LUTO E MELANCOLIA
A
etimologia da palavra melancolia, derivada dos étimos gregos melanos,
negro e kholé, bile, expressa com clareza que se trata de uma doença,
conhecida desde a Antiguidade, que se caracteriza por um humor sombrio, isto é,
uma tristeza e um desânimo profundos, um estado depressivo capaz de conduzir ao
suicídio, com ou sem a presença de ideias delirantes de ruína. A analogia com bile
negra tem origem nos ensinamentos de Hipócrates, que atribuiu a
responsabilidade pelos misteriosos fenômenos orgânicos à presença de quatro
humores: o sangue (responsável pela alegria e o riso), a bile amarela (imita o
furor do fogo), a bile negra (imita a terra) e a fleuma (responsável pela
inércia). Esses quatro humores se misturariam, daí resultando a alternância da
melancolia com a mania.
Essa
teoria perdurou por séculos, durante os quais a melancolia ocupou o interesse
de filósofos, literatos, médicos, psiquiatras e, mais a partir de Freud, dos
psicanalistas. Depois de alguns comentários esparsos, foi a partir de Luto e
Melancolia (1917) que Freud estudou aprofundadamente essa temática e
estabeleceu uma importante diferença entre o luto e a melancolia. Assim,
considerou que a melancolia é a forma patológica do luto. No trabalho de luto,
o sujeito consegue desligar-se progressivamente do objeto perdido. Na melancolia,
pelo contrário, ele se julga culpado pela morte da pessoa perdida e se
identifica de tal modo com ela que sente os mesmos sofrimentos que imagina que
o morto tenha sofrido ou esteja sofrendo, situação essa que pode se cronificar
indefinidamente.
Embora
os quadros clínicos da melancolia variem bastante qualitativa e quantitativamente,
existe uma invariante na estrutura melancólica. Consiste no fato, já assinalado
por Freud, de que há uma impossibilidade permanente de o sujeito fazer o luto
pelo objeto perdido. Essa falta de elaboração representa uma permanente
confusão entre o seu eu e o objeto perdido (logo, seu eu também fica perdido e
esvaziado) e tudo isso conduz à constante ameaça de risco de suicídio.
Essa
fusão e confusão entre o sujeito enlutado e o objeto perdido promove uma confusão
à fase do narcisismo primário, de sorte que melancolia também era conhecida
como psiconeurose narcisista. Lacan compara a melancolia com a situação extrema
do enamoramento, um estado em que o sujeito não é nada comparado ao tudo que é
atribuído ao objeto amado e extremamente idealizado, de forma que ele considera
o quadro melancólico uma doença do desejo, porque nessa situação a pessoa
enlutada renuncia a desejar, a ser (entra num estado de des-ser) e contrai um
forte namoro com a morte.
ZIMERMAN, David E. Vocabulário
contemporâneo de psicanálise. Porto Alegre: Artmed, 2001. p. 264 e 265.
Luto
e melancolia: O manuscrito inicial data de 1915, mas
sua publicação só ocorrerá dois anos mais tarde. Nesse artigo breve e denso,
Freud expõe a essência da melancolia comparando-a com o afeto normal do luto.
Ele separa-se da perspectiva psiquiátrica que era a do “Manuscrito G” (1895),
mas sublinha também que a noção de melancolia comporta muitos aspectos
(somáticos, por exemplo) que não levará em conta. No plano metodológico,
reencontra-se em Freud essa constante de esclarecer um fenômeno psicopatológico
a partir de um fenômeno normal (por exemplo, o sonho, o chiste, o ato falho).
O artigo é um reflexo direto da Introdução ao narcisismo
(1914), que lhe permite caracterizar a regressão melancólica (cf. Otto
Rank, citado por Freud, a propósito da base narcísica da escolha de objeto).
Freud repete igualmente as teses de Karl Abraham (a quem submetera o primeiro
manuscrito e que o tinha comentado) a propósito da oralidade canibálica e da
ambivalência do vínculo que está na origem da melancolia. Desenvolve também a
noção de identificação (incorporação, segundo Karl Abraham), ao passo que, a propósito
do luto normal, é formulada a noção de trabalho (Trauerarbeit) com base
no modelo do trabalho do sonho. O período de elaboração dessa reflexão sobre o
luto (guerra de 1914-18) estava particularmente prenhe de significado para
Freud.
A definição de luto dada por Freud é muito ampla, visto que
compreende, além da reação à perda de uma pessoa amada, a que responde a todas
as abstrações colocadas em seu lugar (pátria, liberdade, ideal). Essa ideia,
que juntou o abandono sublimado a uma ideia abstrata, não foi prolongada, mas
nem por isso deixou de criar perspectivas sociopolíticas de grande importância.
Freud dedicou-se à definição econômica do luto (perda de
interesse pelo mundo exterior) e ao trabalho do luto operando sobre a ligação
das recordações dolorosas, atividade do Eu que não tem nenhuma afinidade com um
apagamento do tipo de uma supressão ligada à duração. São destacadas, logo em
seguida, a aproximação e, sobretudo, a diferença com a melancolia,
caracterizada pela perda aparentemente injustificada da autoestima. “No luto, o
mundo tornou-se pobre e vazio; na melancolia, é o próprio Eu”. Entretanto, a
autodepreciação melancólica visa, na realidade, o próprio objeto de amor. Este
foi a causa de uma decepção para o sujeito, o qual, em vez de uma retirada de
investimento, opera uma identificação inconsciente com o objeto doravante odiado
mas ao qual esse mesmo sujeito permanece ainda mais firmemente apegado. A
origem desse desenvolvimento patológico deve-se, por uma parte, à natureza
narcísica da escolha de objeto inicial e, por outra parte, à ambivalência da
escolha e ao predomínio da pulsão sádica que opera aqui sob uma forma
masoquista, torturando diretamente o entourage do doente. A compreensão
do suicídio como um ato de voltar contra si mesmo um impulso homicida vê-se
assim esclarecido. Também a ação de retornar na mania é explicada de um ponto
de vista econômico como o súbito alívio da carga psíquica mantida pela
melancolia.
Mas tanto no caso da melancolia como no do luto, é essencialmente
o trabalho que consiste em dar um fim ao objeto (rebaixando-o ou declarando-o
morto) que vai “ferir de morte” o morto e libertar o sujeito. Essa teoria da
melancolia é capital num plano clínico para a abordagem das diferentes formas
de depressão. A questão do luto encontra-se confirmada por numerosos
antropólogos, ela retoma certas perspectivas de Freud enunciadas em Totem e
tabu (1912-13), e a questão da identificação será prolongada em Psicologia
de grupo e a análise do Ego (1921). Este texto ocupa, portanto, tanto uma
posição central para a psicologia individual quanto coletiva.
MIJOLLA, Alain de. Dicionário
internacional de psicanálise. Vol. 2. Verbete Luto e melancolia. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. 1107.
Em Luto e melancolia, Freud se
indaga sobre as reações do indivíduo em decorrência de uma perda real ou de uma
decepção vinda de uma pessoa amada ou da perda de um ideal: por que certas
pessoas reagem com um afeto de luto que será superado depois de algum tempo,
enquanto outras sucumbem em um estado depressivo? Esclareço que na época de Freud
denominava-se "melancolia" o que hoje é chamado de depressão, enquanto
o termo "melancolia" é reservado à sua forma grave, psicótica. Freud
constata que, diferentemente do luto normal, cujo processo se situa principalmente
no nível consciente, o luto patológico se desenvolve no nível inconsciente, pois
a melancolia, diz ele, "não consegue captar conscientemente o que perdeu".
O luto normal e o luto patológico têm em comum uma inibição e uma ausência de
interesse que se explicam pelo trabalho do luto que absorve o ego. Mas há algo
mais na melancolia, prossegue Freud, que é a extraordinária diminuição da autoestima:
"No luto, o mundo se tornou pobre e vazio, na melancolia foi o próprio
ego". No luto patológico, é a aversão do doente em relação ao seu próprio
ego que aparece no primeiro plano sob a forma de autorecriminações e de
autodepreciação. Como se explicam essas autoacusações que podem levar até à
espera delirante de um castigo?
Freud teve, então, uma intuição genial:
ele percebe que as autoacusações do depressivo são, na verdade, heteroacusações
dirigidas contra uma pessoa importante "perdida", geralmente uma
pessoa do seu círculo. Assim, diz ele: "A mulher que lamenta em voz alta
que seu marido tenha se ligado a uma mulher tão incapaz, deseja, na verdade, se
queixar contra a incapacidade de seu marido em todos os sentidos do termo".
Em outras palavras, quando essa mulher acusa a si mesma dizendo: "Eu sou
uma incapaz!", essa autoacusação se revela como uma acusação destinada inconscientemente
ao seu marido: "Você é um incapaz!". Como Freud expressa tão bem em
língua alemã ao falar desses doentes: "Ihre Klagen sind Anklagen",
isto é: "Suas queixas são queixas contra", jogando com a condensação
das palavras Klagen (queixas no sentido de "se queixar") e Anklagen
(antigo termo jurídico que significa "prestar queixa contra alguém").
Seguindo em sua intuição, Freud percebe
que as palavras utilizadas pelo paciente melancólico quando expressa suas autoacusações,
quando a paciente diz , por exemplo: "Eu sou uma incapaz!" - revelam
ponto por ponto a estrutura de seu conflito interno: "O que devemos reter
antes de tudo, prossegue Freud, é que ele [o melancólico] nos descreve
corretamente sua situação psicológica". Considerando o fato de que a estrutura
linguística particular das autoacusações remete à organização do conflito interno
do melancólico, Freud começa a passar em revista sistematicamente os diferentes
elementos envolvidos ali, decompondo-os um a um: ele descreve, sucessivamente,
a introjeção oral do objeto perdido, a identificação com ele por regressão do
amor ao narcisismo, o retorno contra o próprio sujeito do ódio dirigido ao
objeto etc., o que examinaremos a seguir. A compreensão desses processos exige
muita atenção por parte do leitor, na medida em que a clínica a que Freud se
refere permanece mais implícita do que explícita. Contudo, tentarei apresentar
brevemente suas linhas gerais.
Freud começa por explicar o que subentende
a substituição do "Eu" pelo "Você" quando a melancólica se
acusa explicitamente nestes termos: "Eu sou uma incapaz!" querendo
implicitamente acusar outro: "Você é um incapaz!". Quais são os
processos psíquicos que correspondem às transformações psíquicas assim expressadas
verbalmente? Freud explica isso mostrando que em caso de perda de objeto existe
uma diferença fundamental entre o luto normal e o luto patológico que decorre
da mudança na direção do investimento da libido: no luto normal, o sujeito é
capaz de renunciar ao objeto " perdido" e de retirar sua libido, de
modo que a libido libertada pode ser substituída por um novo objeto; ao
contrário, na melancolia , o sujeito não retira sua libido do objeto perdido,
seu ego "sufoca" esse objeto em fantasia para não se separar dele e
para unificar-se a ele, seguindo pela via de uma identificação narcísica:
"A sombra do objeto abate se assim sobre o ego que pôde então ser julgado
por uma instância particular como um objeto, como o objeto abandonado. Dessa
maneira, a perda do objeto se transformou em uma perda do ego, e o conflito
entre o ego e a pessoa amada em uma cisão entre a crítica do ego e o ego
modificado por identificação". É essa mudança de direção do investimento
de objeto para o próprio ego confundido com o objeto que explica o desinteresse
do melancólico pelas pessoas do seu meio e o consequente retraimento
"narcísico" na própria pessoa; o doente se preocupa tanto consigo mesmo
que é como se fosse aspirado pelo turbilhão de suas autorrecriminações.
Além disso, esse retorno das recriminações
para a própria pessoa implica uma clivagem do ego, confundindo-se com o objeto
perdido, enquanto o outro exerce sua crítica erigindo-se em uma instância que Freud
chama de "consciência moral": "Vemos nele como uma parte do ego
se opõe à outra, dirige a ela uma apreciação crítica, toma-a por assim dizer
como objeto". Essa instância crítica é a precursora da noção de superego.
A forte tendência autodestrutiva do depressivo,
ainda segundo Freud, resulta de um reforço da ambivalência do amor e do ódio em
relação ao objeto e ao ego, afetos que se dissociam e sofrem destinos diferentes.
De um lado, o sujeito continua amando o
objeto, mas à custa do retorno a uma forma primitiva de amor que é a
identificação na qual "amar o objeto" é "ser o objeto":
"A identificação narcísica com o objeto torna-se então o substituto do investimento
de amor, o que tem como consequência que, apesar do conflito com a pessoa
amada, a relação de amor não deve ser abandonada". Trata-se aqui de uma
regressão da libido à fase oral canibalesca em que o sujeito incorpora o objeto
"devorando-o". De outro lado, em razão da identificação narcísica do
ego com o objeto amado, o ódio do sujeito dirigido ao objeto no mundo externo
retorna contra seu próprio ego unificado ao objeto: "Se o amor pelo
objeto, que não pode ser abandonado, enquanto que o próprio objeto é
abandonado, refugiou-se na identificação narcísica, objeto substitutivo, o ódio
entra em ação sobre esse injuriando-o, rebaixando-o, fazendo-o sofrer e
extraindo desse sofrimento uma satisfação sádica".
Freud destaca um outro ponto decisivo ao
demonstrar que as autoacusações do melancólico constituem simultaneamente uma
agressão dirigida ao objeto, o que significa que o retraimento narcísico do paciente
não exclui a permanência de uma relação de objeto inconsciente. De fato, Freud
observa que o paciente melancólico, assim como o obsessivo, sente
"prazer" em exercer simultaneamente tendências sádicas e odiosas em
relação a si mesmo e em relação a outro, sendo que este último é geralmente uma
pessoa do seu círculo: "Normalmente, nas duas afecções, os doentes, pelo
retorno da autopunição, ainda conseguem se vingar dos que o amam e a
torturá-los por meio de sua doença, depois se refugiarem na doença para não ser
obrigados a manifestar diretamente sua hostilidade contra eles".
Assim, ao assinalar que as autoagressões
do melancólico são um meio de agredir seu objeto e de exercer uma vingança em
relação a ele, Freud mostra que esses pacientes, ao lado de seu narcisismo, ainda
mantêm uma relação de objeto com seu círculo, que se fundamenta no ódio e na
agressividade. Sem dúvida, o fato de Freud ter enfatizado o retraimento
narcísico nos pacientes maníaco-depressivos levou-o a pensar que esses
pacientes eram incapazes de estabelecer uma transferência e que não eram
acessíveis à análise, o que explica sua designação de neuroses narcísicas. Os
psicanalistas pós-freudianos mostraram que, na verdade, esses pacientes
estabelecem uma transferência e que essa transferência é analisável, mesmo que
se trate de uma transferência em que predomina a hostilidade em relação ao analista.
Para compreender melhor os mecanismos
psíquicos da depressão descritos por Freud é preciso considerar os importantes
desenvolvimentos feitos por ele posteriormente. Eis alguns pontos de referência
aos quais retornaremos ao abordar as obras em questão:
- A introdução do conflito entre pulsão de
vida e pulsão de morte (1920).
O papel central desempenhado pelas pulsões
autodestrutivas nos pacientes depressivos foi um dos fatores que conduziram
Freud a rever sua primeira teoria das pulsões fundada no princípio do prazer,
tal como ele havia formulado em 1915: de fato, se a finalidade da pulsão é
essencialmente a busca de satisfação, como explicar que um depressivo seja
levado ao suicídio? Para responder a esse tipo de questão, Freud introduziu em
1920 uma nova teoria das pulsões, baseada no conflito fundamental entre pulsão
de vida e pulsão de morte, concepção que ele aplicará a numerosas situações
psicopatológicas, entre as quais a melancolia.
- O conflito entre ego, id e superego
(1923)
Em 1915, em Luto e melancolia,
Freud atribui as autoacusações do melancólico à "crítica" que uma
parte do ego exerce sobre a outra, evocando uma "consciência moral"
análoga à "voz da consciência". Em 1923, ela fará dessa
"crítica" uma verdadeira instância psíquica que chamará de superego,
e a colocará em estreita relação com outras duas instâncias recém-definidas, o
ego e o id. Segundo ele, em condições normais o superego exerce uma função
reguladora em relação ao ego, que por sua vez se confronta com as exigências
pulsionais do id. Contudo, na melancolia, Freud constata que o superego exerce
um sadismo excessivo em relação ao ego, pois nessa afecção, segundo ele,
"[o superego] investe contra o ego com uma violência impiedosa, como se
estivesse possuído por todo o sadismo disponível no indivíduo. (...) O que
agora reina no ego é, por assim dizer, uma pura cultura da pulsão de morte, e
de fato ela consegue quase sempre levar o ego à morte, se este não se defender
de seu tirano a tempo transformando-o na mania".
- A clivagem do ego (1927)
A noção de clivagem do ego já está
presente em Freud em Luto e melancolia, e ele utiliza explicitamente ora
o termo "clivagem", ora “cisão” do ego, particularmente quando
descreve a severidade com que a "consciência moral" critica o ego no
melancólico. Mais tarde, em Fetichismo (1927), ele completará suas
hipóteses sobre a clivagem do ego considerando que, no caso da depressão, ela é
consequência da negação da perda de objeto; ele ilustra esse ponto de vista
mencionando a análise de dois irmãos que na infância haviam "escotomizado"
a morte de seu pai, mas que não se tornaram psicóticos: "Havia apenas uma
corrente de sua vida psíquica que não reconhecia essa morte; uma outra corrente
admitia-a plenamente; as duas posições, a que se fundava no desejo e a que se
fundava na realidade, coexistiam. Essa clivagem, para um de meus dois casos,
era a base de uma neurose obsessiva medianamente grave". Em outros termos,
no luto patológico, a noção de clivagem dá conta de que uma parte do ego nega a
realidade da perda, enquanto que a outra a aceita. Em seus últimos trabalhos,
Freud atribuirá uma importância cada vez maior aos fenômenos de negação da
realidade e de clivagem do ego.
QUINODOZ,
Jean-Michel. Ler Freud: guia de leitura da obra de S. Freud. Porto
Alegre: Artmed, 2007. p. 166 a 169.
Melancolia:
termo derivado do grego melas (negro) e kholé (bile), utilizado
em filosofia, literatura, medicina, psiquiatria e psicanálise para designar,
desde a Antiguidade, uma forma de loucura caracterizada pelo humor sombrio,
isto é, por uma tristeza profunda, um estado depressivo capaz de conduzir ao
suicídio, e por manifestações de medo e desânimo que adquirem ou não o aspecto
de um delírio.
Embora
a melancolia ocupe um lugar importante no dispositivo freudiano, os mais belos
estudos sobre essa questão não foram produzidos pelo discurso psiquiátrico ou
psicanalítico, mas pelos poetas, filósofos, pintores e historiadores, que
souberam garantir-lhe um estatuto teórico, social, médico e subjetivo.
Desde
a descrição de Homero sobre a tristeza de Belerofonte, herói perseguido pelo
ódio dos deuses por ter querido escalar o céu, até a teorização do “espírito
melancólico” por Aristóteles, passando pelo relato mítico de Hipócrates sobre
Demócrito, o filósofo “louco” que ria de tudo e dissecava os animais para neles
encontrar a causa da melancolia do mundo, essa forma de deploração perpétua
sempre foi, ao mesmo tempo, a expressão mais incandescente de uma rebeldia do
pensamento e a manifestação mais extrema de um desejo de autoaniquilamento,
ligado à perda de um ideal. Daí a ideia, desenvolvida por Erwin Panofsky (1892-1968),
de que a história da melancolia seria a história de uma transferência
permanente entre o campo da doença e o do espírito que contaria a intensa e
sombria irradiação do sujeito da civilização às voltas com a deficiência de seu
desejo.
Foi
a teoria hipocrática dos quatro humores que, durante séculos, permitiu
descrever, de maneira mais ou menos idêntica, os sintomas clínicos dessa
doença: ânimo entristecido, sentimento de um abismo infinito, extinção do
desejo e da fala, impressão de hebetude, seguida de exaltação, além de atração
irresistível pela morte, pelas ruínas, pela nostalgia e pelo luto. Assim, a
melancolia era associada à bile negra, ao lado dos outros três humores: “O
sangue imita o ar, aumenta na primavera e impera na infância. A bile amarela
imita o fogo, aumenta no verão e impera na adolescência. A melancolia ou bile
negra imita a terra, aumenta no outono e impera na maturidade. A fleuma imita a
água, aumenta no inverno e reina na velhice.”
Doença
da maturidade, do outono e da terra, a melancolia também pode diluir-se nos
outros humores e caminhar de mãos dadas com a alegria e o riso (o sangue), a
inércia (a fleuma) e o furor (a bile amarela): através dessas misturas,
portanto, ela afirmaria sua presença em todas as formas de expressão humana.
Daí nasceria a ideia de uma alternância cíclica entre um estado e outro (mania
e depressão), característica da nosografia psiquiátrica moderna.
Entretanto,
como humor sombrio, a melancolia estaria ligada à doença de Saturno, deus
terreno dos romanos, mórbido e desesperado, identificado com o Cronos da
mitologia grega, que havia castrado o pai (Urano) antes de devorar os filhos.
Assim, os melancólicos eram chamados de saturninos, mas cada época construiu
sua própria representação da doença.
Se
o médico inglês Thomas Willis (1621-1675) foi o primeiro, no século XVII, a
aproximar a mania da melancolia para definir um ciclo maníaco-depressivo, foi o
filósofo Robert Burton (1577-1640) quem forneceu, em 1621, com Anatomy of
Melancholy, a versão canônica de uma nova concepção da melancolia, já
introduzida nos costumes. A partir do fim da Idade Média, com efeito, o termo
tornou-se sinônimo de uma tristeza sem causa, e a antiga doutrina dos humores
foi progressivamente substituída por uma causalidade existencial. Falava-se então
de temperamento melancólico, pensando em Hamlet, que, na virada do século,
tinha-se tornado a imagem por excelência do drama da consciência europeia: um
sujeito entregue a si mesmo, num mundo perpassado pelo advento da revolução
copernicana. Embora conservasse o antigo vocabulário humoral, Burton assimilou a
melancolia, portanto, a um desespero do sujeito abandonado por Deus.
No
fim do século XVIII e, em especial, às vésperas da Revolução Francesa, a
melancolia surgiu como o grande sintoma do tédio destilado pela velha
sociedade. Parecia atingir tanto os jovens burgueses, excluídos dos privilégios
conferidos pelo nascimento, quanto os decaídos na escala social, que haviam
perdido todos os referenciais. Grassava também entre os aristocratas ociosos,
privados do direito de fazer fortuna. Tédio da felicidade, felicidade do tédio,
sentimento de derrisão ou aspiração à felicidade de superar o tédio, a
melancolia funcionava como um espelho onde se refletiam a falência geral da
ordem monárquica e a aspiração à intimidade pessoal: “Todas as histórias universais
e as buscas das causas me entediam”, dizia a escritora Marie Deffand; “esgotei
todos os romances, contos e peças teatrais; somente as cartas, a vida
particular e as memórias escritas pelos que fazem sua própria história ainda me
divertem e me inspiram certa curiosidade. A moral e a metafísica provocam-me um
tédio mortal. Que posso dizer-lhes? Vivi demais.” Acreditava-se também que
alguns climas favoreciam a doença, mais frequente nos países nórdicos do que
nas regiões meridionais. Por fim, na mulher, ela era frequentemente aproximada
da doença dos vapores, ora atribuída ao baço, fonte da bile negra, ora ao
útero, lugar imaginário da sexualidade feminina.
Com
a instauração do saber psiquiátrico no século XIX, a melancolia foi submetida a
numerosas variações terminológicas, inicialmente destinadas a transformar essa
estranha “felicidade por estar triste” (como diria Victor Hugo) numa verdadeira
doença mental, sem floreios literários ou filosóficos, e depois, a inscrevê-la
numa nova nosografia, dominada pela divisão entre psicose e neurose. Chamada de
lipemania por Jean-Étienne Esquirol (1772-1840), a melancolia assumiu
posteriormente o nome de loucura circular, sob a pena de Jean-Pierre Falret
(1794-1870), sendo então aproximada da mania. No fim do século, foi integrada
por Emil Kraepelin à loucura maníaco-depressiva, fundindo-se em seguida à
psicose maníaco-depressiva. (...)
Já
em 1895 (Freud) se interrogava sobre a melancolia e, num manuscrito enviado a
Wilhelm Fliess, aproximou-a do luto, isto é, do “pesar por alguma coisa
perdida”, comparou-a à anorexia e a relacionou com uma falta de excitação
sexual somática. Foi somente em 1917, entretanto, que publicou um texto
magistral sobre a questão, Luto e melancolia, fazendo desse segundo
termo a forma patológica do primeiro. Enquanto o sujeito, no trabalho do luto,
consegue desligar-se progressivamente do objeto perdido, na melancolia, ao
contrário, ele se supõe culpado pela morte ocorrida, nega-a e se julga possuído
pelo morto ou pela doença que acarretou sua morte. Em suma, o eu se identifica
com o objeto perdido, a ponto de ele mesmo se perder no desespero infinito de
um nada irremediável.
Antes
da publicação, Freud enviou esse texto a Karl Abraham, grande especialista freudiano
nas psicoses e, em especial, na melancolia, sob a forma da psicose
maníaco-depressiva, à qual dedicaria diversos artigos. Enquanto os freudianos
associaram os dados da nosografia psiquiátrica à reflexão psicanalítica sobre o
luto, a escola kleiniana, marcada desde o início pelo trabalho de Abraham, acentuou
a problemática da perda do objeto e da posição depressiva inscrita no âmago da
realidade psíquica.
No
fim do século XX, a depressão, forma atenuada da melancolia, vai se tornando,
nas sociedades industriais avançadas, uma espécie de equivalente da histeria da
Salpêtrière, outrora exibida por Jean Martin Charcot: uma verdadeira doença de
época. Se esta última, no entanto, se afigurara aos olhos dos contemporâneos
como uma revolta do corpo feminino contra a opressão patriarcal, a depressão,
ao contrário, cem anos depois, parece ser a marca de um fracasso do paradigma
da revolta, num mundo desprovido de ideais e dominado por uma poderosa
tecnologia farmacológica, muito eficaz no plano terapêutico.
Por
outro lado, existe um dado invariável na estrutura melancólica, como mostrou
Freud. Ele reside na impossibilidade permanente de o sujeito fazer o luto do
objeto perdido. E é isso, sem dúvida, que explica a presença do famoso
“temperamento melancólico” nos grandes místicos, sempre ameaçados de se afastar
de Deus, nos revolucionários, sempre à procura de um ideal que se esquiva, e em
alguns criadores, sempre em busca de uma autossuperação.
ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário
de psicanálise. Verbete: Melancolia. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 505, 506
e 507.
Trabalho do luto: Processo intrapsíquico, consecutivo à
perda de um objeto de afeição, e pelo qual consegue progressivamente
desapegar-se dele.
A
expressão, que se tomou clássica, de trabalho do luto é introduzida por Freud
em Luto e melancolia (Trauer und Melancholie, 1917). Assinala por
si só a renovação introduzida pela perspectiva psicanalítica na compreensão de
um fenômeno psíquico que era visto tradicionalmente como uma atenuação
progressiva, e como que espontânea, da dor provocada pela morte de um ente
querido. Para Freud, este resultado terminal é o fim de todo um processo
interior que implica uma atividade do sujeito, atividade que aliás pode
fracassar, como mostra a clínica dos lutos patológicos.
A
noção de trabalho do luto deve ser aproximada da noção mais geral de elaboração
psíquica, concebida como uma necessidade para o aparelho psíquico de ligar as
impressões traumatizantes. Desde os Estudos sobre a histeria (Studien
über Hysterie, 1895) Freud tinha notado a forma especial que esta
elaboração assume no caso do luto. “Pouco depois da morte do doente, começa
nela [uma histérica observada por Freud] o trabalho de reprodução que lhe traz
de novo diante dos olhos as cenas da doença e da morte. Todos os dias passa de
novo por cada uma das suas impressões, ela as chora, consola-se delas ao seu
bel-prazer, poderíamos dizer.”
A
existência de um trabalho intrapsíquico de luto é atestada, segundo Freud, pela
falta de interesse pelo mundo exterior que se instala com a perda do objeto;
toda a energia do sujeito parece mobilizada pela sua dor e pelas suas
recordações, até que “... o ego, obrigado, por assim dizer, a decidir se quer
partilhar este destino [do objeto perdido], considerando o conjunto das
satisfações narcísicas que existem em continuar vivo, decide quebrar a sua
ligação com o objeto destruído”. Para que este desapego se realize, tornando
finalmente possíveis novos investimentos, é necessária uma tarefa psíquica.
“Cada uma das lembranças, cada uma das esperas pelas quais a libido estava
ligada ao objeto, são presentificadas, superinvestidas, e em cada uma se
realiza o desligamento da libido.” Neste sentido, já houve quem dissesse que o
trabalho do luto consistia em “matar o morto”.
Freud
mostrou a gradação existente entre o luto normal, os lutos patológicos (o
sujeito considera-se culpado da morte acontecida, nega-a, julga-se influenciado
pelo defunto ou possuído por ele, julga-se atingido pela doença que lhe causou
a morte etc.) e a melancolia. Muito esquematicamente, podemos dizer que,
segundo Freud, no luto patológico, o conflito ambivalente passa para primeiro
plano; com a melancolia, transpõe-se uma etapa suplementar: o ego identifica-se
com o objeto perdido. Depois de Freud, os psicanalistas procuraram esclarecer o
fenômeno do luto normal a partir das suas formas patológicas, depressiva e
melancólica, mas também maníaca, insistindo particularmente no papel da
ambivalência e na função da agressividade para com o morto, na medida em que
permitiria o desapego dele.
Estes
dados psicopatológicos foram frutuosamente aproximados dos dados da
antropologia cultural acerca do luto em certas sociedades primitivas, das
crenças coletivas e dos ritos que o acompanham.
LAPLANCHE e
PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. Verbete:
Trabalho do luto. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
p. 510 e 511.
A noção de identificação (...) não é apenas a expressão de
uma relação entre mim e outra pessoa; o ego pode achar-se profundamente
modificado pela identificação, tornando-se o resíduo intrassubjetivo de uma
relação intersubjetiva. É assim que, na homossexualidade masculina, “o jovem
não abandona a mãe, mas identifica-se com ela e transforma-se nela [...]. O que
é impressionante nesta identificação é o seu alcance: remodela o ego numa das
suas partes mais importantes, o caráter sexual, segundo o protótipo daquilo que
antes era o objeto”.
Da
análise da melancolia e dos processos que ela põe em evidência, a noção de ego
sai profundamente transformada:
а)
A identificação com o objeto perdido, manifesta no melancólico, é interpretada
como uma regressão a uma identificação mais arcaica, concebida como uma fase
preliminar da escolha de objeto “...na qual o ego quer incorporar em si esse
objeto”. Esta ideia abre caminho a uma concepção de um ego que não seria apenas
remodelado por identificações secundárias; seria também constituído, desde a
origem, por uma identificação que toma como protótipo a incorporação oral.
b)
Freud descreve em termos antropomórficos o objeto introjetado no ego; é
submetido aos piores tratamentos, sofre, o suicídio procura matá-lo etc.
c)
Na realidade, com a introjeção do objeto, é toda uma relação que pode, ao mesmo
tempo, estar interiorizada. Na melancolia, o conflito ambivalente para com o
objeto vai ser transposto na relação com o ego.
LAPLANCHE e
PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. Verbete:
Ego ou Eu. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p.
132.
A vivência do melancólico: tristeza profunda,
insensibilidade às solicitações do mundo exterior (...); acarreta um pessimismo
que adota a forma de uma impressão de futuro bloqueado e de incurabilidade;
isso é acompanhado de ideias de culpa e de indignidade que se exprimem por meio
de autoacusações suscetíveis de dar origem a um verdadeiro delírio, a par de
frequentes ideias hipocondríacas; o sujeito queixa-se de anestesia afetiva, de
um sentimento penoso de não ser mais capaz de amar. A dor moral envolve um
constante desejo de morte, que faz o sujeito correr um risco suicida. Faz-se
acompanhar de um nítido declínio da atividade psicomotora que atinge, por
vezes, o estupor. A anorexia e a perda de peso, a insônia com despertar matinal
prematuro, a melhoria vespertina do quadro clínico, constituem os sinais
clássicos da afecção.
O episódio depressivo melancólico pode ser único ou
recidivo, integrando-se então no quadro de uma doença maníaco-depressiva
unipolar (recorrência de acessos melancólicos) ou bipolar (recorrência de
acessos melancólicos e maníacos). Neste último caso, vamos encontrar uma
característica fundamental da melancolia: sua capacidade para se inverter,
espontaneamente ou sob o efeito de tratamentos biológicos, num estado de
excitação maníaca. (...)
Em Luto e melancolia (1916-17), Freud baseia (...) a
sua teoria na aproximação desses dois estados. Sua circunstância deflagradora é
semelhante, é a perda. Mas se o luto sobrevém após a morte de uma pessoa amada,
na melancolia o objeto é perdido como objeto de amor e, portanto, não está
realmente morto; assim, o melancólico pode, em certos casos, saber que perdeu,
mas nunca sabe, porém, o que perdeu; porque essa perda é subtraída à
consciência. Os quadros clínicos são semelhantes, à parte o fato de que a melancolia
se faz acompanhar de uma perda de autoestima. Ao invés do enlutado, o
melancólico sofre de uma perda no tocante ao seu Eu, que ele descreve como
pobre e sem valor. As recriminações que endereça a si mesmo sem pruridos de
vergonha são, de fato, destinadas ao objeto perdido. O seu Eu está clivado: uma
parte dele, a instância crítica, toma como objeto uma outra parte identificada
com o objeto perdido por um mecanismo narcísico. Isto pressupõe que a escolha
de objeto é estabelecida de acordo com o modelo narcísico, marcado por uma
forte fixação no objeto e, não obstante, uma fraca resistência do seu
investimento, que assim manifesta sua pronta disposição para se retirar para o
Eu.
Outra condição necessária à melancolia é a ambivalência da
relação de objeto, ou seja, uma oposição de amor e ódio. Uma vez o amor pelo
objeto refugiado na identificação narcísica, o ódio pode entrar em ação contra
a parte do Eu identificada com esse objeto. Ele encontra aí uma satisfação
sádica, traduzida pelas intenções suicidas do melancólico. Estas resultam do
retorno contra si mesmo do ódio dirigido contra o objeto. A ambivalência,
constitucional ou ligada às circunstâncias da perda, subentende que todo um
trabalho psíquico, o qual consiste no confronto em combates singulares e em
múltiplos lugares do psiquismo do amor e do ódio, se desenrola no Inconsciente
até ao instante em que o amor opta pela fuga para o Eu, a fim de se preservar e
o processo melancólico se manifesta claramente sob a forma típica que se lhe
conhece. Esse confronto acaba sempre por se esgotar, quer o furor contra o
objeto perdido cesse por si mesmo ou o objeto acabe por ser abandonado como sem
valor.
Em 1924, Abraham examina a relação entre os estados
maníaco-depressivos e as etapas pré-genitais da organização da libido.
Esclarecendo o vínculo entre sadismo e erotismo anal, ele divide a fase
sádico-anal em dois períodos. No mais precoce, a pulsão obtém a satisfação,
rejeitando e destruindo o objeto. É nesse primeiro período que a libido do
melancólico começa por regredir. Mas a regressão libidinal não se detém aí, ela
prossegue até à fase oral canibálica através do mecanismo de introjeção do
objeto perdido. Aí se lhe une a recusa alimentar, sinal cardeal da depressão
melancólica. Abraham concluiu retendo cinco fatores cuja “interação suscita as
manifestações clínicas específicas da melancolia”: o reforço constitucional do
erotismo oral dos sujeitos melancólicos, a fixação privilegiada da libido na
fase oral do seu desenvolvimento, uma ferida grave do narcisismo infantil por
decepção amorosa em face do objeto materno, a ocorrência dessa ferida antes do
controle sobre os desejos edipianos, a repetição dessa decepção primária na
vida ulterior do sujeito.
MIJOLLA, Alain de. Dicionário
internacional de psicanálise. Vol. 2. Verbete Melancolia. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. 1162 e 1163.
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