisfação
a fim de habituar-se a novos objetos, ou seja, transformar uma perturbação
(sempre dolorosa no começo) em satisfação. Isso ocorre por identificação com o
estímulo perturbador e, depois, introjeção deste; assim, o episódio perturbador
torna-se uma parte do ego (uma pulsão) e o mundo interno (microcosmo) passa a
ser assim o reflexo do meio ambiente e de suas catástrofes.
Os órgãos, ou as funções orgânicas recém-criadas,
superpõem-se simplesmente aos antigos sem os destruir; mesmo quando o antigo
material é reempregado, a organização ou função aparentemente abandonada
subsiste virtualmente sob a forma de "inconsciente biológico", e
certas condições podem provocar sua reativação. Podemos comparar essas
superposições a mecanismos de inibição; por exemplo, sobre a
"excitabilidade" geral primitiva construiu-se a excitação reflexa já
orientada, e sobre esta última a reação seletiva psíquica; nos estados
patológicos ou em outros estados de natureza excepcional (hipnose profunda,
faquirismo), o psiquismo suspende sua atividade e o organismo retorna ao
estágio da excitabilidade reflexa, ou até mesmo da excitabilidade primitiva.
FERENCZI, Sandor. Thalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade. In: Obras completas vol III. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 355.
Um (...) problema,
considerado até agora unicamente sob o ângulo psicológico, o problema do dom artístico, é esclarecido em parte
pelo aspecto orgânico da histeria. Segundo a expressão de Freud, a histeria é
uma caricatura da arte. Ora, as "materializações" histéricas
mostram-nos o organismo em toda a sua plasticidade e mesmo em sua habilidade
criadora. As proezas puramente "autoplásticas" do histérico poderiam
muito bem constituir o modelo dos desempenhos corporais realizados pelos atores
e pelos artistas, inclusive o modelo das artes plásticas, em que os artistas
trabalham um material fornecido não por seus próprios corpos mas pelo mundo
exterior.
FERENCZI, Sandor. Fenômenos de materialização histérica. In: Obras completas vol III. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 56 e 57.
A criança de quem se
abusou converte-se num ser que obedece mecanicamente, ou que se fixa numa
atitude obstinada (...). Sua vida sexual não se desenvolve ou assume formas
perversas; não falarei aqui das neuroses e psicoses que podem resultar disso. O
que importa, de um ponto de vista científico, nesta observação, é a hipótese de
que a personalidade ainda fracamente
desenvolvida reage ao brusco desprazer, não pela defesa, mas pela identificação
ansiosa e a introjeção daquele que a ameaça e a agride. Só agora compreendo
por que os meus pacientes se recusam, tão obstinadamente, a seguir-me quando
aconselho a reagir ao agravo sofrido com desprazer, como seria de esperar, com
ódio ou com defesa. Uma parte da personalidade deles, o seu próprio núcleo,
permaneceu fixado num certo momento e num certo nível, onde as reações
aloplásticas ainda eram impossíveis e onde, por uma espécie de mimetismo, reage-se
de maneira autoplástica. Chega-se assim a uma forma de personalidade feita
unicamente de id e superego, e que, por conseguinte, é incapaz de afirmar-se em
caso de desprazer.
FERENCZI, Sandor. Confusão
de línguas entre os adultos e a criança. In: Obras completas vol. IV.
São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 118.
Nenhum comentário:
Postar um comentário