Módulo 27

 NARCISISMO




O termo “narcisismo” é empregado em psicanálise para designar um comportamento pelo qual um indivíduo “ama a si mesmo”; em outras palavras, um comportamento pelo qual o indivíduo trata o próprio corpo da mesma maneira como se trata habitualmente o corpo de uma pessoa amada. “Ser apaixonado por si mesmo” definiria assim o narcisismo, segundo o mito grego do jovem Narciso fascinado pela própria imagem.

KAUFMANN, Pierre (org.). Dicionário enciclopédico de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, (s.d).  p. 347.

 

Uma das descobertas mais frutíferas e de maior alcance de Freud é o conceito de narcisismo. O próprio Freud considerava-o uma de suas mais importantes descobertas, e empregou-o para a compreensão de fenômenos tão distintos quanto a psicose (...) e fenômenos de massas. (...)

Freud partiu de seu interesse para entender a esquizofrenia em função da teoria da libido. Como o paciente esquizofrênico não parece ter qualquer relacionamento libidinoso com objetos (seja de fato ou na fantasia), Freud foi levado à pergunta: “Que aconteceu à libido que foi retirada de objetos externos na esquizofrenia?” Sua resposta é: “A libido que foi retirada do mundo externo foi dirigida para o ego e assim provoca uma atitude que pode ser chamada de narcisismo”. (...)

Freud nunca alterou a ideia básica de que o estado original do homem, na primeira infância, é de narcisismo (“narcisismo primário”) no qual ainda não há quaisquer relações com o mundo exterior, de que depois no decurso da evolução normal a criança começa a ampliar em âmbito e intensidade as suas relações (libidinosas) com o mundo externo, mas que em muitos casos (o mais drástico sendo a insanidade) ele retira a ligação libidinosa dos objetos e volta-a para seu ego de novo (“narcisismo secundário”). Mas, no caso da evolução normal, o homem permanece até certo ponto narcisista toda sua vida.

FROMM, Erich. O coração do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. p. 68, 69.

 

Termo empregado pela primeira vez em 1887, pelo psicólogo francês Alfred Binet (1857-1911), para descrever uma forma de fetichismo que consiste em se tomar a própria pessoa como objeto sexual. O termo foi depois utilizado por Havelock Ellis, em 1898, para designar um comportamento perverso relacionado com o mito de Narciso. Em 1899, em seu comentário sobre o artigo de Ellis, o criminologista Paul Näcke (1851-1913) introduziu o termo em alemão.

Na tradição grega, o termo narcisismo designa o amor de um indivíduo por si mesmo. A lenda e o personagem de Narciso foram celebrizados por Ovídio na terceira parte de suas Metamorfoses.

Filho do deus Céfiso, protetor do rio do mesmo nome, e da ninfa Liríope, Narciso era de uma beleza ímpar. Atraiu o desejo de mais de uma ninfa, dentre elas Eco, a quem repeliu. Desesperada, esta adoeceu e implorou à deusa Nêmesis que a vingasse. Durante uma caçada, o rapaz fez uma pausa junto a uma fonte de águas claras: fascinado por seu reflexo, supôs estar vendo um outro ser e, paralisado, não mais conseguiu desviar os olhos daquele rosto que era o seu. Apaixonado por si mesmo, Narciso mergulhou os braços na água para abraçar aquela imagem que não parava de se esquivar. Torturado por esse desejo impossível, chorou e acabou por perceber que ele mesmo era o objeto de seu amor. Quis então separar-se de sua própria pessoa e se feriu até sangrar, antes de se despedir do espelho fatal e expirar. Em sinal de luto, suas irmãs, as Náiades e as Díades, cortaram os cabelos. Quando quiseram instalar o corpo de Narciso numa pira, constataram que havia se transformado numa flor.

Até o fim do século XIX, o termo narcisismo foi utilizado pelos sexólogos para designar se letivamente uma perversão sexual caracteriza da pelo amor dedicado pelo sujeito a si mesmo.

Em 1908, Isidor Sadger falou do narcisismo, a propósito do amor próprio, como uma modalidade de escolha de objeto nos homossexuais; distinguiu-se de Havelock Ellis ao considerar o narcisismo não como uma perversão, mas como um estádio normal da evolução psicossexual do ser humano.

O termo narcisismo surgiu pela primeira vez na pena de Freud numa nota acrescentada em 1910 aos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Falando dos “invertidos” e, portanto, ainda não utilizando a palavra “homossexual”, Freud escreveu que eles “tomam a si mesmos como objetos sexuais” e, “partindo do narcisismo, procuram rapazes semelhantes à sua própria pessoa, a quem querem amar tal como sua mãe os amou”

Em 1910, em seu ensaio “Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância” (1910), e em 1911, no estudo que fez sobre o caso Schreber, Freud, a exemplo de Sadger, considerou o narcisismo um estádio normal da evolução sexual.

Foi em 1914, em “Sobre o narcisismo: uma introdução”, que o termo adquiriu o valor de um conceito. Fenômeno libidinal, o narcisismo passou então a ocupar um lugar essencial na teoria do desenvolvimento sexual do ser humano. A elaboração desse texto apoiou-se no estudo das psicoses e, principalmente, na contribuição da Karl Abraham. Sem utilizar essa palavra, o berlinense, num texto de 1908 que versava sobre a demência precoce, havia descrito o processo de desinvestimento do objeto e convergência da libido para o sujeito: “O doente mental dedica a si mesmo, como objeto sexual único, toda a libido que o homem normal volta para o meio vivo ou animado. A superestimação sexual diz respeito tão-somente a ele.” Freud adotaria essa definição da psicose na vigésima sexta lição das Conferências introdutórias sobre psicanálise.

No texto de 1914, a observação do delírio de grandeza no psicótico levou Freud a definir o narcisismo como a atitude resultante da trans posição, para o eu do sujeito, dos investimentos libidinais antes feitos nos objetos do mundo externo. Freud observou então que esse movimento de retirada só pode produzir-se num segundo tempo, este precedido de um investimento dos objetos externos por uma libido proveniente do eu. Assim, podemos falar de um narcisismo primário, infantil, que a observação das crianças, bem como a dos “povos primitivos”, ambos caracterizados por sua crença na magia das palavras e na onipotência do pensamento, viria confirmar. O narcisismo primário diria respeito à criança e à escolha que ela faz de sua pessoa como objeto de amor, numa etapa precedente à plena capacidade de se voltar para objetos externos.

Assim, Freud é levado, no que constitui um dos pontos fortes desse texto, a considerar a existência permanente e simultânea de uma oposição entre a libido do eu e a libido do objeto, e a formular a hipótese de um movimento de gangorra entre as duas, de tal sorte que, se uma enriquece, a outra empobrece, e vice-versa. Nessa perspectiva, a libido de objeto, em seu desenvolvimento máximo, caracteriza o estado amoroso, ao passo que, inversamente, em sua expansão máxima, a libido do eu fundamenta a fantasia do fim do mundo no paranoico.

O desenvolvimento teórico constituído por esse texto implicou uma primeira reformulação da teoria das pulsões, desaparecendo a separação entre pulsões do eu e pulsões sexuais e sendo o eu definido como “um grande reservatório de libido”. (...)

Freud destacou a admiração parental por “his majesty the baby” (“sua majestade, o bebê”) como sendo a manifestação, nos pais, de seu próprio narcisismo primário abandonado, em cujo lugar constituiu-se progressivamente seu ideal do eu. “O amor dos pais”, escreveu Freud, “tão tocante e, no fundo, tão infantil, não é outra coisa senão seu narcisismo renascido, que, a despeito de sua metamorfose em amor de objeto, manifesta inequivocamente sua antiga natureza.”

No contexto da elaboração da segunda tópica, Freud retornou a essa questão da localização do narcisismo primário, que foi então situa do como o primeiro estado da vida - anterior, portanto, à constituição do eu -, característico de um período em que o eu e o isso são indiferenciados, e cuja representação concreta poderíamos conceber, por conseguinte, sob a forma da vida intrauterina. Como assinalam Jean Laplanche e Jean-Bertrand Pontalis, essa nova formulação teve por consequência apagar qualquer distinção entre o autoerotismo o narcisismo primário. (...)

A definição do narcisismo secundário é menos problemática e a formulação da segunda tópica não modifica sua concepção, muito embora, a partir da redação de Mais-além do princípio de prazer, Freud viesse a abandonar cada vez mais esse conceito, cuja ausência convém assinalarmos no Esboço de psicanálise. O narcisismo secundário ou narcisismo do eu, portanto, no início da década de 1920, mantém-se como o resultado, manifesto na clínica da psicose, da retirada da libido de todos os objetos externos. Mas o narcisismo secundário não se limita a esses casos extremos, uma vez que o investimento libidinal do eu coexiste, em todo ser humano, com os investimentos objetais, havendo Freud postulado a existência de um processo de equilíbrio energético entre as duas formas de investimento que participam de Eros, a pulsão de vida, e de seu combate contra as pulsões de morte. Por outro lado, e isso atesta o caráter incontornável que teve esse conceito na evolução da teoria freudiana do desenvolvimento psíquico, o narcisismo constitui, desde o texto de 1914, o primeiro esboço do que viria a se transformar no ideal do eu.

A despeito de suas insuficiências e de seu estatuto ambíguo, o conceito de narcisismo ser viu de ponto de partida para inúmeras elaborações pós-freudianas.

ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. Verbete: Narcisismo. p. 530 a 532.

 

Narcisismo: por referência ao mito de Narciso, é o amor pela imagem de si mesmo.

O termo narcisismo aparece pela primeira vez em Freud em 1910, para explicar a escolha de objeto nos homossexuais; estes “... tomam a si mesmos como objeto sexual; partem do narcisismo e procuram jovens que se pareçam com eles, e a quem possam amar como a mãe deles os amou”

1. A descoberta do narcisismo leva Freud a propor - no Caso Schreber, 1911 - a existência de uma fase da evolução sexual intermediária entre o autoerotismo e o amor de objeto. “O sujeito começa por tomar a si mesmo, ao seu próprio corpo, como objeto de amor”, o que permite uma primeira unificação das pulsões sexuais. Em Totem e tabu (Totem und Tabu, 1913) ele expressa o mesmo ponto de vista.

2. Vemos que Freud já fazia uso do conceito de narcisismo antes de “introduzi-lo” através de um estudo especial (Sobre o narcisismo: uma introdução [Zur Einführung des Narzissmus, 1914]). Mas, neste texto, é no conjunto da teoria psicanalítica que ele introduz o conceito, considerando particularmente os investimentos libidinais. Com efeito, a psicose (“neurose narcísica”) põe em evidência a possibilidade que a libido tem de reinvestir o ego desinvestindo o objeto; isto implica que “... fundamentalmente, o investimento do ego persista e se comporte para com os investimentos de objeto como o corpo de um animálculo protoplásmico para com os pseudópodes que emitiu”. Referindo-se a uma espécie de princípio de conservação da energia libidinal, Freud estabelece um equilíbrio entre a “libido do ego” (investida no ego) e a “libido objetal”: “quanto mais uma absorve, mais a outra se empobrece”. “O ego deve ser considerado como um grande reservatório de libido, de onde a libido é enviada aos objetos, e que está sempre pronto a absorver libido que reflua dos objetos.”

No quadro de uma concepção energética que reconhece a permanência de um investimento libidinal do ego, somos levados a uma definição estrutural do narcisismo. O narcisismo já não surge como uma fase evolutiva, mas como uma estase da libido que nenhum investimento de objeto permite ultrapassar completamente.

3. Tal processo de desinvestimento do objeto e de retirada da libido sobre o sujeito já tinha sido destacado por K. Abraham em 1908 a partir do exemplo da demência precoce. “A característica psicossexual da demência precoce é o retorno do paciente ao autoerotismo [...]. O doente mental transfere para si só, como seu exclusivo objeto sexual, a totalidade da libido, que a pessoa normal orienta para todos os objetos animados ou inanimados que a rodeiam.” Freud fez suas estas concepções de Abraham: “... elas conservaram-se na psicanálise e tomaram-se a base da nossa atitude para com as psicoses”. Mas acrescenta a ideia - que permite especificar o narcisismo com relação ao autoerotismo - de que o ego não existe de início como unidade e que exige, para se constituir, “uma nova ação psíquica”.

Se quisermos conservar a distinção entre um estado em que as pulsões sexuais se satisfazem de forma anárquica, independentemente umas das outras, e o narcisismo, em que o ego na sua totalidade é tomado como objeto de amor, seremos levados a fazer coincidir a predominância do narcisismo infantil com os momentos formadores do ego.

Neste ponto, a teoria psicanalítica não é unívoca. Numa perspectiva genética, podemos conceber a constituição do ego como unidade psíquica, correlativamente à constituição do esquema corporal. Podemos ainda pensar que tal unidade é precipitada por uma determinada imagem que o sujeito adquire de si mesmo segundo o modelo do outro, e que é precisamente o ego. O narcisismo seria a captação amorosa do sujeito por essa imagem. J. Lacan relacionou este primeiro momento da formação do ego com a experiência narcísica fundamental que designa pelo nome de fase do espelho. Nessa perspectiva, em que o ego se define por uma identificação com a imagem de outrem, o narcisismo - mesmo “primário” - não é um estado do qual estaria ausente toda e qualquer relação intersubjetiva, mas a interiorização de uma relação. É essa justamente a concepção que ressalta de um texto como Luto e melancolia (Trauer und Melancholie, 1916), onde Freud parece não ver no narcisismo nada mais do que uma “identificação narcísica” com o objeto.

Mas, com a elaboração da segunda teoria do aparelho psíquico, esta concepção se apaga. Freud acaba opondo de forma global um estado narcísico primitivo (anobjetal) e relações com o objeto. Este estado primitivo, a que ele dá então o nome de narcisismo primário, seria caracterizado pela total ausência de relações com o meio, por uma indiferenciação entre o ego e o id, e teria o seu protótipo na vida intrauterina, da qual o sono representaria uma reprodução mais ou menos perfeita.

A ideia de um narcisismo contemporâneo da formação do ego por identificação com outrem nem por isso é abandonada, mas este é então denominado “narcisismo secundário”, e já não “narcisismo primário”: “A libido que aflui ao ego pelas identificações [...] representa o seu ‘narcisismo secundário’.” “O narcisismo do ego é um narcisismo secundário, retirado aos objetos.”

Esta profunda modificação da concepção de Freud é correlativa da introdução da noção de id como instância separada e da qual as outras instâncias emanam por diferenciação; de uma evolução da noção de ego, que acentua tanto as identificações das quais ele surgiu quanto a sua função adaptadora como aparelho diferenciado; e, finalmente, do desaparecimento da distinção entre autoerotismo e narcisismo. (...)

Freud declara, nas primeiras linhas de Sobre o narcisismo: uma introdução (Zur Einführung des Narzissmus, 1914), ter ido buscar o termo em P. Näcke (1899), que o utiliza para descrever uma perversão. Em nota acrescentada em 1920 aos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie) corrige esta asserção; teria sido H. Ellis o criador do termo. De fato, Näcke forjou a palavra Narzissmus, mas para comentar pontos de vista de H. Ellis, que foi o primeiro, em 1898 (Autoerotism, a Psychological Study), a descrever um comportamento perverso relacionando-o com o mito de Narciso. (...)

Narcisismo primário, narcisismo secundário: o narcisismo primário designa um estado precoce em que a criança investe toda a sua libido em si mesma. O narcisismo secundário designa um retorno ao ego da libido retirada dos seus investimentos objetais.

Estes termos têm na literatura psicanalítica, e mesmo apenas na obra de Freud, acepções muito diversas, que nos impedem de apresentar uma definição unívoca mais exata do que aquela que propomos.

1. A expressão narcisismo secundário levanta menos dificuldades do que narcisismo primário. Freud usa-a, desde Sobre o narcisismo: uma introdução (Zur Einführung des Narzissmus, 1914), para designar certos estados como o narcisismo esquizofrênico: “...eis que somos levados a conceber este narcisismo, que apareceu pela incorporação dos investimentos objetais, como um estado secundário construído com base num narcisismo primário obscurecido por múltiplas influências”. Para Freud, o narcisismo secundário não designa apenas certos estados extremos de regressão; é também uma estrutura permanente do sujeito: a) No plano econômico, os investimentos de objeto não suprimem os investimentos do ego, antes existe um verdadeiro equilíbrio energético entre estas duas espécies de investimento; b) No plano tópico, o ideal do ego representa uma formação narcísica que nunca é abandonada.

2. De um autor para outro, a noção de narcisismo primário está sujeita a extremas variações. Trata-se de definir um estado hipotético da libido infantil, e as divergências incidem de maneira complexa na descrição desse estado, na sua situação cronológica e, para certos autores, na própria existência dele.

Em Freud, o narcisismo primário designa de um modo geral o primeiro narcisismo, o da criança que toma a si mesma como objeto de amor, antes de escolher objetos exteriores. Esse estado corresponderia à crença da criança na onipotência dos seus pensamentos.

Se procurarmos concretizar o momento da constituição desse estado, já em Freud encontraremos variações. Nos textos do período de 1910-15 esta fase é localizada entre a do autoerotismo primitivo e a do amor de objeto, e parece contemporânea do aparecimento de uma primeira unificação do sujeito, de um ego. Mais tarde, com a elaboração da segunda tópica, Freud conota pelo termo narcisismo primário um primeiro estado da vida, anterior até mesmo à constituição de um ego, e do qual a vida intrauterina seria o arquétipo. A distinção entre o autoerotismo e o narcisismo é então suprimida. (...)

Esta última acepção do narcisismo primário prevalece correntemente nos nossos dias no pensamento psicanalítico, o que resulta numa limitação do significado e do alcance do debate; quer se aceite ou se recuse a noção, designa-se sempre assim um estado rigorosamente “anobjetal”, ou pelo menos “indiferenciado”, sem clivagem entre um sujeito e um mundo exterior.

LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 287 a 290.



CLIQUE EM CIMA PARA AMPLIAR




CLIQUE EM CIMA PARA AMPLIAR



CLIQUE EM CIMA PARA AMPLIAR

Nenhum comentário:

Postar um comentário